quinta-feira, 5 de outubro de 2017

“Destruir a figura de Lula é um absurdo. A direita não tem cérebro”, diz o filósofo italiano Antonio Negri



"Não se governa sem Lula. Não se governa sem o que Lula deixou. Ele conseguiu pôr o Brasil na cena mundial, em ruptura com os americanos. Essas são coisas fundamentais que Lula fez e para as quais eu tiro o chapéu. Não creio que o capitalismo brasileiro tenha uma autonomia e uma capacidade inventiva para conseguir manter a herança de realidade popular que Lula trouxe ao Brasil. Destruir sua figura é um absurdo." Antonio Negri


“Destruir a figura de Lula é um absurdo. A direita não tem cérebro”, diz o filósofo italiano Antonio Negri
Estadão entrevistou o filósofo italiano Antonio Negri, de 84 anos.
Quando o senhor fala de Eric Hobsbawn e de seu século breve, o senhor diz que esse século tornou-se bastante longo, no sentido que é possível fazer nas praças novos formas de organização popular e que a autonomia produtivo do trabalho cognitivo traga uma novo projeto de transformação social?
Sobre isso não tenho dúvida. Exatamente como fez no passado Lula, representante de uma classe operária metalúrgica com características sociológicas precisas. Hoje devemos esperar que a retomada seja feita pelos novos operários. E quem são os novos operários? São essa classe de trabalhadores precários, de capital intelectual fundamentalmente, que hoje em dia ocupa o mercado. O mercado do trabalho é feito por essas novas pessoas desde o fim dos anos 1980.
A cooperação é central na vida desses trabalhadores, mas essa cooperação seria uma forma de obter consenso?
Não. É uma coisa diferente. É uma cooperação no trabalho.
Não se trata pois de consenso. Seria, portanto, diferente essa cooperação do ação comunicativa do filósofo Jurgen Habermas?
A ação comunicativa de Habermas é uma ação neutra, que se abre sobre a sociedade pública e não tem qualificação de nenhum gênero. A cooperação dos trabalhadores hoje é um fato no qual se verifica antes de tudo a autonomia dessas cooperação . Esse é um termo absolutamente fundamental. Um operário metalúrgico, um operário como Lula, era um operário que tinha necessidade do patrão para se organizar e se reunir com outros.
Hoje o operário, chamemo-lo de novo trabalhador, não o chamemos de operário para não confundir as coisas. O novo trabalhador é alguém que se organiza socialmente para produzir, e o tipo de produção que ele faz é um tipo de produção que é de mercadoria, mas sobretudo de subjetividade. Aqui lembro de Foucault (Michael Foucault, filósofo francês): um dos elementos absolutamente centrais na teoria foucaultiana é o fato que hoje se trabalha na construção cooperativa de subjetividade.
Já que falamos de Lula, o que as bruxas de Macbeth lhe revelam sobre o futuro de Lula?
Não sei se suicídio ou uma tentativa desesperada de luta. Eu penso que Lula seja o maior homem político da América Latina na segunda metade do século 20. Ninguém é comparável a Lula. Foi alguém que conseguiu construir nesse país continente uma força popular necessária aos governos.
Mas e agora?
Não se governa sem Lula. Não se governa sem o que Lula deixou. Ele conseguiu pôr o Brasil na cena mundial, em ruptura com os americanos. Essas são coisas fundamentais que Lula fez e para as quais eu tiro o chapéu. Não creio que o capitalismo brasileiro tenha uma autonomia e uma capacidade inventiva para conseguir manter a herança de realidade popular que Lula trouxe ao Brasil. Destruir sua figura é um absurdo.
É o que está acontecendo?
Sim, eu sei que está acontecendo. Porque a direita não tem cérebro. Está destruindo a única coisa que ela devia salvar.
Mas o problema não é judiciário? O problema não é que Lula recebeu propinas e deve pagar por isso?
Eu não sou contrário a isso (que a Justiça puna os corruptos), desde que isso valha para todos. Se a Justiça bate em alguém é certíssimo, porém deve atingir a todos da mesma maneira. Eu não sei se a relação entre Justiça, jornais e TVs é igual para Lula e para os outros. Esse é um problema que devemos nos pôr se vivêssemos em uma democracia ideal.
A política feita pelo PT de governar o País se exauriu?
Sim. Eu creio que sim. E creio que no Brasil existe uma situação dramática de todos os pontos de vista.
Por que, professor?
Porque não há uma direita que seja capaz de interiorizar o passado desse país, isto é, essa democracia que se quer e não se quer, e que Lula a interpretou e a fez viver de um ponto de vista popular, com a adesão das grandes massas à democracia.
O ex-capitão do Exército e deputado Jair Bolsonaro, um ex-paraquedista, segundo as últimas pesquisas, deve ser bem votado na próxima eleição presidencial. Quais seriam as causas desse fenômeno, o crescimento da extrema-direita?
Isso acontece porque, à direita, falta uma posição política capaz de se opor, porque para fazer essa operação, com toda probabilidade, seria necessário aceitar que passamos 20 anos de hegemonia lulista. A direita sabe digerir e engordar, e os bons capitalistas sabem que precisam da força de trabalho. O capitalismo precisa de duas coisas: dar o trabalho e receber do trabalho.
Isso seria reflexo da onda na Europa e nos Estados Unidos?
Provavelmente não. Creio que o fenômeno brasileiro seja diferente. Existe uma queda geral de regimes de esquerda na América Latina, com fenômenos bastante contraditórios, como nos países andinos, como essa grande chaga que é a Venezuela. Mas creio que tudo isso tenha uma espécie de autonomia. A América Latina não sofre seguramente influência da situação europeia, muito fechada em si mesma, no problema da construção europeia e de sua colocação global.
O senhor conhece os programa sociais dos governos petistas. O senhor acha que eles não foram suficientes para criar uma nova identidade para a esquerda?
O governo Lula ficou muito limitado por suas contradição, não há dúvida. Ele errou em duas coisas fundamentais. A primeira é a reforma constitucional (ele se refere à reforma política). Como se pode aceitar uma Constituição na qual a corrupção é necessária para fazer qualquer lei? Esse é um erro extraordinário. A justificação de Lula é: “Estávamos há muito pouco tempo em uma situação democrática para nos dar o luxo de reformar a Constituição”. A segunda é o fato de não ter organizado os instrumentos midiáticos e de cultura popular que fossem à altura da estrutura esmagadora da grande produção midiática da burguesia. Esses são dois erros que eu aponto às pessoas do PT. Esses são erros que, infelizmente, devem ser pagos. Não é possível ter uma Constituição desse tipo, na qual cada igreja protestante elege o seu deputado, na qual se pode ter um presidente com 70% dos votos nacionais e não ter uma maioria parlamentar. São coisas que são incompreensíveis para qualquer constitucionalista europeu desde o século 19.
É enlouquecedor?
Sim, é uma loucura. Isso precisava mudar.
(…)

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