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quinta-feira, 9 de setembro de 2021

Luis Nassif discute como o fascismo-bolsonarismo foi embalado pelo golpismo das elites nacionais

 O importante é analisar as raízes desse fenômeno, para que o combate não fique restrito às medidas institucionais - impeachment, julgamento, condenação e prisão da organização familiar criminosa.



Xadrez de como o bolsonarismo foi embalado pelas elites nacionais, por Luis Nassif

Peça 1 – os comícios

Certamente não foram apenas 120 mil manifestantes na Paulista, conforme os levantamentos enviesados da Polícia Militar de São Paulo. Desde as primeiras campanhas de rua, a brava PM sempre se esmerou em minimizar a quantidade de pessoas nas manifestações anti-impeachment e maximizar as manifestações pró-impeachment.

Portanto, não se minimize a relevância da manifestação. Mesmo que boa parte do público tenha vindo de fora, a multidão comprova, no mínimo, a capacidade de arregimentação dos bolsonaristas.

Definitivamente, o bolsonarismo veio para ficar, com ou sem impeachment de seu chefe.

O importante é analisar as raízes desse fenômeno, para que o combate não fique restrito às medidas institucionais – impeachment, julgamento, condenação e prisão da organização familiar criminosa.

Peça 2 – o lúmpen

Nos últimos tempos consolidou-se o conceito do lumpen aplicada não apenas ao proletariado. Vale para pequenos empresários, classe média e outros setores sem ideias próprias, sem organização, conduzidos por slogans e palavras de ordem que exploram seus preconceitos.

Quem é esse personagem? É um sujeito sem vinculações partidárias, pouco associativo, fechado em seu núcleo familiar e de amigos, que enxerga como ameaça qualquer input externo.

Esse personagem é frequente na história brasileira e sempre foi massa de manobra das chamadas elites em suas disputas políticas. Nos anos 50, foi o trabalho da mídia – notadamente da rádio Globo, no Rio de Janeiro, e do Estadão, em São Paulo – que mobilizou a classe média lumpen, valendo-se de dois temores quase ancestrais: a corrupção e o comunismo.

Desde sempre, manobrava algoritmos mentais, criando um bombardeio de frases soltas, slogans ameaçadores como forma de mobilização. 

Para tanto, consultem  o histórico artigo de Wanderley Guilherme dos Santos sobre o pré-64. Intelectuais de esquerda ironizavam os discursos de Carlos Lacerda, por serem rasos, desprovidos de conteúdo, meras manipulações da história. Mais arguto analista do seu tempo, Wanderley entendia o seu alcance: era o discurso que mobiliza o lumpen, fornecendo argumentos para as discussões familiares. Ou seja, no universo lumpen, o campo de batalha das ideias é a família, não o sindicato, o partido político. 

Mesmo assim, a coordenação das massas era externa, dos grupos econômicos que, através da mídia e dos políticos da época, articulavam os algoritmos analógicos.

Por trás desses pré-algoritmos, portanto, havia uma elite organizada. Em São Paulo, o golpe foi articulado nos clubes sociais de elite e nas associações empresariais, conforme livro de René Armand Dreifuss, “1964, a Conquista do Estado”. No Rio de Janeiro e em Brasília, em torno dos grupos da Sorbonne, de Castelo Branco e Golbery do Couto e Silva. Atrás deles, toda a plutocracia nacional e, obviamente, o interesse geopolítico norte-americano.

Com o golpe saindo vencedor, o lumpen voltava para a jaula e limitava-se a ser alimentado com a carne fresca dos Atos Institucionais e prisões arbitrárias, com a mídia mantendo acesa o mito do “inimigo” a ser destruído. 

Peça 3 – o lumpen na redemocratização

Na redemocratização, o lumpen foi isolado. 

Primeiro, pelos ventos da Constituição, uma lufada de modernização social em defesa dos vulneráveis, em uma momento em que a plutocracia ainda amargava a ressaca do fim do regime militar. Depois, pelo controle absoluto da política econômica – e do noticiário de mídia – pelo tal do mercado.

Desde então, o Brasil refletido na mídia passou a ser  o do Ministério da Fazenda e Banco Central. Comandaram a Fazenda alguns dos Ministros mais medíocres da história – de Pedro Malan a Henrique Meirelles, passando por Antônio Palocci. E eram enaltecidos diariamente. Não administravam problemas da economia, não faziam política econômica, não buscavam o desenvolvimento: sua função era atender às demandas de mercado, subordinar todas as decisões de políticas macro aos interesses do mercado, ainda que à custa do prejuízo geral do país.

Os principais veículos de comunicação – os jornais nacionais da noite – refletiam unicamente os temas de mercado. O noticiário de jornais diários e revistas semanais era um espelho da Vila Olímpia e do Leblon. E o lumpen era isolado em seus guetos sociais.

Com o tempo, o monumento humanista da Constituinte passou a enfrentar dois adversários.

No alto, o mercado tratando cada migalha de direitos, cada esboço de regulação, mesmo aquelas consagradas em países civilizados, como impeditivos da busca de eficiência pelas empresas. E com amplo respaldo da mídia.

Na base, o lumpen vendo o avanço das classes de menor renda sofrendo com a perda de status e atribuindo todas suas frustrações aos direitos das minorias.

Globalmente, depois da crise de 2008 e das políticas pós-crise, consuma-se o fracasso do modelo liberal como agente de promoção do bem estar geral.. Desmoralizou-se a ideia de que, liberando as empresas de qualquer compromisso ou de qualquer responsabilidade, haveria uma explosão de crescimento que beneficiaria a todos.

Mesmo assim, o enorme poder econômico acumulado pelos grupos financeiros, e a desmoralização da social-democracia, após a queda do Muro de Berlim, permitiram uma sobrevida cruel do modelo, com políticas monetárias e fiscais visando unicamente preservar os interesses da banca.

No Brasil, esse movimento inicial foi superado pela maneira com que Lula enfrentou a crise. Depois, os erros de política econômica da era Dilma Rousseff – que teve seu ápice no pacote econômico de Joaquim Levy – abriram campo para um novo movimento de manipulação do lumpen pela plutocracia nacional.

Desenhou-se, ali, a metodologia que, anos depois, seria repetida por Bolsonaro e que consistiu das seguintes etapas:

  1. Desmoralização do processo eleitoral.

As declarações de Aécio Neves questionando os resultados no mesmo dia das eleições; as tentativas do Ministro Gilmar Mendes, no Tribunal Superior Eleitoral, de tentar impugnar a chapa de Dilma, com amplo respaldo da mídia. Na última hora, Luiz Fux voltou atrás e, por um voto, não conseguiu a maioria que impugnaria a chapa Dilma-Temer.

  1. Criação de movimentos de massa pró-impeachment.

As grandes manifestações pró-impeachment foram diretamente coordenadas pela Rede Globo e pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP).

  1. A volta da ameaça comunista.

Coordenados pela revista Veja, os grupos de mídia dão início ao chamado jornalismo de esgoto, a mais deletéria deformação do jornalismo desde as campanhas dos anos 60. Nesse jogo, recorrem a todas as formas de manipulação, notícias falsas, criação de inimigos imaginários, teorias da conspiração. Veja, a propósito, “O Caso Veja – o naufrágio do jornalismo brasileiro”.

  1. O envolvimento dos poderes pela rua.

Com a Lava Jato, as manifestações populares serviram para emparedar autoridades, algumas de caráter fraco, como o ex-Procurador Geral Rodrigo Janot.

… outros, oportunistas pretendendo cavalgar as novas ondas, valendo-se do vácuo político criado pela Lava Jato para se apresentar como condutores de povos. Como Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, anunciando “as cortes constitucionais de todo o mundo” não como defensoras da Constituição, mas como “vanguarda iluminista”.

O passo seguinte foi o questionamento da Constituição, tarefa de desmonte conduzida pelo neoconstitucionalista Barroso, sempre em nome do iluminismo do Barroso.

