Encontro sigiloso no Rio com plateia selecionada debateu propostas e viabilidade financeira da campanha. Assessoria diz que dia foi ‘sem agenda’.
NA TERÇA-FEIRA, 15 de fevereiro, o pré-candidato a presidente Sergio Moro estava no Rio de Janeiro. Sua assessoria afirmou que ele não teve agenda. Mas um contrato ao qual o Intercept teve acesso revelou a provável razão da viagem: Moro participou de uma reunião fechada com gestores do mercado financeiro selecionados a dedo pela empresa contratante, a carioca Ativa Investimentos. Embora o assunto tratado tenha sido a campanha, o encontro foi remunerado: o contrato revela que Moro e seu agente negociaram R$ 110 mil para falar em palestras para os gestores financeiros no Rio e em São Paulo.
Deste montante, R$ 77 mil são para empresa do ex-juiz, a Moro Consultoria e Assessoria em Gestão Empresarial de Riscos LTDA. O pagamento será feito “em 2 (duas) parcelas iguais e sucessivas de R$ 38.500,00 (trinta e oito mil e quinhentos reais) cada, com vencimento no dia 10 de fevereiro de 2022 e 28 de fevereiro de 2022, respectivamente, mediante emissão de nota fiscal e depósito em conta bancária de titularidade desta, a ser oportunamente informada”. Segundo o contrato, cada “encontro” deve durar duas horas.
Entre os assuntos tratados no primeiro encontro, estava a viabilidade financeira e o programa de governo do ex-juiz. A Lei Eleitoral permite que um pré-candidato possa apresentar a pretensão de se candidatar, dar entrevistas e falar de projetos, mas sem pedir voto. No entanto, não há clareza sobre a contratação de uma empresa do pré-candidato para que ele apresente suas propostas de governo de forma remunerada.
Os demais R$ 33 mil do contrato, um terço do valor, são para pagamento, nas mesmas datas e condições, à empresa Delos Produções Culturais Ltda, que é um braço do grupo DC Set Participações, controlado por Jorge Sirena, marqueteiro de Moro. Dody Sirena, como é conhecido, também é empresário do cantor Roberto Carlos e foi multado em março do ano passado em R$ 25 mil pelo Banco Central por não ter declarado dentro do prazo bens e valores que mantinha no exterior. À época, Moro já tinha deixado o governo Bolsonaro e fechado contrato com a empresa de Sirena para que o empresário promovesse suas palestras na área corporativa e cuidasse de sua imagem.
A empresa Delos Produções Culturais Ltda consta no contrato como “interveniente anuente”, ou seja, uma terceira pessoa que pode ser afetada ou beneficiada pela negociação entre contratante e contratado. O documento considera que a empresa de Dody “está apta a agenciar e administrar os interesses e atividades” da empresa de Moro. Questionei Sirena e Moro sobre a relação que ambos possuem e a participação de cada parte no evento, mas não obtive resposta.
O contrato – que não será publicado para preservar a fonte – também tem cláusulas de confidencialidade. Isso talvez explique por que não foram divulgadas fotos e nenhuma das partes do contrato confirmou ou negou o evento. Um dos itens do documento chama a atenção para o fato do palestrante ser pré-candidato. A “CONTRATADA [empresa de Moro] declara-se ciente de que o Palestrante é pré-candidato a Presidente da República e que, consequentemente, as datas dos Encontros deverão, necessariamente, observar as restrições do calendário eleitoral, conforme legislação vigente”, diz o documento.
O documento de 10 páginas, com as informações sobre local, data, participantes e condições do encontro foi entregue ao Intercept por uma fonte anônima antes de a reunião acontecer. Todas as partes assinaram esta versão do contrato, exceto o ex-juiz. O acordo foi firmado pelo diretor e representante da Ativa Investimentos, Attilio de Souza Mello Boselli, e do procurador da empresa, Guilherme Uchôa Coelho, por meio de assinaturas digitais. Constam também a assinatura do diretor da Delos, Rodrigo Bertho Mathias, e de duas testemunhas, Talitha Angelo da Silva, advogada da Ativa, e Amauri Carvalho, não identificado por seu cargo.
O documento estipula que cabe à contratante, Ativa Investimentos, arcar com todos os “custos que, direta ou indiretamente, for (sic) relacionada à realização dos Encontros e da participação do Palestrante”, assim como “as licenças, impostos e taxas incidentes sobre a realização dos Encontros”.
A empresa de Moro que aparece no contrato é a mesma que ele utilizou para prestar serviços à consultoria Alvarez & Marsal, nos Estados Unidos. O Tribunal de Contas da União investiga o eventual conflito de interesse e os ganhos do ex-juiz com a empresa, que tem entre os clientes companhias que foram alvo de decisões da Lava Jato tomadas por Moro.
Em 28 de janeiro, para explicar os valores que recebeu no seu período junto a Alvarez & Marsal, Moro fez uma live ao lado do deputado federal Kim Kataguiri, do MBL e do DEM de São Paulo. Durante a apresentação, Moro disse que embolsou R$ 3,6 milhões por cerca de um ano de trabalho, entre novembro de 2020 e outubro de 2021.
Durante a transmissão, Moro defendeu que todos os candidatos à Presidência abrissem suas contas e dessem transparência a seus rendimentos. No entanto, ao contrário do que ele prega, o ex-juiz não quis esclarecer os R$ 77 mil que constam do contrato com a Ativa Investimentos. Procurei pela sua assessoria entre os dias 16 e 18 de fevereiro, e, apesar de terem recebido meus questionamentos, não deram respostas sobre o contrato, a reunião com a Ativa Investimentos e a relação com empresário e marqueteiro Dody Sirena.
