Vivemos um momento de refluxo das forças democráticas e de esquerda em todo o mundo e também no Brasil. É hora de resistência e de acúmulo de forças para poder voltar a avançar.
No plano internacional, o panorama é de avanço da direita. Na Argentina, a centro-esquerda foi derrotada com a vitória eleitoral de Magri. Na Bolívia, Evo Morales perdeu o plebiscito e não conseguiu autorização popular para se candidatar a um novo mandato presidencial. Na Venezuela, a desestabilização do governo Maduro é cada dia mais intensa. No Chile, Bachelet enfrenta problemas sérios e acusações de corrupção. No Peru, a esquerda sequer conseguiu chegar ao segundo turno das eleições presidenciais.
Nos EUA, Donald Trump, representando a ala mais à direita do Partido Republicano, será o candidato daquele partido à Presidência da República. Na Espanha, o Partido Popular (conservador) foi o mais votado nas últimas eleições, contrariando as expectativas de vitória da coligação Unidos Podemos. No Reino Unido, o Brexit venceu o plebiscito determinando que o país saia da Comunidade Europeia. Na Áustria, o Partido da Liberdade, de extrema direita, anti-imigração e eurocêntrico, conseguiu anular as eleições, que serão repetidas em outubro.
No plano nacional, o panorama é semelhante, senão pior do que o internacional. O golpe jurídico-midiático-parlamentar tem tudo para se “naturalizar”, com a destituição definitiva de Dilma pelo Senado no mês de agosto e a aceitação popular do desfecho autoritário. Dilma não conseguiu virar o jogo. O PT parece estar conformado com a derrota que sofreu, preferindo investir forças nas eleições municipais de outubro próximo.
Nem Dilma nem o PT apresentaram uma proposta capaz de sensibilizar as grandes massas e os setores mais avançados da sociedade, os movimentos sociais, partidos de esquerda e setores liberal democráticos. Não conseguiram, por outro lado, negociar com os setores menos retrógrados do empresariado e dos senadores a ponto de reverter os votos necessários para barrar o impeachment.
Impasse e paralisia
No plano político mais geral, há um impasse que leva à paralisação institucional, política e econômica do país. É um impasse tão profundo, que os principais agentes políticos encontram-se imobilizados. Há um aparente empate estabelecido entre os campos políticos em conflito. Nem Dilma e nem Temer têm condições de governar. Nem Dilma e nem Temer têm propostas capazes de aglutinar forças e ganhar a opinião pública e os setores de poder (empresários e movimentos sociais).
Dilma não vira o jogo e Temer não se estabiliza no governo. Cunha, mesmo afastado, continua controlando o governo interino e acuando Temer. PMDB, PSDB, PT e a imensa maioria dos políticos estão desmoralizados e sem legitimidade frente à opinião pública. Apoiadores sinceros e/ou ingênuos do golpe estão silenciosos, decepcionados e até envergonhados, e a grande mídia desmoralizada para uma boa parte da população e exposta ao ridículo pela imprensa internacional.
Os novos movimentos sociais de esquerda e de centro-esquerda tomam as ruas, deixadas vazias pelos que pretendiam tirar Dilma, mas veem lentamente suas forças se esvaírem sem conseguir alterar efetivamente o jogo político e abortar o impeachment.
Aécio e Marina se recolheram, tão logo as denúncias de corrupção que os atingiam foram finalmente tornadas públicas pela grande mídia. Aécio perde prestígio e talvez não se recupere, pois sua presença não interessa mais nem mesmo aos tucanos. Marina se preserva para reaparecer no momento oportuno como uma possível alternativa de governo, mas, por enquanto, a cada vez que se manifesta mais explicita o interesse principal de promoção de sua candidatura.
Não obstante a paralisia institucional e das principais lideranças políticas do país, caminham céleres as iniciativas neoliberais, antipopulares e antinacionais, promovendo o desmonte do arremedo de Estado de bem-estar social montado durante os governos Lula e Dilma.
Considerando-se os agentes políticos e as instituições da República, só quem avança são os procuradores, a PF e a força tarefa da lava-jato, Moro e o STF, fazendo com que o jogo penda em favor dos golpistas na medida em que prendem apenas petistas e aliados e não os peessedebistas e peemedebistas que apoiam o governo Temer e que também são acusados de corrupção.
