Não, eles, os militares e os seus associados, não “desenvolveram a economia”, apesar da política violenta. A política violenta fez uma economia violenta. Violenta contra os pequenos, contra o trabalho, contra as organizações dos trabalhadores, contra tantos.
O regime destrutivo de 1964 – revendo o “legado”
por João Furtado
Enquanto não fizermos a crítica completa de 1964 não teremos paz.
A dicotomia que ainda prevalece na história que a sociedade brasileira recebeu é que existe uma dicotomia entre a política sangrenta da ditadura e as realizações econômicas, que “não são de se jogar fora” (na versão comedida). Essa visão é é um veneno da vida brasileira.
Não, eles, os militares e os seus associados, não “desenvolveram a economia”, apesar da política violenta. A política violenta fez uma economia violenta. Violenta contra os pequenos, contra o trabalho, contra as organizações dos trabalhadores, contra tantos.
Os militares e seus tecnocratas, que escondiam por detrás do discurso técnico e racional os interesses daqueles a quem serviam, não desenvolveram a economia, fizeram a economia crescer com anabolizantes mortais. A crise que ficou clara a partir de 1979 ou 1982, e que nos empobrece e assombra há 40 anos, é produto desse discurso e de políticas nefastas, muitas vezes perversas, cujos efeitos ainda sentimos, porque anabolizantes produzem efeitos imediatos aparentemente revigorantes, mas fragilidades destrutivas que só o tempo vai revelando, às vezes de maneira muito diferida e gradual.
O golpe medonho de 1964 criou ou reforçou o poder da indústria concentrada (os grandes oligopólios). Há muitos exemplos desse imenso poder dos grandes oligopólios, mas fiquemos com um, para guardar e não esquecer: sempre que um pobre faz um puxadinho, com aqueles blocos e cimento, aquela família brasileira (que depois renegou a ditadura) embolsa uns dólares. Sim, dólares, porque a fortuna vai sendo dolarizada e colocada “a salvo dos efeitos nefastos da democracia brasileira”. Ou nós não nos lembramos que o icônico dirigente desse grupo empresarial acusava o torneiro mecânico de nunca ter trabalhado na vida?
De onde veio o rodoviarismo extremado? De onde veio a febre que sangrou a floresta e iniciou o genocídio moderno? Não, os militares e seus amigos do golpe não deixaram uma infraestrutura desenvolvida, mas primitiva, brutal, destruidora.
Quem foi que criou o sistema financeiro híper-concentrado e um mercado de capitais que está situado entre o estéril e o parasitário? Quem foi que lançou as bases desse agronegócio poderoso e concentrador de propriedade, recursos e com poder cada vez mais despótico? Soja e milho dos amigos do Delfim também não são modernização, se o custo é o Cerrado destruído, populações originárias esmagadas, alternativas agrícolas inviabilizadas.
Quem foi que destruiu as bases da organização social, aniquilando os elementos, as forças e os movimentos que poderiam se opor aos retrocessos econômicos travestidos de modernização? Porque carro não é modernização, modernização é transporte decente. Casa própria pode ser uma conquista, mas a geografia das cidades que a ditadura criou tornam os transportes, o saneamento, as infraestruturas caras e a vida, inviável.
Não é que a ditadura foi “mal no político e bem no econômico”. Essa dicotomia é um equívoco e enquanto ela persistir não haverá paz, porque haverá saudosistas e gorilas dispostos a lutar por um passado pretensamente glorioso.
Está errado: não houve passado (econômico) glorioso. A ditadura foi uma carnificina política e um câncer econômico. E a crise que se iniciou em 1979-1982 é a sua metástase. O revigoramento da economia exige a revisão de resultados que a ditadura produziu.
E os grandes senhores que marcharam com “Deus, família e propriedade” em 1964, que depois se locupletaram, antes de pularem do barco que foi se tornando mais e mais sinistro, são parte do problema, mas talvez não sejam adeptos de uma solução. Afinal, persistem, reiteradamente, nas escolhas arcaicas, como demonstram o golpe e as reformas que se seguiram.
Neste dia de tenebrosa memória, precisamos aprofundar a nossa reflexão. Os avanços de 1988 já nos devolveram esperanças, mas não faremos um Brasil para todos com uma História falseada pela mitologia da ditadura e dos seus sócios coniventes.
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