Reunião às escondidas
Das duas reuniões previstas no contrato, uma estava agendada para as 10h30 de 15 de fevereiro, no luxuoso hotel Janeiro, no bairro do Leblon, no Rio de Janeiro.
No dia 15, a assessoria de Moro me informou que ele não teve agenda naquela data. Já a assessoria de imprensa da Ativa Investimentos confirmou apenas que “periodicamente, faz encontros e palestras com personalidades públicas para clientes institucionais da corretora”, mas não confirmou ou negou o encontro com Moro. Na nota, informou também que “os eventos são reservados para convidados e com o único objetivo de traçar os melhores cenários econômicos para seus clientes”.
A recepção do hotel, por telefone, me informou que não poderia passar tais informações. Naquele mesmo dia, a reunião foi noticiada no jornal O Globo, sem informações sobre a remuneração a Moro, os participantes, o nome da empresa Ativa Investimentos e a relação entre Moro e os empresários. Um dos temas do encontro, segundo a colunista Malu Gaspar, foi a viabilidade financeira da campanha de Moro.
O ex-ministro do ex-presidente Michel Temer, Carlos Marun, do MDB, me confirmou a realização do encontro no local, a hora e os participantes descritos no contrato. “O candidato Moro expôs seu plano inicial de governo, suas ideias iniciais e se estabeleceu quase um bate-papo, já que era esse o objetivo. Um encontro pequeno onde as coisas pudessem ser conversadas com tranquilidade”, me disse Marun.
O emedebista me confirmou que Moro se apresentava como pré-candidato no encontro e tratava de propostas de um eventual governo.
Pedi à especialista em contabilidade eleitoral Denise Goulart Schlickmann, membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político, uma avaliação sobre a legalidade do encontro. Fiz um questionamento hipotético, citando as informações desta reportagem, sem revelar o nome da empresa Ativa e de Sergio Moro.
Schlickmann considerou que há uma zona cinzenta na legislação sobre regras para pré-candidatura e que apenas se esse caso específico fosse analisado juridicamente pelas autoridades eleitorais poderia se avaliar, por exemplo, uma doação de dinheiro realizada por uma pessoa jurídica, o que é proibido pela lei.
“Nesse período de pré-campanha, como ele não está regulamentado, a única coisa que podemos dizer com segurança na lei das eleições é que o partido político pode promover eventos. Mas o pré-candidato não. Ele está sempre sujeito a uma avaliação da Justiça Eleitoral que pode não ser favorável”, comentou.
“O melhor dos mundos seria ter isso [a regulamentação] às claras. O que, efetivamente, as pessoas podem ou não fazer. Usar uma pessoa jurídica, se for isso realmente o que aconteceu, pretensamente a seu favor, de sua propriedade ainda, com certeza não seria uma prática considerada lícita”, concluiu ela.
Régua moral
Por uma ironia da conjuntura, na terça-feira, Moro se sentou à mesa com um crítico do seu trabalho como juiz. Em 2019, enquanto trabalhava na defesa política de Cunha, Carlos Marun acusou os procuradores da Lava Jato de medirem “os outros por sua pequena ou inexistente régua moral”.
Mediador do evento na Ativa, Marun ficou conhecido como um dos principais membros da tropa de choque do ex-presidente da Câmara, Eduardo Cunha, do MDB, e ajudou a dificultar a cassação do colega parlamentar o quanto pôde. Com a ascensão de Michel Temer ao poder, o então deputado foi alçado a ministro da Secretaria de Governo.
O ex-deputado me contou que presta consultoria para a Ativa Investimentos, mas que apareceu neste encontro gratuitamente, como convidado.
“O encontro foi promovido por uma empresa de investimento para seus clientes com o ministro Moro, e fui convidado para fazer comentários políticos, e o economista Étore [Sanchez, economista-chefe da Ativa Investimentos] foi convidado para fazer comentários na área econômica”, me disse Marun. Além de Étore Sanchez, Marun não quis dar os nomes de outros participantes, apenas comentou que Moro estava acompanhado de uma assessora e não havia outros políticos no local.
“Reunião pequena para poucas pessoas, e eu não tenho conhecimento em relação aos clientes da empresa. Não sei [dizer] quem estava presente”, desconversou Marun. Questionei a Marun se Dody Sirena estava na reunião. Ele disse que o empresário não estava e fez questão de me demonstrar que o conhece. “Eu sei porque eu conheço Dody, e ele não estava presente”, falou.
Na terça-feira, dia da reunião, liguei para Sanchez, mas ele não atendeu. Por mensagem no seu WhatsApp, evitou comentar o assunto e pediu para que procurasse a assessoria de imprensa da Ativa Investimentos.
Um segundo evento com Moro e a Ativa Investimentos deverá ocorrer em “São Paulo/SP, em data e horário a serem ajustados em comum acordo entre as Partes”, de acordo com o contrato.
Procurei o empresário Dody Sirena por meio de sua página no Instagram e no telefone da DC Set, empresa controladora da Delos. Por e-mail, pedi informações e esclarecimentos para o diretor da Delos que assina o contrato com Moro, Rodrigo Mathias. Até o final da tarde de sexta-feira, nenhum deles se posicionou.
Correção: 19 de fevereiro de 2022, 8h24
O total negociado foi R$ 110 mil, e não R$ 100 mil. O texto foi corrigido.
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