  1. O desmonte da Constituição

Com a corte cooptada – caso Barroso e Luiz Fux – ou intimidada – caso Edson Fachin, Cármen Lúcia e Rosa Weber -, a Constituição passa a ser desmontada e as interpretações manipuladas para benefício de grupos de interesse. Foi assim no impeachment e, posteriormente, na escandalosa interpretação de permitir a venda de subsidiárias estratégicas de estatais, sem passar pelo Congresso.

O estupro da Constituição criou condições para a desmoralização da Justiça. A partir daí multiplicaram-se os abusos da primeira instância e dos tribunais inferiores, assim como de procuradores imbuídos do espírito da guerra santa, todos contra os “inimigos” que ousassem pensar de forma diferente.

Veja bem: estou falando do período pré-Bolsonaro, com o macartismo sendo diretamente conduzido pelos atuais defensores da democracia.

  1. A Ponte para o Futuro

Desde o início estava na mesa a Ponte para o Futuro, um projeto de destruição ampla das diversas formas de regulação e de defesa dos vulneráveis consagradas pela Constituinte.

É essa mesma frente que vai se somar a Bolsonaro em 2018 e lhe dar amparo político, o direito de destruir a cultura, a Educação, os direitos sociais, em troca dos grandes negócios da privatização.

Peça 4 – os componentes da era pré-Bolsonaro

Tendo como objetivo central os grandes negócios da privatização, durante anos, mídia, Supremo e Lava Jato ajudaram a reforçar todos os vícios do lumpen, a explorar os baixos instintos e a dividir o país entre homens de bem e malvados bolivarianos.

Construíram, assim, paulatinamente, todos os elementos que, logo depois, serviriam de alimento para o bolsonarismo.

  • O uso de fake news e teorias conspiratórias pela mídia;
  • O tratamento de “inimigo” para todo pensamento divergente, pela mídia, pelo Supremo e pelo Ministério Público, com o direito penal do inimigo se esparramando por todo o sistema jurídico.
  • Manipulação das leis e da constituição pelo Supremo, com propósitos políticos, não apenas no impeachment, mas no desmonte de direitos e na queima das estatais;
  • Grandes passeatas alimentadas a ódio. Na Copa do Mundo qualquer pessoa que saísse com uma blusa vermelha estava exposta a agressões da malta.
  • O desmonte de todas as políticas públicas a partir da era Temer, assim como a submissão total da política econômica ao mercado através da Lei do Teto, uma excrescência contábil preparada por imbecis e enaltecida por imbecis, julgando ter encontrado a pedra de Roseta para expulsar os gastos sociais do orçamento por 20 anos.
  • Todos os atos públicos, nos três poderes, subordinados ao grande negócio da privatização.

Como consequência, manteve-se a estagnação da economia, a volta do país ao mapa da fome, a ampliação da miséria e da falta de perspectivas para a classe média e a redução do mercado de consumo para o capital produtivo.

O que não se esperava é que o monstro das ruas, o lumpen, não mais obedecesse à voz de comando da mídia tradicional. As novas tecnologias traziam novos elementos de coordenação.

Peça 5 – as redes sociais, a ultradireita e a contravenção

Quando as redes sociais se espalham, descobre-se a nova lógica da informação e o poder dos algoritmos, dentre os pioneiros na utilização dos novos instrumentos estavam os grupos econômicos que transitam nas fronteiras da legalidade.

São atividades tolhidas pelo avanço das regras sanitárias, ambientais e sociais, como a indústria de armas, dos cassinos, do lixo, das atividades poluidoras, como mineração e indústria do petróleo, de olho nas reservas indígenas.

Os primeiros financiadores da ultra direita saem desses grupos, dos irmãos Koch a Sheldon Adelson, o chefe da máfia dos cassinos de Las Vegas.

Sheldon Adelzon

A partir do controle sobre as novas tecnologias, esses grupos se aproximam da ultradireita mundial. Dos supremacistas brancos, trazem o discurso. Dos neopentecostais, a visão bíblica necessária para se contrapor à racionalidade dos fatos. De todos esses grupos, a ideia da desregulação total das economias, o fim dos controles sociais e ambientais, em nome de uma suposta liberdade individual.

O discurso supremacista sai das bolhas analógicas dos confins dos Estados Unidos e entra nas bolhas digitais por todo o mundo, passando a se aproximar de partidos políticos e a financiar ditaduras.

Na foto abaixo, jantar na embaixada brasileira, logo após a posse de Bolsonaro, com Steve Bannon à sua esquerda, Olavo de Carvalho, Sérgio Moro e demais autoridades.

O uso de ferramentas digitais em eleições foi inaugurado por José Serra em 2010. O assessor americano contratado trouxe não apenas a metodologia de atuação nas redes, mas também os motes capazes de influenciar o público, a maneira de atirar carne fresca ao lumpen. Temas como aborto, Bíblia, orações são incorporados por Serra com a naturalidade de um vira-latas intelectual, na demonstração definitiva da ausência total de princípios que caracteriza a elite nativa.

Por não ser puro-sangue, Serra não assumiu a liderança do lumpen.  Logo depois, com a Lava Jato, monta-se uma nova rede, mais ampla e com o discurso moral e anticomunista consolidado.

A esta altura, firmemente associado à ultradireita internacional, o bolsonarismo passa a beber nas tecnologias de Bannon. 

Em vez dos grupos de mídia, o agente coordenador do lumpen passa a ser o bolsonarismo, através do WhatsApp. E consegue manter, por algum tempo, o pacto com o mercado, com o Supremo e tudo, graças às promessas de mais desmonte do Estado e mais negócios da privatização.

Peça 6 – relendo a história

Agora, chega-se na hora da verdade.

O país atravessa o mais grave período da sua história, com mais de 600 mil mortos pela epidemia, a fome grassando, a miséria aumentando,a inflação, uma enorme crise elétrica à vista e a democracia sob ameaça dos hunos.

Mas a enorme tragédia permitiu um avanço inestimável na maratona intelectual para decifrar o enigma Brasil.

Primeiro, a constatação do fato fundador: a escravidão, uma mancha que se incorporou definitivamente na mentalidade das elites brasileiras – dos quatrocentões aos imigrantes que enriqueceram por aqui, dos pequenos empresários à classe média bolsonarista. Não se trata apenas de uma enorme indigência cultural, um provincianismo atroz, uma falta de cultura assustadora, de um bando de pavões cultivando a modernidade superficial dos salões, ou as lantejoulas da periferias, ambos compartilhando o sonho de um imóvel em Miami. Mas também de uma ausência total do sentimento de Nação, da solidariedade, da generosidade para com os vulneráveis.

Segundo, a enorme mediocridade intelectual e moral das chamadas elites nacionais, quase todos pensando na próxima “tacada” – a expressão criada pelo cunhado de Rui Barbosa para descrever as jogadas do tio, Ministro da Fazenda.

Com ou sem Bolsonaro, todos os pilares do regime democrático estão apodrecidos. E começaram a apodrecer no dia em que mídia, Ministério Público e Supremo permitiram as lambanças da Lava Jato.

Agora, à luz da enorme tragédia nacional, com a democracia em risco, só resta a dissecação do cadáver daquela que foi, um dia, uma esperança de democracia social.

