segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

Quando rompe uma barragem, a culpa "é sua", por Daniel S. Lacerda, professor e pesquisador de administração da UFRGS



 "Ora, se uma empresa observa que em tragédias ambientais as multas são frequentemente “perdoadas", a suspensão da licença de operação revertida e os processos penais arquivados - frequentemente tudo isso graças ao lobby da própria empresa e suas bancadas - que valor ela utilizará então para calcular o máximo a ser gastos em seus controles de mitigação de risco? No cálculo dos agentes econômicos auto-interessados, comprar deputados tem se mostrado uma decisão muito mais racional do que investir valores muito maiores em segurança e proteção."


Do Jornal GGN:



Quando rompe uma barragem, a culpa é sua, vou explicar por quê.
Assistindo as coberturas sobre o crime ambiental de Brumadinho, achei curioso ver as emissoras pró-Bolsonaro tentando jogar toda a culpa na Vale, enquanto a Globo empurra a culpa para a falta de fiscalização e punição do Estado. Nesse caso, elas nem precisavam brigar.
Na minha época de consultor, fiz dois projetos de Gestão de Risco, um deles na própria Vale. A Vale é obviamente culpada quando algo assim acontece, mas não mais do que qualquer empresa que trabalhe com extrativismo. Segundo as premissas de funcionamento de mercado, ela existe para dar lucro (empresa não é ONG e nem governo), e tudo tem que ser colocado em uma equação econômica para justificar os empreendimentos. Se não dá lucro, não faz.
O 'risco’ é um evento com determinada probabilidade de ocorrer. Caso esse evento ocorra, haverá um impacto. Toda empresa tem riscos em sua operação, com impactos possíveis de diferentes naturezas (econômica, ambiental, de imagem, etc). Existem duas formas de tratar o risco: mitigando seu impacto (fazendo seguro que cobrirá o sinistro, evacuando pessoas da área de impacto, terceirizando trabalhadores para não ter processos trabalhistas, etc) ou reduzindo as chances de que aconteça (implantação de alarmes, redundância de equipamento, agindo conforme a lei, etc).
Mas todas as formas de gestão de risco implicam em custo, todo controle tem um preço. A grande questão da empresa é decidir: 1) sobre quais riscos agir e quais ignorar; 2) quais medidas de tratamento de risco adotar. E é aí que entra a equação econômica, se os custos dos controles for alto demais a operação não dá lucro. Primeiro, eventos com baixa probabilidade e baixo impacto podem ser ignorados. Para os demais, multiplicando a probabilidade de um evento ocorrer (digamos 1/100.000) pelo seu impacto econômico (digamos R$50.000.000) temos o valor do risco (nesse caso R$500). Esse é o máximo que a empresa gastará no seu tratamento.
E é aqui que entra a culpa do Estado nessa história. Como a empresa transforma o impacto de uma morte em valores financeiros para fazer essa conta? Não existe nada melhor à sua disposição do que o valor da indenização paga para a família (e de perda de um funcionário se for o caso). Como calcular o impacto de uma tragédia ambiental? Pelo valor da multa paga caso isso ocorra. Todos esses valores são calculados pela jurisprudência de casos semelhantes.
Ora, se uma empresa observa que em tragédias ambientais as multas são frequentemente “perdoadas", a suspensão da licença de operação revertida e os processos penais arquivados - frequentemente tudo isso graças ao lobby da própria empresa e suas bancadas - que valor ela utilizará então para calcular o máximo a ser gastos em seus controles de mitigação de risco? No cálculo dos agentes econômicos auto-interessados, comprar deputados tem se mostrado uma decisão muito mais racional do que investir valores muito maiores em segurança e proteção.
Diante dessa ética gerencial, eu só vejo duas saídas possíveis para uma pessoa dotada de preocupações humanitárias:
1) admitir que o capitalismo é um sistema de acumulação orientado ao crescimento infinito que é incompatível com o conceito de “sustentabilidade"; 
2) acreditar que o capitalismo pode ser "social” e eleger/lutar por políticos e políticas que fiscalizem e punam de forma exemplar qualquer dano social/ambiental, concedendo licenças de operação apenas a quem seguir rigorosamente as normas.
Mas o Estado não é uma entidade abstrata autônoma da sociedade. O Estado é também a sociedade civil que pauta o que é importante ou não. Ou seja, o Estado somos nós. Então, hoje é dia de cada um reconhecer a própria parcela de culpa por Mariana e Brumadinho.
Daniel S. Lacerda é professor e pesquisador de administração da UFRGS



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