terça-feira, 28 de maio de 2019

Jean Pierre Chauvin escreve sobre a mentalidade do "cidadão de bem" bolsonarista



  "Nunca leram um filósofo; nem Dante, Petrarca, Camões ou Cervantes; quem dirá Darwin; tampouco os 72 livros que compõem a Bíblia “oficial”, supostamente traduzidos para o Português a partir da vulgata. Não sabem o que simbolizam as cores da bandeira republicana-positivista; sequer o hino nacional ou o nome dos Três Poderes da União; tampouco manuseiam (ou acessam) dicionários, já que se consideram parte de uma classe melhor e superior às outras (ainda que a deles seja tão idealizada porque abstrata)."



Foto Reuters

País sem Marquise

por Jean Pierre Chauvin

Suspeitava que eles & elas não sabiam nada de História do Brasil (afinal, reeditam discursos do passado, embora defendam, desde a indigestão MT, pós-golpe, um país “do futuro”). Mas eles & elas tampouco conhecem algo, para além de capas (sim, capas) de livros de autoajuda, expostos em expositores pagos pelas editoras mais pop. 

Nunca leram um filósofo; nem Dante, Petrarca, Camões ou Cervantes; quem dirá Darwin; tampouco os 72 livros que compõem a Bíblia “oficial”, supostamente traduzidos para o Português a partir da vulgata. Não sabem o que simbolizam as cores da bandeira republicana-positivista; sequer o hino nacional ou o nome dos Três Poderes da União; tampouco manuseiam (ou acessam) dicionários, já que se consideram parte de uma classe melhor e superior às outras (ainda que a deles seja tão idealizada porque abstrata). 

De modo geral, revelam mau-gosto supremo, quase sempre a ostentar posses e propriedades: a chave que pende do bolso, o anel de rubi, o relógio dourado-radioativo, a roupa que pretende conceder fumos de fidalguia novaiorquina e garbo parisiense; a exibição de milhares de fotos da viagem periódica (cuja meta é andar na montanha russa ou posar a frente de pontos turísticos); tomar champagne na Avenida ruidosa e poluída, a confundir protesto político com “desfaçatez de classe” (recorro a um termo schwarziano, alto lá). 

Eles & elas adoram o discurso da ordem, da moral, da propriedade privada, dos bons-costumes, da assepsia e da autoridade, embora – a rigor – não satisfaçam aos critérios que supõem existir ou fingem defender. A isso se daria, hoje, o nome de cinismo. Daí, explicar a diferença que há entre a pequenez destes e a grandeza dos cínicos da Antiguidade (o que será isso, né, “Antiguidade”? Coisa velha. “Serve” para nada) vai uma diferença ainda maior que os dois milênios e meio que separam a idiotice dos entreguistas sádicos em relação aos sábios de outrora. 

Eles & elas não valem sequer o “post” agressivo e estúpido com que realçam a sua ignorância geral e o indisfarçável desejo de extermínio do(a) diferente. Deixe-os/as um minuto em silêncio (se é que isso é possível, pois grande parte deles padece de histeria e incapacidade de autoexame no modo “mute”) e longe de câmeras que, talvez, os censurassem, ou de celulares que os rastreassem. Verão as monstruosidades, os gestos grotescos de quem só refreia desejos quando convém. 

Eles & elas fingem retidão moral em meio a vida mesquinha e tortuosa que levam; vivem a confundir ética da micro ou marco empresa com decência pessoal (outra lição de Marilena, aquela que odeiam porque isolaram uma frase e a transformaram em falsa síntese de um raciocínio consistente). A depender do que e de quanto levam no bolso, consumirão cervejas ruins, arrotando sabedoria e grosseria num bar cheio, porque top, da avenida top, onde cobiçam uns e outros, enquanto beijam a aliança de compromisso ou casamento. 

Isso explica que façam a apologia cega de sujeitos indefensáveis, nas mais altas esferas, pois não veem (ou fingem não perceber) a distância que há entre o discurso e a ação. Como são parciais e têm dificuldade em lidar consigo mesmos, manifestam a sanha da companhia, do ruído, da música de qualidade questionável. Para eles & elas, alguém que fale baixo e devagar ou leia regularmente não passa de aberração, no país em que é compulsório empreender, sem que haja mercado consumidor; na neocolônia em que o gerente de banco é melhor e mais respeitado que o professor; na republiqueta que sonha ser grande, mas onde seus cidadãos “de bem” acham normalíssimo faltar saúde, saneamento básico, energia elétrica, moradia e escola em milhares de municípios (os estrangeiros, afinal, não podem ocupar os postos mais remotos que os brasileiros, orgulhosos de si e da carreira financiada pelos pais ou pelo Estado, recusam-se a assumir). 

Não menciono a lama que recobre Minas. Os alvos mortos, a esmo, sem possibilidade de defesa, em capitais ditas turísticas. Os miseráveis que aumentaram exponencialmente, nas ruas da Pauliceia, Poços de Caldas, São Caetano do Sul – amostras do que sucede a outras cidades inóspitas, onde todos correm em favor do trabalho (ou do diploma) de onde pretendem extrair resquícios de dignidade, no país em que a revolta é extravasada duas ou três vezes por semana, diante do entediante jogo de futebol. Será um território de patridiotas?

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