  • Os grupos de mídia utilizando o jornalismo para negócios pessoais. 
  • O mercado investindo contra qualquer tentativa mínima de taxação. 
  • O Supremo demonstrando uma ignorância atroz sobre qualquer tema econômico ou social. A maneira como convalidou a privatização de subsidiárias das estatais, sem uma discussão mínima sobre a lógica dos negócios, o desmonte dos direitos sociais, sem atentar para as consequências sobre o mercado de consumo e a paz social, o endosso à Lava Jato, sem um gesto de defesa de empresas e empregos, comprovaram a extraordinária mediocridade da Suprema Corte – que só agora se permite algum gesto de grandeza, na resistência a Bolsonaro.
  • O Ministério Público Federal sendo capaz de cair de cabeça na cooperação internacional sem dispor de um centavo de informação sobre os jogos da geopolítica e os interesses nacionais. 
  • As Forças Armadas não conseguindo sequer definir pontos óbvios sobre segurança nacional. O nível intelectual das FFAAs está refletido no semblante do general Augusto Heleno, cuja cabeça lateja quando pensa.
  • Os partidos políticos sendo incapazes de desenvolver um projeto nacional no sentido amplo. O PSDB preferiu manobrar as manadas da ultradireita – apropriadas depois pelo bolsonarismo. O PT se contentou com o trabalho meritório de reduzir a desigualdade, mas sem arranhar os pontos centrais das distorções brasileiras, os privilégios absurdos do mercado e de corporações de Estado. E foi incapaz de montar um conselho de estrategistas capaz de demover Dilma Rousseff da caminhada implacável para o desastre.

A reconstrução será dura. O preço do subdesenvolvimento, somado à herança escravagista, torna o desafio maior ainda. Exigirá uma enorme auto-crítica geral, que permita o primeiro passo para a reconstrução nacional: colocar o povo como centro de todas as políticas públicas, completando a obra inacabada da Abolição.

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domingo, 3 de janeiro de 2021

Xadrez de Bolsonaro e o impeachmentômetro, por Luis Nassif

 

  Desde a queda de Fernando Collor e de Carlos Andrés Peres, da Venezuela, no início dos anos 90, o impeachment se tornou o modelo de golpe adotado pelas recém nascidas democracias latino-americanas depois do período militar. É um golpe que tem como agentes principais a mídia, o Congresso e o Judiciário. E, em alguns casos, a ajuda externa através de instituições ligadas ao Departamento de Estado e Departamento de Justiça norte-americanos.


Do Jornal GGN:



Por Luis Nassif

Peça 1 – o impeachment é um ato eminentemente político

Desde a queda  de Fernando Collor e de Carlos Andrés Peres, da Venezuela, no início dos anos 90,  o impeachment se tornou o modelo de golpe adotado pelas recém nascidas democracias latino-americanas depois do período militar. É um golpe que tem como agentes principais a mídia, o Congresso e o Judiciário. E, em alguns casos, a ajuda externa através de instituições ligadas ao Departamento de Estado e Departamento de Justiça norte-americanos.

O modelo é de simples entendimento:

1. O modelo democrático tem inúmeras vulnerabilidades, a principal das quais é o financiamento de campanha. Trata-se de uma vulnerabilidade que afeta todos os partidos que ganharam expressão. Só são “puros” os partidos pequenos, sem dimensão nacional.

2. Países desenvolvidos conseguiram montar modelos que blindam o Executivo contra interferências dos demais poderes. Nos Estados Unidos, por exemplo, o Presidente tem o poder de demitir procuradores, sem precisar justificar. Há uma estrutura federativa que atrapalha articulações de golpe e um Judiciário que, preferências políticas à parte, tem compromisso com os chamados princípios fundadores.

3. Nos países menos desenvolvidos, o Executivo é fraco. Não é por outro motivo, por aqui historicamente floresceram as ditaduras militares e criou-se, na oposição, uma inclinação irresistível aos golpes, sempre que se perdem os discursos políticos.

O modelo do impeachment é simples.

1. Se um presidente não consegue atender às demandas políticas e permite a criação de maiorias contrárias no Congresso, entra na linha de fogo, que ganha enorme dimensão com a adesão de grandes grupos de mídia.

2. A escandalização é uma ferramenta grosseira, mas eficaz, pela qual a mídia bombardeia diariamente a opinião pública com escândalos verdadeiros ou falsos, grandes ou irrelevantes, pouco importa, mas criando um clima opressivo insuportável, que em geral explode em grandes manifestações de descontentamento.  Era um ensaio do que, depois, foi potencializado pelas redes sociais com seus algoritmos.

3. No pós-guerra, as Constituições foram elaboradas para impedir a ditadura de maiorias eventuais. Mas, nas catarses que antecedem o impeachment, o Judiciário é cooptado por ser, em geral, submisso ao establishment, influenciada pela mídia e, no caso de alguns juízes, encantados com a possibilidade de fazerem parte de blocos de poder.

Não há  governo latino-americano que consiga resistir à dobradinha mídia-Justiça. O único a resistir foi a Venezuela, mas à custa de um gigantesco esquema de cooptação das Forças Armadas e da Justiça, e com a formação de milícias populares. Enfim, atropelando todos os princípios democráticos.

Peça 2 – o impeachment brasileiro

Em três momentos, mídia, partidos e Justiça tentaram o golpe do impeachment. Foram bem sucedidos em dois casos – Fernando Collor e Dilma Rousseff – e falharam em um – o “mensalão”.

Em todos os casos, a motivação central foram demandas não atendidas.

O primeiro ensaio do impeachment de Lula foi no “mensalão”, uma enorme armação da Procuradoria Geral da República e do ex-procurador Joaquim Barbosa, indicado para ministro do Supremo. Todas as armas utilizadas pela Lava Jato foram testadas, inicialmente, no “mensalão”, desde provas falsas – o tal desvio da Visanet, que jamais ocorreu – até correlações enfiadas no processo  a golpes de martelada – como a tentativa de relacionar pagamento de campanhas eleitorais dos partidos com votações ocorridas no Congresso.

Foi consequência de  um dos grandes erros políticos do PT, ao conferir poder autônomo total ao MPF, com a aceitação tácita da indicação do procurador mais votado na lista tríplice para Procurador Geral da República. E a despreocupação na escolha dos Ministros do STF – um, para contentar o aliado Sérgio Cabral; outro, por que fez a defesa de um terrorista italiano ameaçado de deportação; outra, pela amizade com a filha da presidente; outro, por se apresentar como defensor do MST; outro por ser negro, sendo que havia outros juristas negros com convicção democrática comprovada.

Também incorreu em uma enorme cegueira ao não perceber que não tinha espaço para se valer das mesmas ferramentas políticas dos adversários, de cooptação de partidos e empresas.

O álibi da “pedalada” foi endossado pelo Supremo e por juristas que, hoje em dia, se apresentam como defensores da Constituição.

Peça 3 – as táticas golpistas de Bolsonaro

Bolsonaro é a continuação destrambelhada do governo Michel Temer. Seguiu a mesma cartilha de desmonte de políticas sociais, destruição do Estado e abertura das estatais aos grandes negócios privados. Graças a isso, conseguiu salvo-conduto para governar, mesmo com acusações de envolvimento com milícias, com o Escritório da Morte, inquéritos contra filhos, interferências nas máquinas públicas, enfim, a síntese, às avessas, do “Iluminismo” preconizado pelo Ministro Luis Roberto Barroso, quando ajudou a construir o desastre político-institucional que levou a Bolsonaro.

Até agora, o jogo de Bolsonaro com as instituições segue um roteiro óbvio.

Seu objetivo final é a tomada de poder e o controle absoluto das instituições. Disso não há dúvida. Mas é um sem-noção, que age pavlovianamente em duas frentes.

No primeiro tempo, Bolsonaro agiu explicitamente, com os filhos clamando abertamente pela intervenção militar, no fechamento do Supremo. A ofensiva perdeu impulso com o surto em que Bolsonaro entrou, quando as investigações do Ministério Público Estadual do Rio de Janeiro chegaram perto dos filhos. Bolsonaro perdeu o rumo, tentou antecipar o golpe, buscando a adesão das Forças Armadas.

Foi impedido por uma tática brilhante do STF.

Primeiro, encontros de Gilmar Mendes e Dias Toffoli com fontes militares para sentir o pulso da corporação. Perceberam que os militares não entrariam na aventura do golpe. Depois, Alexandre de Moraes e Celso de Mello pagando  para ver. Bolsonaro  tentou uma convocação militar, não encontrou eco, e recuou.