Imbuídos de uma missão salvacionista, eles são os novos atores que dominam a cena, sem que se possa afirmar efetivamente quais são os seus objetivos reais. Sua “missão” seria apenas “limpar o país”, livrá-lo da corrupção e iniciar a construção de uma novíssima República? Que República seria esta e quem a construiria? De onde advém a força que demonstram? Terão suporte internacional? Por que se dedicam a desmontar as únicas empresas nacionais em condições de competir no mercado internacional e desenvolver tecnologia de ponta – a Petrobras e as grandes empreiteiras? Para onde conduzem o país e a quem o entregarão?
Uma disputa secular
O que sabemos, sem dúvidas, é que há uma disputa instalada no mundo e também no Brasil desde, pelo menos, o século XIX, sobre como desenvolver o sistema capitalista na economia e na política. De um lado, as propostas globalizantes, lideradas pelo grande capital internacionalizado e, de outro, os projetos nacionais. De um lado, a crença no livre mercado e na sua autoregulação e, de outro, a defesa da ação do Estado como indutor do crescimento da economia nacional, protegendo as indústrias nascentes, e realizando investimentos estratégicos para criar competitividade e conquistar mercados.
Ao longo do século XX, em meio a conflitos e guerras, cresceram as tentativas de projetos nacionais de desenvolvimento com forte presença do Estado e com inclusão social, como por exemplo no Japão e na Alemanha, e o desenvolvimento dos chamados Estados de Bem Estar Social nos países desenvolvidos, no pós-segunda guerra mundial.
Com a crise do bloco socialista e das alternativas nacionais de desenvolvimento nos países do terceiro mundo nas duas últimas décadas do século XX, avançaram novamente as posições ultraliberais de defesa do livre mercado internacional, a globalização e a financeirização da economia sem se submeterem a qualquer controle público.
Nesse processo, num movimento de defesa de mercados regionais, criaram-se os blocos econômicos ao mesmo tempo em que cresceu o individualismo e a xenofobia e entraram em crise os partidos políticos tradicionais, firmados na antiga dicotomia capital-trabalho e favoráveis a projetos nacionais de desenvolvimento, de um lado, ou de integração ao capital internacional, de outro.
No Brasil, esta disputa de caminhos de desenvolvimento do capitalismo se manifestou já a partir do final do Império, com a abolição da escravatura e a proclamação da República sem povo – os bestializados, na definição de José Murilo de Carvalho. As revoltas dos tenentes, na década de 1920, a Revolução de 1930, os conflitos e as instabilidades políticas de 1945, 1954, 1956/9, 1961 e 1964, bem como o processo de instabilidade política em curso, são expressões desta disputa que se arrasta no tempo.
De um lado, a ascensão de Getúlio Vargas e a criação do Estado Nacional Moderno no Brasil marcaram a vitória parcial e temporária da posição daqueles que, nos anos de 1960, se tornaram conhecidos como “nacional-desenvolvimentistas”. Neste grupo, além de Vargas, incluem-se ainda, com diferentes graus de defesa do projeto nacionalista e também do sistema político democrático, Juscelino Kubitschek, João Goulart, (Castelo Branco, Garrastazu Médici, Ernesto Geisel e João Figueiredo – durante a ditadura civil militar de 1964/1985), Itamar Franco, Lula da Silva e Dilma Rousseff.
De outro lado, a destituição de Vargas e a eleição de Dutra, em 1945, e o suicídio de Vargas, em 1954, marcaram momentos de vitórias parciais e temporárias dos favoráveis à associação plena com o capital estrangeiro que, nos anos de 1970/80, ficaram conhecidos como adeptos da teoria do “desenvolvimento associado e dependente”, formulada inicialmente e de modo crítico por Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto em 1965/67. Fazem parte deste grupo, Eurico Gaspar Dutra, Jânio Quadros, (Costa e Silva – durante a ditadura), José Sarney, Collor de Mello, FHC e Michel Temer.
A farsa do impeachment sem base jurídica é a nova face da mesma e contínua disputa
Durante os anos Lula/Dilma, auxiliados por uma conjuntura internacional de crise da economia norte-americana e europeia, mas de favorecimento da economia nacional em virtude da valorização das commodities brasileiras (minério e soja, principalmente), impulsionadas pelo crescimento acelerado da China, foi possível que o governo federal, com forte compromisso popular, adotasse políticas de investimento em infraestrutura e geração de tecnologia nacional, valorização da educação e inclusão social.
