segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

Boaventura de Sousa Santos, jurista e sociólogo português mundialmente reconhecido, discute sobre a nova Guerra Fria Trump-1% mais rico e a Venezuela



Logo ficará claro que o conflito entre EUA e China tem na América Latina um de seus centros; e que a potência decadente está disposta a uma devastação semelhante à que promoveu no Iraque ou Líbia

Por Boaventura de Sousa Santos
O que se está a passar na Venezuela é uma tragédia anunciada, e vai provavelmente causar a morte de muita gente inocente. A Venezuela está à beira de uma intervenção militar estrangeira e o banho de sangue que dela resultará pode assumir proporções dramáticas. Quem o diz é o mais conhecido líder da oposição a Nicolás Maduro, Henrique Capriles, ao afirmar que o presidente-fantoche Juan Guaidó está fazendo dos venezuelanos “carne para canhão”. Ele sabe do que fala. Sabe, por exemplo, que Hugo Chávez levou muito a sério o destino da experiência socialista democrática de Salvador Allende no Chile. E que, entre outras medidas, armou a população civil, criando as milícias, que obviamente podem ser desarmadas, mas que muito provavelmente tal não ocorrerá sem alguma resistência. Sabe também que, apesar do imenso sofrimento a que o país está submetido pela mistura tóxica de erros políticos internos e pressão externa, nomeadamente por via de um embargo que a ONU considera humanitariamente condenável, continua entranhado no povo venezuelano um sentimento de orgulho nacionalista que rejeita com veemência qualquer intervenção estrangeira.
Perante a dimensão do risco de destruição de vidas inocentes, todos os democratas venezuelanos opositores do governo bolivariano fazem-se algumas perguntas para as quais só muito penosamente vão tendo alguma resposta. Por que é que os EUA, acolitado por alguns países europeus, embarca numa posição agressiva e maximalista que inutiliza de partida qualquer solução negociada? Por que é que se fazem ultimatos típicos dos tempos imperiais dos quais aliás Portugal tem uma experiência amarga? Por que foi recusada a proposta de intermediação feita pelo México e o Uruguai, que tem como ponto de partida a recusa da guerra civil? Por que um jovem desconhecido do povo venezuelano até há algumas semanas, membro de um pequeno partido de extrema direita, Voluntad Popular, diretamente envolvido na violência de rua ocorrida em anos anteriores, se auto-proclama presidente da República depois de receber um telefonema do vice-presidente dos EUA, e vários países se dispõem a reconhecê-lo como presidente legítimo do país?
As respostas virão com o tempo, mas o que vai sendo conhecido é suficiente para indicar por onde surgirão. Começa a saber-se que, apesar de pouco conhecido no país, Juan Guaidó e o seu partido de extrema-direita, que tem defendido abertamente uma intervenção militar contra o governo, são há muito os favoritos de Washington para implementar na Venezuela a infame política de “regime change”. A isto se liga a história das intervenções dos EUA no continente, uma arma de destruição maciça da democracia sempre que esta significou a defesa da soberania nacional e questionou o acesso livre das empresas norte-americanas aos recursos naturais do país. Não é difícil concluir que não está em causa a defesa da democracia venezuelana. O que está em causa é o petróleo da Venezuela. A Venezuela é o país com as maiores reservas de petróleo do mundo (20% das reservas mundiais; os EUA têm 2%).
O acesso ao petróleo do Oriente Médio determinou o pacto de sangue com o país mais ditatorial da região, a Arábia Saudita, e a destruição do Iraque, da Síria, da Líbia, no Norte de África; a próxima vítima pode bem ser o Irã. Acresce que o petróleo do Oriente Médio está mais próximo da China do que dos EUA. Enquanto o petróleo da Venezuela está à porta de casa. O modo de aceder aos recursos varia de país para país, mas o objetivo estratégico tem sido sempre o mesmo. No Chile, envolveu uma ditadura sangrenta. Mais recentemente, no Brasil, o acesso aos imensos recursos minerais, à Amazônia e ao pré-sal envolveu a transformação de um outro favorito de Washington, Sérgio Moro, de ignorado juiz de primeira instância em notoriedade nacional e internacional, mediante o acesso privilegiado a dados que lhe permitissem ser o justiceiro da esquerda brasileira e abrir caminho para eleição de um confesso apologista da ditadura e da tortura que se dispusesse a vender as riquezas do país ao desbarato e formasse um governo de que o favorito pró-norte-americano do futuro do Brasil fizesse parte.
Mas a perplexidade de muitos democratas venezuelanos diz especialmente respeito à Europa, até porque no passado a Europa esteve ativa em negociações entre o governo e as oposições. Sabiam que muitas dessas negociações fracassaram por pressão dos EUA. Daí a pergunta: também tu, Europa? Estão conscientes de que, se a Europa estivesse genuinamente preocupada com a democracia, há muito teria cortado relações diplomáticas com a Arábia Saudita. E que, se a Europa estivesse preocupada com a morte em massa de civis inocentes, há muito que teria deixado de vender à Arábia Saudita as armas com que este país leva a cabo o genocídio do Iémen. Mas talvez esperassem que a responsabilidades históricas da Europa perante as suas antigas colônias justificasse alguma contenção. Por que este alinhamento total com uma política que mede o seu êxito pelo nível de destruição de países e vidas?
A pouco e pouco se tornará claro que a razão deste alinhamento reside na nova guerra fria que entretanto estalou entre os EUA e a China, uma guerra fria que tem no continente latino-americano um dos seus centros e que, tal como a anterior, não pode ser travada diretamente entre as potências rivais – neste caso, um império declinante e um império ascendente. Tem que ser travada por via de aliados, sejam eles num caso os governos de direita da América Latina e os governos europeus; e noutro caso, a Rússia. Nenhum império é bom para os países que não têm poder para beneficiar por inteiro da rivalidade. Quando muito, procuram obter vantagens do alinhamento que lhes está mais próximo. E o alinhamento tem de ser total para ser eficaz. Isto é, é preciso sacrificar os anéis para não se irem os dedos. Isto é tão verdade do Canadá como dos países europeus.
Tenho-me reconhecido bem representado pelo governo do meu país no poder desde 2016. No entanto, a legitimidade concedida a um presidente-fantoche e a uma estratégia que muito provavelmente terminará em banho de sangue faz-me sentir vergonha do meu governo. Só espero que a vasta comunidade de portugueses na Venezuela não venha a sofrer com tamanha imprudência diplomática, para não usar um outro termo mais veemente e verdadeiro da política internacional deste governo neste caso.
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