Se fossemos montar um impeachmentometro, naquele momento provavelmente Bolsonaro teria chegado perto dos 90o – 100o é a fervura final.

Mudou o estilo e ingressou no segundo tempo do jogo, mais tático, certamente com a colaboração dos militares que levou para o Palácio. Passou a falar menos em público, cooptou partidos políticos, colocou militares em cargos-chave de todos os setores, ampliou a entrada de armamentos, em um quadro claro de preparativo para a segunda tentativa do golpe. Com a renda básica – que caiu no seu colo – melhorou a popularidade, a ponto dos idiotas da objetividade terem descoberto insondável talento político em seu estilo.

Hoje, a tática silenciosa emula o Exército de Brancaleone, do diretor italiano Mario Monicelli. O filme trata de temas bastante atuais, a peste negra, as relações feudais do país, e Brancaleone, que quer reivindicar um feudo e vai para a guerra cercado por um grupo de elementos mal-armados, mal encarados, temerosos, que procuram fugir das situações de maior risco. Não há melhor paralelo para o exército de Bolsoleone, com seus generais estranhos comandando as tropas formais, e trocando sopapos com os filhos, incumbidos da guerrilha pelas redes sociais.

Peça 4 – as espadas de Dâmocles

A apatia do Supremo não desarmou as várias espadas de Dâmocles que continuam pairando sobre a cabeça de Bolsonaro Há propostas de impeachment na Câmara, denúncias apuradas pelo Supremo Tribunal Federal e um processo que corre no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) sobre o uso de esquemas de Fakenews nas eleições de 2018. Trata-se de um processo menos doloroso que o impeachment formal, que teria que passar pelo Congresso, ou os crimes de responsabilidade, que teriam que ser julgados pelo Supremo.

Se a chapa fosse condenada em 2020, haveria a convocação de novas eleições. Em 2021, quem assumiria seria o presidente da Câmara. Por aí se entende a tentativa do Supremo de garantir a reeleição de Rodrigo Maia, manobra frustrada quando Luiz Fux e Luís Roberto Barroso recuaram, intimidados pelas críticas gerais à interferência do STF. Ou seja, o STF teve todo poder do mundo para derrubar um governo legitimamente eleitor, mas “de esquerda”, e teria gastos seu arsenal de arbitrariedades para defender o país de um governo genocida.

De qualquer modo, é uma hipótese que fica parada no ar.

Peça 5 – o aumento do impeachmentômetro

Nas últimas semanas, o impeachmentômetro voltou a subir perigosamente devido aos seguintes pontos:

  1. Caso Abin e Receita

Um caso de banditismo explícito. O governo mobilizou a ABIN (Agência Brasileira de Inteligência) contra funcionários públicos que investigaram o filho do presidente. O último caso similar foi de Gregório Fortunato e sua “guarda negra”, que fazia a segurança de Getúlio Vargas.

  1. Liberação geral de armas

Em plena explosão de assaltos armados, de ampliação das milícias armadas, Bolsonaro dá mais um passo para a liberação geral de armas e de flexibilizaçao nos sistemas de identificação dos projéteis.

2. O genocídio da saúde.

Nas últimas semanas, a ofensiva de João Döria Jr, de lançar na frente a vacina do Butantã, produziu um novo tilt na cabeça de Bolsonaro, que tomou as seguintes medidas com ameaças diretas à saúde pública:

  • ameaçou boicotar a aprovação da vacina do Butantã
  • já está claramente tipificada sua responsabilidade no fracasso da política de saúde contra o Covid e na morte adicional de dezenas de milhares de pessoas.

3. Desperdiçou R$ 250 milhões em cloroquina.

Para ser colocado em farmácias populares, meramente para tentar entrar de carona na redução previsível dos casos, com a vacinação.

4. Até agora não aprovou o orçamento para 2021;

5. Promoveu uma represália direta contra a Globo, 

Proibiu o bônus de veiculação (pagamentos para agências que trazem publicidade) apenas para ela. A Globo tem ampla influência junto a dois Ministros chaves, Luiz Fux, presidente do STF, e Luis Roberto Barroso, presidente do Tribunal Superior Eleitoral. O editorial extravagantemente virulento da Folha, neste domingo, mostra que a mídia quer subir a fervura de Bolsonaro.

6. Enviou documento fraudado ao STF

Pressionado a entregar o plano de vacinação, o governo entregou um plano com a assinatura de dezenas de cientistas. Constatou-se que eram assinaturas falsas.

O ponto de fervura será a partir de janeiro se Bolsonaro não mudar o comportamento em relação às vacinas. A segunda onda de Covid estará no auge, as indecisões de Paulo Guedes estarão sob escrutínio diário

Não significa que o impeachment sao favas contadas.

A leitura do cenário é a seguinte: se não mudar o estilo e não surgirem fatos novos, o resultado final será o impeachment.

No meio do caminho, ocorreram eventos não planejados – como a derrota da manobra do STF para permitir a reeleição de Rodrigo Maia.

No movimento anterior, Bolsonaro chegou a abrir mão do ministro “terrivelmente evangélico” para o Supremo, como forma de acender o cachimbo da paz com o Supremo.

Pressionado, poderá até recuar nas represálias contra a Globo e voltar a despejar publicidade nos veículos de mídia recalcitrantes. Para o Supremo, este é o ponto mais sensível, não o acréscimo de dezenas de milhares de pessoas à morte, com suas loucuras à frentre da saúde.

De qualquer modo, o impeachmentômetro voltou a subir para o índice de 90o.

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sábado, 2 de janeiro de 2021

Xadrez de 2010, a década da infâmia, que uniu a Casa Grande, a mídia empresarial, a Fiespe, partes do judiciário e militares contra o do Brasil por Luis Nassif

 

Lula foi vítima do próprio sucesso. De um lado, ganhou uma força política imbatível. Sem perspectivas de conquistar a presidência, a oposição passou a conspirar. De outro lado, incensado mundialmente, confiou desmedidamente na sua intuição política e republicanamente desarmou-se.

Xadrez de 2010, a década da infâmia, por Luis Nassif


O Brasil vive o seu maior desafio como nação. Nos últimos anos houve uma hecatombe institucional cujos maiores responsáveis foram os grupos de mídia e o Supremo Tribunal Federal. Em uma disputa selvagem por poder,  foram jogadas fora todas as conquistas da Constituição de 1988, desmontou-se o modelo político, destruíram-se as maiores fontes geradoras de emprego, desmontaram-se as políticas sociais, educacionais, científico-tecnológicas e matou-se provisoriamente o futuro, uma destruição iniciada no interinato de Michel Temer e consumada no governo Jair Bolsonaro.

Os historiadores, cientistas políticos, talvez consigam explicar, no futuro, o que levou uma nação ao suicídio.

Partidos políticos

Tudo começou quando um partido de esquerda, o PT, movimentou-se para o centro-esquerda, a social-democracia. Tinha como trunfo instrumentos da social-democracia que faltavam ao antigo aspirante, o PSDB, como sindicatos, movimentos sociais e um líder popular de expressão. E foi bem sucedido em suas políticas sociais, apesar da oposição infame da mídia.

Por seu lado, a financeirização empreendida no governo Fernando Henrique Cardoso, a morte de lideranças históricas, como Mario Covas e André Franco Montoro, a ascensão de duas lideranças inescrupulosas, como José Serra e Aécio Neves, e de uma liderança medíocre, como Geraldo Alckmin, afastaram cada vez mais o PSDB de qualquer veleidade programática. Sob FHC, Aécio e Serra, principalmente quando a popularidade de Lula bateu recordes, o PSDB tornou-se cada vez mais um partido com uma única bandeira: o “delenda PT”.