A chegada da crise à economia brasileira, em 2013/4, com a desaceleração do crescimento chinês e a retração do preço internacional das commodities, aliada à inabilidade política e aos erros de condução da economia por parte do governo Dilma, possibilitaram que as insatisfações populares latentes crescessem exponencialmente, sem ser orientadas para a defesa do Estado de Bem Estar Social que vinha sendo construído no país.
As manifestações de 2013 e também os chamados “rolezinhos” expressam a eclosão desse fenômeno no âmbito das classes médias e populares recém inseridas ao mercado de consumo de massas. Insuflados pela grande mídia, os protestos que tinham como alvo inicial os reajustes das tarifas de transporte público voltaram-se contra o governo, pedindo principalmente a ampliação e melhoria dos serviços de saúde e de educação e o combate à corrupção. De roldão, foram incluídos todos os tipos de pautas, desde o combate à homofobia e à violência contra as mulheres até a liberalização do porte de armas e a proibição do aborto, por exemplo.
A ausência de partidos políticos e lideranças aptas para canalizar e dar direção à insatisfação generalizada abriu espaço para o avanço de grupos oportunistas, desde o chamado Movimento Brasil Livre até os black-blocs, que direcionaram suas ações visando o enfraquecimento do governo e culminaram com a campanha do impeachment, a partir da reeleição da presidenta Dilma, liderada pelos partidos e lideranças que não aceitaram a derrota nas eleições presidenciais.
A piora das expectativas econômicas em função da crise que chegou ao país, o aumento da inflação e do desemprego, mais a ação articulada entre os promotores, delegados e juízes da Operação Lava Jato e a imprensa, e ainda entre as lideranças derrotadas nas eleições criaram o caldo de cultura que possibilitou o afastamento de Dilma e a entrega do governo ao grupo de Michel Temer, Eduardo Cunha, Eliseu Padilha, Geddel Vieira Lima e Romero Jucá. Um grupo cuja principal ideologia é o espólio do Estado nacional e que nunca chegou a elaborar um projeto de desenvolvimento para o país, fosse ele qual fosse – nacional ou associado/dependente dos grandes grupos da economia internacional, mantendo-se sempre como aliado principal dos vitoriosos em eleições presidenciais.
Este grupo, além disso, não detém legitimidade popular e nem força política suficiente para se manter no poder. Eduardo Cunha, deputado federal afastado da presidência da Câmara por corrupção e na iminência de perder seu mandato parlamentar, controla o governo e seus principais agentes políticos, a começar pelo presidente interino – mantido sob rédeas curtas, por meio da imposição de ministros e lideranças – sabe-se lá pela utilização de quais meios e métodos.
Na tentativa de conquistar o apoio dos setores empresariais e políticos comprometidos ideologicamente com as visões ultraliberais na economia e com concepções de desenvolvimento associado ao mercado e aos grandes centros hegemônicos do capital, o grupo atualmente no exercício da Presidência da República acelera a adoção de medidas de desmonte das políticas sociais e das estruturas do Estado voltadas para a promoção do desenvolvimento nacional de modo relativamente autônomo.
Este é o motivo para a voracidade e a velocidade das ações empreendidas por Temer e seu grupo, com a adoção de ações que visam à desarticulação acelerada do projeto de Estado de Bem Estar Social que vinha sendo implementado no Brasil durante os governos de Lula e de Dilma. Propondo-se a criar uma “revolução” na economia e nas instituições, capaz de fazer o Brasil retomar o crescimento, o governo Temer tem promovido uma política de terra arrasada, a partir da qual tudo teria que ser reconstruído noutros termos.
Citem-se, no plano social, por exemplo, a desobrigação de aplicação de valores do orçamento da União definidos constitucionalmente para as áreas de educação e saúde; a revisão das políticas de habitação popular; o não pagamento do reajuste do valor do Programa Bolsa Família; a aceleração da tramitação dos projetos de lei que visam a mudança na política previdenciária e de aposentadorias; a terceirização total das contratações de mão de obra, com a consequente precarização do trabalho e o enfraquecimento das organizações sindicais, bem como a alteração de outros dispositivos da CLT que garantem conquistas dos trabalhadores.
Vai na mesma direção, no plano das relações internacionais e da política econômica, a pressa com que o governo interino se lançou ao esforço para desmontar a política de integração Sul-Sul, empreendida pelos governos Lula e Dilma, e para reintegrar o Brasil ao sistema de comércio controlado pelos EUA; a tentativa em curso de alteração do regime de partilha para a exploração do petróleo na zona do Pré Sal, que visa desobrigar que a Petrobras participe com pelo menos 30% em qualquer contrato de exploração de petróleo firmado com empresas privadas.