Mídia

Simultaneamente, os grupos de mídia entram em violenta crise econômica e, sem estratégia para enfrentar a quebra de barreiras representada pelos novos meios de comunicação, resolveram ganhar protagonismo político: “nós somos a verdadeira oposição”, dizia Roberto Civita, o pai do modelo. Teve início um período de jornalismo de esgoto, uma arma de guerra que estuprou todos os princípios jornalísticos, democráticos, plantou o ódio e contaminou irreversivelmente a democracia brasileira.

Supremo Tribunal Federal

Com suas armas preferidas – os ataques aos recalcitrantes e lisonja aos que aderiram – a mídia passou a monitorar as ações do Supremo, processo acentuado pela imprudência dos julgamentos televisionados e pela transformação de Ministros em celebridades.

Ministros dignos foram submetidos a escrachos; ministros indignos a aplausos televisivos; Ministros medíocres saudados como grandes poetas ou frasistas. E, com cenoura e chicote, o Supremo foi se moldando aos novos tempos de incúria.

Tinha-se, portanto, um partido que trocou a social-democracia pelo discurso de ódio, uma mídia que pretendia se tornar poder político para se salvar, e um Supremo passando a atuar sem os limites impostos pela Constituição.

Mas não ficou nisso. O vírus inicial espalhou-se por todos os poros da República.

As corporações públicas

As profissões de elite do setor público voltaram  a ser prestigiadas com salários elevados. A nova elite do funcionalismo abdica da função de servidor público para assumir o espírito dos CEO de mercado. Como CEOs públicos,  puderam frequentar cursos superiores, cursar MBAs, ganharam bolsas de suas instituições para estudar fora. Agora, queriam seu naco de poder.

Essa onda de protagonismo foi se espalhando pelo setor civil armado do Estado, as corporações com poder da caneta. O aprimoramento dos sistemas de controle, com o Tribunal de Contas da União, Controladoria Geral da União, Ministério Público Federal, criou entidades de poderes ilimitados, especialmente depois que a campanha em torno da Lava Jato oficializou a máxima de todo poder aos Catões.

Com o vácuo institucional, até as Forças Armadas entraram no jogo, através do seu comandante, general Villas Boas.

O PT

O julgamento do “mensalão” marcou o início desse jogo macabro, de falsificação diária de notícias, de fabricação diuturna de escândalos e de manipulação de provas.

Lula venceu a primeira rodada de golpe com a maneira como enfrentou a crise de 2008, que alçou-o à condição de político mais popular do planeta.

Durante algum tempo o país ressuscitou a auto-estima dos tempos de JK. O modo de ser brasileiro, as políticas sociais, o soft power, a liderança diplomática sobre os países do sul, o avanço diplomático-econômico na África, Oriente Médio, o sucesso do etanol e do agronegócio, a mediação de conflitos no Oriente Médio, tudo apontava para o nascimento de uma nova Nação.

Lula foi vítima do próprio sucesso. De um lado, ganhou força política imbatível. Sem perspectivas de conquistar a presidência, a oposição passou a acelerar a conspiração. De outro lado, incensado mundialmente, confiou desmedidamente na sua intuição política e desarmou-se. Descuidou-se nas indicações para Ministros do Supremo e abriu mão de qualquer tentativa de influenciar  até  poderes sob responsabilidade da Presidência – como a Polícia Federal, a indicação do Procurador Geral da República. Foi terrivelmente imprudente na negociação de cargos na Petrobras.

Mais que  isso, cometeu dois erros fatais: na indicação da sua sucessão  e ao abrir mão  de concorrer nas eleições de 2014.

O caos

Aberto o caminho do vale-tudo, a partir da campanha do “mensalão” todos os pecados foram permitidos. Ministros do Supremo Tribunal Federal concordaram em participar de armações grosseiras sobre grampos, Ministros que assumiram como legalistas se encantaram com a nova onda, jogaram a Constituição no lixo e saíram rodando a baiana. Tudo isso perante um governo petista desarmado, inepto para enfrentar as disputas do poder.

Qualquer bobagem era motivo para explosões de escândalo de baixíssimo nível – quinquilharias, como a tapioca comprada com cartão corporativo, o perfil da jornalista alterado na Wikipédia, até factóides óbvios, como invasão das FARCs, dólares em garrafas de rum e outras obscenidades que marcaram para sempre a mídia brasileira.

O suicídio do reitor da Universidade Federal de Santa Catarina foi a síntese macabra das libações da Justiça, obra conjunta de uma delegada da Polícia Federal, um procurador do Ministério Público Federal, uma juíza da Justiça Federal, da Controladoria Geral da República.

Até hoje, uma imprensa invertebrada, medrosa, foi incapaz de conferir ao episódio a gravidade de que se revestia, para não atrapalhar a estratégia do “delenda quem pensar diferente” ou simplesmente para não ir contra a onda.

Quando sobreveio a queda nas cotações de commodities, perdendo-se o bônus político dado pela economia, o país estava nas mãos honestas, sinceras, mas inexperientes e auto-suficientes de Dilma Rousseff.

Não houve condições de reorganizar a resistência política.

E agora, José? A noite chegou, o monstro surgiu, o custo dessa irresponsabilidade pode ser contabilizado no próprio número de mortes evitáveis do Covid, frutos do negacionismo do Frankenstein político que emergiu do cemitério em que foram enterradas as instituições e as esperanças de construir uma Nação digna.

O que se terá daqui para frente?

Os responsáveis pela destruição institucional e econômica

Moro, Dallagnol, setoristas da Lava Jato, colunistas de ódio, Eduardo Cunha e seu grupo político foram apenas coadjuvantes, os germes oportunistas em um organismo enfraquecido pela atuação dos responsáveis maiores.

O duro recomeço passará por alguns desafios complexos.

Peça 1 – o caráter nacional

A crise atual serviu para expor uma das piores heranças culturais do país: o chamado racismo estrutural.  

Mas há um outro componente pouco estudado, talvez primo-irmão, o caráter das elites brasileiras e dos setores que ambicionam um lugar na chamada Casa Grande.

A maneira como mídia, Supremo, políticos, corporações públicas ingressaram no golpismo mais explícito, sem a menor preocupação com a imagem ou, melhor, regozijando-se com sua imagem refletida no esgoto, é um fenômeno típico de sociedades sem caráter.

Tenho a impressão de que a necessidade de se identificar com as classes altas seja um resquício da República Velha, na qual as classes de baixo, para se defenderem dos abusos da Justiça e do poder, tinham que se abrigar sob as asas de algum coronel local.

Essa submissão, por sua vez, gerava um sentimento de onipotência quando, por alguma razão, o cidadão normal, através de estudos passava a cumprir o papel de jagunço letrado, tornando-se defensor das demandas da classe superior junto às instituições de Estado – em uma função de jornalista, juiz ou Ministro do Supremo. Aí havia  o deslumbramento total, dos que supunham ter conseguido a inclusão por cima.

Some-se o fato de uma sociedade historicamente permissiva, que permitia a convivência com traficantes de escravos, bicheiros, doleiros, desde que bem-sucedidos financeiramente. Grandes doleiros, contrabandistas, são aceitos com naturalidade nas sociedades do Rio ou de Brasilia, e confraternizam-se com autoridades no paraíso tropical de Miami.

Esse talvez seja o motivo por que, na guerra jurídico-midiática-política mais suja da história, não tenha ocorrido sequer as chamadas objeções de consciência como impeditivo.  Por tal, entenda-se a atitude do motorista de um trator, que recebeu a ordem de destruir as casas de famílias sem terra. Ele se negou a cometer a crueldade. Recorreu à chamada objeção de consciência.

Nada disso se viu no período em que o ódio foi plantado, cevado e colhido. Não houve objeção de consciência por parte dos principais agentes da conspiração e sequer  um mínimo de pudor, aquela pequena vergonha que acomete até as mentes mais insensíveis, quando flagradas em grandes malfeitos.

Em países com caráter, quem aderisse ao golpismo seria mal visto ao menos por sua categoria. Uma mídia com caráter denunciaria desvios de condutas, exporia os oportunistas, os excessivamente ambiciosos, os crimes cometidos pelos guardiões da lei.

Nada ocorreu. Pelo contrário, os bárbaros foram celebrados, houve pruridos da mídia até em divulgar o suicídio do reitor da UFSC.

Este foi o Brasil da década de 2010.

Por outro lado, começa a surgir uma onda de liberalização relativa, impulsionada pelos ventos externos. Alguns dos principais responsáveis pelo envenenamento político anterior ressurgem como baluartes da democracia – e nada lhes é cobrado, nem um mínimo de autocrítica.

Por tudo isso, nada espere desse aggiornamento liberal dos porta-vozes dos homens de bens, nem mesmo com as novas ondas que se propagam pelo mundo civilizado, como reação à barbárie da era Trump.

O país sem caráter só se submete a contingências de ordem política e é reativo a movimentos de opinião pública.  Jamais assumirá o protagonismo da defesa da civilização.

Portanto, movimentos virtuosos que vierem a surgir, serão externos a esses personagens centrais do golpe.

Peça 2 – a mídia

A guerra cultural inicial em 2005 criou uma geração de jornalistas assustados, enquadrados. Não os culpe. Passou a ser pré-condição para seguir carreira.

Agora, começa a haver uma pequena reação de algumas cabeças mais independentes, no pequeno espaço aberto por alguns veículos que perceberam  que jornalistas com caráter próprio são peças centrais na credibilidade do veículo como um todo. Mas esse tipo de jornalista com luz própria ainda é minoria e pisa em ovos.

Além disso, o liberalismo midiático vai até o limite Lula. Persistem todas as idiossincrasias do período anterior, substituindo os assassinatos de reputação pela invisibilização. E tudo isso em um momento em que o mercado de opinião foi pulverizado por bolhas de todas as cores, tirando definitivamente da mídia o papel de mediadora central das discussões nacionais.

A grande contribuição da mídia será refrear o jornalismo de esgoto do período anterior e deixar de aspirar a ser partido político.

Aliás, os editoriais de hoje da Folha e do Estadão escancaram a estreiteza de visão, em relação à maior crise política da história. 

Peça 3 – o sistema de Justiça

Hoje em dia, o sistema de Justiça lembra os exércitos confederados depois da guerra da Secessão, grupos andando pelas estradas e fuzilando quem passe pela frente, adversários, transeuntes, pouco importando. Bastava não vestir uniformes cor de cinza.

Primeiro foi a Lava Jato impulsionando o protagonismo político do Judiciário. Depois, o liberou geral de alguns tribunais, estimulando o lawfare judicial contra supostos adversários políticos.

Há em curso, também, uma guerra mundial interna no Judiciário.

A Procuradoria Geral da República monta uma ofensiva contra o juiz Marcelo Bretas e a Lava Jato Rio. Para se defender, ambos acertam uma operação que mira filhos de ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ).  Antes disso, a Lava Jato de Curitiba se valeu de suas ligações internacionais ilegais para tentar provas contra Ministros do Supremo.

Nessa frente, o fim da Lava Jato é um refresco, mesmo deixando indevassáveis vários porões dos tribunais superiores.

No Supremo, a entrada de um Ministro garantista, ainda que indicado por Bolsonaro, traz esperanças de uma pacificação da corte e da Justiça em geral. Mesmo porque, os batedores de 1a instância, que vão na linha de frente fuzilando adversários, jogando bombas nos inimigos, representam ameaças efetivas ao próprio conceito de hierarquia jurídica.

Além disso, o fim da onda punitivista faz com que Ministros-que-seguem-ondas, como Luís Roberto Barroso, passem a cavalgar outras ondas, desinteressando-se da guerra nada santa contra os garantistas do Supremo.

Não espere nenhuma contribuição do Supremo – e da Justiça – a um pacto civilizatório de envergadura. Mas, também, não será mais um protagonista político, limitando-se a convalidar as políticas econômicas de desmonte das redes de proteção social votadas pelo Congresso. O que não é pouco.

Peça 4 – as Forças Armadas

Hoje em dia as Forças Armadas estão irreversivelmente ligadas à imagem do governo Bolsonaro. Os erros dos generais de Bolsonaro na questão de energia, especialmente na Saúde, na articulação política, a apatia ante a liberação de armas, a aceitação pacífica da oferta abundante de empregos na área civil, fez com que as Forças Armadas brasileiras tivessem seu momento Malvinas.

Não se verá mais atitudes como a do general Villas Boas que, com um mero twitter, ajudou a consolidar o golpe jurídico-parlamentar. Mas será um enorme desafio desalojar os militares do enorme mercado de trabalho criado na área civil e nas escolas militares.

De qualquer modo, apesar da excelência dos institutos militares de tecnologia, não espere das Forças Armadas nenhuma contribuição à ideia de pacto ou projeto nacional. Seu papel no desenvolvimento industrial, desde as políticas industriais dos anos 30 ao desenvolvimento da indústria aeronáutica e do enriquecimento de urânio, são apenas retratos na parede. Hoje, o que viceja é o padrão Pazuello.

Peça 5 – os partidos políticos

O sistema partidário foi triturado. Hoje em dia, o jogo político se dá em torno de dois movimentos:

Liberalismo selvagem – movimento que junta o MMS – Mídia, Mercado e Supremo. Seu objetivo maior é sancionar o desmonte final do Estado. Todos seus movimentos ocorrem na validação dos negócios da privatização, do desmonte das políticas sociais, mas com um olho em 2022. É o que mantém Bolsonaro imune, apesar de todos os descalabros que comete. Sua aposta é em Luciano Huck, apesar dos esforços de João Dória Jr em se habilitar.

Progressistas – há uma corrente progressista presente nos movimentos sociais e em várias categorias profissionais. Hoje em dia, há os economistas pela democracia, os juízes, os procuradores e os policiais antifascistas. Mas não há um ponto de organização para essas demandas.

Espinha dorsal do petismo, o sindicalismo foi fuzilado a partir do interinato de Temer. Mesmo antes, jamais conseguiu sair das bolhas corporativas. E o PT não conseguiu se arejar para repetir o papel dos anos 80, do grande ônibus abrigando movimentos sociais de toda espécie.

Lula mantém-se como a grande liderança, mas sem as condições de articulação de antes. Caso semelhante ocorreu com Getúlio Vargas quando retornou do exílio interno e se tornou novamente presidente. As circunstâncias eram outras, os atores eram outros e ele não conseguiu se mover com a mesma desenvoltura política de antes.

Por outro lado, movimentos auspiciosos que estavam se formando – como a frente dos governadores do Nordeste – recuou devido às fragilidades fiscais provocadas pela pandemia. E o ativismo político da Justiça liquidou com o grande articulador da frente, Ricardo Coutinho, ex-governador da Paraíba.

Dono dos melhores diagnósticos sobre a crise, Ciro Gomes padece dono mesmo voluntarismo que o marcou a vida toda.

Em todo caso, à medida em que as esquerdas não conseguem apresentar uma proposta competitiva, e a direita se perde em devaneios com Huck, há um espaço para o novo conhecido, o bonapartismo de Ciro.

Peça 6 – sem conclusões

Vive-se um momento totalmente inconclusivo. A década de 2010 legou um país destroçado, com as instituições desmoralizadas, sem lideranças expressivas. Não existe vácuo na política mas também não existe, à vista, nenhuma instituição em condições de empalmar o poder – o que é bom, pois poderia significar a consolidação da ditadura em mãos de um poder.

Mas, como não existe vácuo na política, resta aguardar movimentos mais concretos para um xadrez mais assertivo. O agravamento da crise, misturando segunda onda do Covid-19, fim do auxílio emergencial, pressão de custos, certamente colocará fatos novos na mesa.

Espera-se que para o bem do país.