Se aprovada, esta alteração colocará nas mãos de empresas não brasileiras a quinta maior reserva de petróleo do mundo, inviabilizará a criação do Fundo Soberano, que é uma espécie de investimento de longo prazo realizado pelo país, e impedirá que parcela importante dos royalties do petróleo sejam revertidos para o Fundo Social destinado à Educação e à Saúde.
Destaque-se, ainda, a proposta de emenda constitucional, apresentada como a salvação das finanças públicas, que visa congelar os gastos com custeio e manutenção da máquina estatal e dos investimentos nas áreas sociais, limitando seu reajuste à correção da inflação do ano anterior. Uma limitação que o governo Temer já impõe como condição para a revisão da dívida dos estados subnacionais com a União.
Se o novo contrato for aceito pelos estados, não apenas os atuais governadores, mas também todos os futuros governadores durante os próximos 20 anos estarão impedidos de aumentar os gastos de investimento, de políticas públicas e de custeio. Considerando-se apenas o aumento vegetativo da população, em declínio mas ainda positivo, a consequência será não apenas o congelamento dos gastos dos governos, mas a diminuição destes gastos.
Com isto, piorarão ainda mais as políticas de segurança, de saúde e de educação, por exemplo, e o Estado estará impossibilitado de investir em obras públicas como estradas, transportes, energia, infraestrutura etc. Diversos serviços que hoje são prestados pelo Estado e obras que são executadas diretamente por agências e órgãos públicos passarão a ser prestados e realizados por empresas privadas. Além disso, os salários de todos os servidores e servidoras públicas serão congelados aos níveis atuais, pois só serão reajustados para repor a inflação do período anterior aos reajustes.
O avanço do atraso e a necessidade da construção de uma frente ampla democrática
O avanço das políticas ultraliberais, com a tentativa de desmonte dos Estados de Bem-Estar Social, hoje em curso desde o plano internacional, passando pelo nacional e chegando aos estaduais, tem aberto espaço para a manifestação de grupos xenófobos e obscurantistas, dispostos a estancar e a fazer retroceder os avanços das liberdades civis já conquistadas em boa parte do mundo. No Brasil, citando-se apenas um exemplo crucial, no plano da educação, avançam as propostas de alteração no Plano Nacional de Educação, de interrupção da integração curricular que começava a ser construída e, até, de aprovação de legislação que proíbe o pensamento crítico nas escolas públicas, sob a alcunha de “escola sem ideologia”, mas que melhor seria denominar de escola com ideologia única.
Tanto no plano nacional quanto no plano estadual, só há uma saída para o enfrentamento dessas forças reacionárias e antidemocráticas que avançam. A construção de uma grande frente popular em defesa da democracia e do estado democrático de direito, que congregue partidos políticos, sindicatos, centrais sindicais, comitês e movimentos em defesa da democracia e contra o impeachment e todos aqueles que, engajados ou não em partidos e movimentos, estejam dispostos a defender a democracia. Uma frente suficientemente ampla para agregar todos os democratas, sejam eles liberais, sejam socialistas e até os que não têm definição político-ideológica firmada, mas defendem a democracia.
A intransigência de alguns partidos de esquerda e de centro-esquerda, apoiada em avaliações de que poderão firmar posições e preservar territórios, e o oportunismo de outros, acreditando que se apropriarão do espólio dos derrotados, só favorecerá o retrocesso e os avanços da direita golpista que hoje assalta o poder e as riquezas populares e nacionais. Frente às eleições municipais deste ano, cada partido lança candidatura isolada, justificando-se com a promessa de “união no segundo turno”, ao qual, possivelmente, nenhum deles chegará. Quando se derem conta do equívoco, a direita e o retrocesso já terão atropelado a todos.
Estamos em um momento de refluxo das forças democráticas e de esquerda em todo o mundo e também no Brasil. É hora de resistência, de acumulação de forças e de preparação para a reação de médio e de longo prazos. Disputas e divergências cabem e são bem-vindas nos momentos de avanço e de conquistas, pois nesses momentos é preciso se definir rumos e explicitar mais e novos objetivos a serem alcançados. Nos momentos de refluxo, como o atual, é preciso saber buscar semelhanças e, com elas, construir os consensos possíveis, para que se crie uma barreira capaz de conter o avanço das forças que não têm compromissos com os interesses nacionais, com as necessidades da ampla maioria da população e com a democracia.
Benedito Tadeu César – Cientista Político
No Já
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