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    Simultaneamente, os grupos de mídia entram em violenta crise econômica e, sem estratégia para enfrentar a quebra de barreiras representada pelos novos meios de comunicação, resolveram ganhar protagonismo político: “nós somos a verdadeira oposição”, dizia Roberto Civita, o pai do modelo. Teve início um período de jornalismo de esgoto, uma arma de guerra que estuprou todos os princípios jornalísticos, democráticos, plantou o ódio e contaminou irreversivelmente a democracia brasileira.

    Supremo Tribunal Federal

    Com suas armas preferidas – os ataques aos recalcitrantes e lisonja aos que aderiram – a mídia passou a monitorar as ações do Supremo, processo acentuado pela imprudência dos julgamentos televisionados e pela transformação de Ministros em celebridades.

    Ministros dignos foram submetidos a escrachos; ministros indignos a aplausos televisivos; Ministros medíocres saudados como grandes poetas ou frasistas. E, com cenoura e chicote, o Supremo foi se moldando aos novos tempos de incúria.

    Tinha-se, portanto, um partido que trocou a social-democracia pelo discurso de ódio, uma mídia que pretendia se tornar poder político para se salvar, e um Supremo passando a atuar sem os limites impostos pela Constituição.

    Mas não ficou nisso. O vírus inicial espalhou-se por todos os poros da República.

    As corporações públicas

    As profissões de elite do setor público voltaram  a ser prestigiadas com salários elevados. A nova elite do funcionalismo abdica da função de servidor público para assumir o espírito dos CEO de mercado. Como CEOs públicos,  puderam frequentar cursos superiores, cursar MBAs, ganharam bolsas de suas instituições para estudar fora. Agora, queriam seu naco de poder.

    Essa onda de protagonismo foi se espalhando pelo setor civil armado do Estado, as corporações com poder da caneta. O aprimoramento dos sistemas de controle, com o Tribunal de Contas da União, Controladoria Geral da União, Ministério Público Federal, criou entidades de poderes ilimitados, especialmente depois que a campanha em torno da Lava Jato oficializou a máxima de todo poder aos Catões.

    Com o vácuo institucional, até as Forças Armadas entraram no jogo, através do seu comandante, general Villas Boas.

    O PT

    O julgamento do “mensalão” marcou o início desse jogo macabro, de falsificação diária de notícias, de fabricação diuturna de escândalos e de manipulação de provas.

    Lula venceu a primeira rodada de golpe com a maneira como enfrentou a crise de 2008, que alçou-o à condição de político mais popular do planeta.

    Durante algum tempo o país ressuscitou a auto-estima dos tempos de JK. O modo de ser brasileiro, as políticas sociais, o soft power, a liderança diplomática sobre os países do sul, o avanço diplomático-econômico na África, Oriente Médio, o sucesso do etanol e do agronegócio, a mediação de conflitos no Oriente Médio, tudo apontava para o nascimento de uma nova Nação.

    Lula foi vítima do próprio sucesso. De um lado, ganhou força política imbatível. Sem perspectivas de conquistar a presidência, a oposição passou a acelerar a conspiração. De outro lado, incensado mundialmente, confiou desmedidamente na sua intuição política e desarmou-se. Descuidou-se nas indicações para Ministros do Supremo e abriu mão de qualquer tentativa de influenciar  até  poderes sob responsabilidade da Presidência – como a Polícia Federal, a indicação do Procurador Geral da República. Foi terrivelmente imprudente na negociação de cargos na Petrobras.

    Mais que  isso, cometeu dois erros fatais: na indicação da sua sucessão  e ao abrir mão  de concorrer nas eleições de 2014.

    O caos

    Aberto o caminho do vale-tudo, a partir da campanha do “mensalão” todos os pecados foram permitidos. Ministros do Supremo Tribunal Federal concordaram em participar de armações grosseiras sobre grampos, Ministros que assumiram como legalistas se encantaram com a nova onda, jogaram a Constituição no lixo e saíram rodando a baiana. Tudo isso perante um governo petista desarmado, inepto para enfrentar as disputas do poder.

    Qualquer bobagem era motivo para explosões de escândalo de baixíssimo nível – quinquilharias, como a tapioca comprada com cartão corporativo, o perfil da jornalista alterado na Wikipédia, até factóides óbvios, como invasão das FARCs, dólares em garrafas de rum e outras obscenidades que marcaram para sempre a mídia brasileira.

    O suicídio do reitor da Universidade Federal de Santa Catarina foi a síntese macabra das libações da Justiça, obra conjunta de uma delegada da Polícia Federal, um procurador do Ministério Público Federal, uma juíza da Justiça Federal, da Controladoria Geral da República.

    Até hoje, uma imprensa invertebrada, medrosa, foi incapaz de conferir ao episódio a gravidade de que se revestia, para não atrapalhar a estratégia do “delenda quem pensar diferente” ou simplesmente para não ir contra a onda.

    Quando sobreveio a queda nas cotações de commodities, perdendo-se o bônus político dado pela economia, o país estava nas mãos honestas, sinceras, mas inexperientes e auto-suficientes de Dilma Rousseff.

    Não houve condições de reorganizar a resistência política.

    E agora, José? A noite chegou, o monstro surgiu, o custo dessa irresponsabilidade pode ser contabilizado no próprio número de mortes evitáveis do Covid, frutos do negacionismo do Frankenstein político que emergiu do cemitério em que foram enterradas as instituições e as esperanças de construir uma Nação digna.

    O que se terá daqui para frente?

    Os responsáveis pela destruição institucional e econômica

    Moro, Dallagnol, setoristas da Lava Jato, colunistas de ódio, Eduardo Cunha e seu grupo político foram apenas coadjuvantes, os germes oportunistas em um organismo enfraquecido pela atuação dos responsáveis maiores.

    O duro recomeço passará por alguns desafios complexos.

    Peça 1 – o caráter nacional

    A crise atual serviu para expor uma das piores heranças culturais do país: o chamado racismo estrutural.  

    Mas há um outro componente pouco estudado, talvez primo-irmão, o caráter das elites brasileiras e dos setores que ambicionam um lugar na chamada Casa Grande.

    A maneira como mídia, Supremo, políticos, corporações públicas ingressaram no golpismo mais explícito, sem a menor preocupação com a imagem ou, melhor, regozijando-se com sua imagem refletida no esgoto, é um fenômeno típico de sociedades sem caráter.

    Tenho a impressão de que a necessidade de se identificar com as classes altas seja um resquício da República Velha, na qual as classes de baixo, para se defenderem dos abusos da Justiça e do poder, tinham que se abrigar sob as asas de algum coronel local.

    Essa submissão, por sua vez, gerava um sentimento de onipotência quando, por alguma razão, o cidadão normal, através de estudos passava a cumprir o papel de jagunço letrado, tornando-se defensor das demandas da classe superior junto às instituições de Estado – em uma função de jornalista, juiz ou Ministro do Supremo. Aí havia  o deslumbramento total, dos que supunham ter conseguido a inclusão por cima.

    Some-se o fato de uma sociedade historicamente permissiva, que permitia a convivência com traficantes de escravos, bicheiros, doleiros, desde que bem-sucedidos financeiramente. Grandes doleiros, contrabandistas, são aceitos com naturalidade nas sociedades do Rio ou de Brasilia, e confraternizam-se com autoridades no paraíso tropical de Miami.

    Esse talvez seja o motivo por que, na guerra jurídico-midiática-política mais suja da história, não tenha ocorrido sequer as chamadas objeções de consciência como impeditivo.  Por tal, entenda-se a atitude do motorista de um trator, que recebeu a ordem de destruir as casas de famílias sem terra. Ele se negou a cometer a crueldade. Recorreu à chamada objeção de consciência.

    Nada disso se viu no período em que o ódio foi plantado, cevado e colhido. Não houve objeção de consciência por parte dos principais agentes da conspiração e sequer  um mínimo de pudor, aquela pequena vergonha que acomete até as mentes mais insensíveis, quando flagradas em grandes malfeitos.

    Em países com caráter, quem aderisse ao golpismo seria mal visto ao menos por sua categoria. Uma mídia com caráter denunciaria desvios de condutas, exporia os oportunistas, os excessivamente ambiciosos, os crimes cometidos pelos guardiões da lei.

    Nada ocorreu. Pelo contrário, os bárbaros foram celebrados, houve pruridos da mídia até em divulgar o suicídio do reitor da UFSC.

    Este foi o Brasil da década de 2010.

    Por outro lado, começa a surgir uma onda de liberalização relativa, impulsionada pelos ventos externos. Alguns dos principais responsáveis pelo envenenamento político anterior ressurgem como baluartes da democracia – e nada lhes é cobrado, nem um mínimo de autocrítica.

    Por tudo isso, nada espere desse aggiornamento liberal dos porta-vozes dos homens de bens, nem mesmo com as novas ondas que se propagam pelo mundo civilizado, como reação à barbárie da era Trump.

    O país sem caráter só se submete a contingências de ordem política e é reativo a movimentos de opinião pública.  Jamais assumirá o protagonismo da defesa da civilização.

    Portanto, movimentos virtuosos que vierem a surgir, serão externos a esses personagens centrais do golpe.

    Peça 2 – a mídia

    A guerra cultural inicial em 2005 criou uma geração de jornalistas assustados, enquadrados. Não os culpe. Passou a ser pré-condição para seguir carreira.

    Agora, começa a haver uma pequena reação de algumas cabeças mais independentes, no pequeno espaço aberto por alguns veículos que perceberam  que jornalistas com caráter próprio são peças centrais na credibilidade do veículo como um todo. Mas esse tipo de jornalista com luz própria ainda é minoria e pisa em ovos.

    Além disso, o liberalismo midiático vai até o limite Lula. Persistem todas as idiossincrasias do período anterior, substituindo os assassinatos de reputação pela invisibilização. E tudo isso em um momento em que o mercado de opinião foi pulverizado por bolhas de todas as cores, tirando definitivamente da mídia o papel de mediadora central das discussões nacionais.

    A grande contribuição da mídia será refrear o jornalismo de esgoto do período anterior e deixar de aspirar a ser partido político.

    Aliás, os editoriais de hoje da Folha e do Estadão escancaram a estreiteza de visão, em relação à maior crise política da história. 

    Peça 3 – o sistema de Justiça

    Hoje em dia, o sistema de Justiça lembra os exércitos confederados depois da guerra da Secessão, grupos andando pelas estradas e fuzilando quem passe pela frente, adversários, transeuntes, pouco importando. Bastava não vestir uniformes cor de cinza.

    Primeiro foi a Lava Jato impulsionando o protagonismo político do Judiciário. Depois, o liberou geral de alguns tribunais, estimulando o lawfare judicial contra supostos adversários políticos.

    Há em curso, também, uma guerra mundial interna no Judiciário.

    A Procuradoria Geral da República monta uma ofensiva contra o juiz Marcelo Bretas e a Lava Jato Rio. Para se defender, ambos acertam uma operação que mira filhos de ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ).  Antes disso, a Lava Jato de Curitiba se valeu de suas ligações internacionais ilegais para tentar provas contra Ministros do Supremo.

    Nessa frente, o fim da Lava Jato é um refresco, mesmo deixando indevassáveis vários porões dos tribunais superiores.

    No Supremo, a entrada de um Ministro garantista, ainda que indicado por Bolsonaro, traz esperanças de uma pacificação da corte e da Justiça em geral. Mesmo porque, os batedores de 1a instância, que vão na linha de frente fuzilando adversários, jogando bombas nos inimigos, representam ameaças efetivas ao próprio conceito de hierarquia jurídica.

    Além disso, o fim da onda punitivista faz com que Ministros-que-seguem-ondas, como Luís Roberto Barroso, passem a cavalgar outras ondas, desinteressando-se da guerra nada santa contra os garantistas do Supremo.

    Não espere nenhuma contribuição do Supremo – e da Justiça – a um pacto civilizatório de envergadura. Mas, também, não será mais um protagonista político, limitando-se a convalidar as políticas econômicas de desmonte das redes de proteção social votadas pelo Congresso. O que não é pouco.

    Peça 4 – as Forças Armadas

    Hoje em dia as Forças Armadas estão irreversivelmente ligadas à imagem do governo Bolsonaro. Os erros dos generais de Bolsonaro na questão de energia, especialmente na Saúde, na articulação política, a apatia ante a liberação de armas, a aceitação pacífica da oferta abundante de empregos na área civil, fez com que as Forças Armadas brasileiras tivessem seu momento Malvinas.

    Não se verá mais atitudes como a do general Villas Boas que, com um mero twitter, ajudou a consolidar o golpe jurídico-parlamentar. Mas será um enorme desafio desalojar os militares do enorme mercado de trabalho criado na área civil e nas escolas militares.

    De qualquer modo, apesar da excelência dos institutos militares de tecnologia, não espere das Forças Armadas nenhuma contribuição à ideia de pacto ou projeto nacional. Seu papel no desenvolvimento industrial, desde as políticas industriais dos anos 30 ao desenvolvimento da indústria aeronáutica e do enriquecimento de urânio, são apenas retratos na parede. Hoje, o que viceja é o padrão Pazuello.

    Peça 5 – os partidos políticos

    O sistema partidário foi triturado. Hoje em dia, o jogo político se dá em torno de dois movimentos:

    Liberalismo selvagem – movimento que junta o MMS – Mídia, Mercado e Supremo. Seu objetivo maior é sancionar o desmonte final do Estado. Todos seus movimentos ocorrem na validação dos negócios da privatização, do desmonte das políticas sociais, mas com um olho em 2022. É o que mantém Bolsonaro imune, apesar de todos os descalabros que comete. Sua aposta é em Luciano Huck, apesar dos esforços de João Dória Jr em se habilitar.

    Progressistas – há uma corrente progressista presente nos movimentos sociais e em várias categorias profissionais. Hoje em dia, há os economistas pela democracia, os juízes, os procuradores e os policiais antifascistas. Mas não há um ponto de organização para essas demandas.

    Espinha dorsal do petismo, o sindicalismo foi fuzilado a partir do interinato de Temer. Mesmo antes, jamais conseguiu sair das bolhas corporativas. E o PT não conseguiu se arejar para repetir o papel dos anos 80, do grande ônibus abrigando movimentos sociais de toda espécie.

    Lula mantém-se como a grande liderança, mas sem as condições de articulação de antes. Caso semelhante ocorreu com Getúlio Vargas quando retornou do exílio interno e se tornou novamente presidente. As circunstâncias eram outras, os atores eram outros e ele não conseguiu se mover com a mesma desenvoltura política de antes.

    Por outro lado, movimentos auspiciosos que estavam se formando – como a frente dos governadores do Nordeste – recuou devido às fragilidades fiscais provocadas pela pandemia. E o ativismo político da Justiça liquidou com o grande articulador da frente, Ricardo Coutinho, ex-governador da Paraíba.

    Dono dos melhores diagnósticos sobre a crise, Ciro Gomes padece dono mesmo voluntarismo que o marcou a vida toda.

    Em todo caso, à medida em que as esquerdas não conseguem apresentar uma proposta competitiva, e a direita se perde em devaneios com Huck, há um espaço para o novo conhecido, o bonapartismo de Ciro.

    Peça 6 – sem conclusões

    Vive-se um momento totalmente inconclusivo. A década de 2010 legou um país destroçado, com as instituições desmoralizadas, sem lideranças expressivas. Não existe vácuo na política mas também não existe, à vista, nenhuma instituição em condições de empalmar o poder – o que é bom, pois poderia significar a consolidação da ditadura em mãos de um poder.

    Mas, como não existe vácuo na política, resta aguardar movimentos mais concretos para um xadrez mais assertivo. O agravamento da crise, misturando segunda onda do Covid-19, fim do auxílio emergencial, pressão de custos, certamente colocará fatos novos na mesa.

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