quinta-feira, 9 de abril de 2020

Os ciclos da história e a volta da velha rebelião das massas, por Luis Nassif


Gasset apontava a “enorme incongruência entre a perfeição de nossas ideias sobre os fenômenos físicos e o atraso escandaloso das ‘ciências morais”

Do Jornal GGN:



O mundo sempre volta ao mesmo lugar, alguns pontos acima. A afirmação do maestro Hans-Joachim Koellreutter sempre me calou fundo. E a leitura do livro “América Latina, Males de Origem”, de Manuel Bonfim, reforçou essa sensação. Cem anos depois, no Cruzado, depois no Real, o mundo e o Brasil repetiam o mesmo roteiro. Sintetizei minhas observações no livro “Os cabeças de planilha”.
Primeiro, a expansão ilimitada da financeirização, invadindo as fronteiras nacionais, desregulando a economia global, a articulação dos bancos centrais mundiais, e as alianças entre bancos ingleses e financistas nacionais. Monta-se o jogo político em que a figura central passa a ser o suposto conhecimento científico do economista – chamado de financista na época.
Depois, crise após crise, desmoralização dos organismos multilaterais, aumento da concentração de renda. Na época, não havia incorporado os efeitos da gripe espanhola. Certamente foi um dos ingredientes centrais que desmontaram a velha ordem já constituída, sem colocar uma nova ordem no lugar. Nesse caos generalizado, aparece o rádio rompendo com a estratificação do mercado de opinião anterior, centrado no espaço restrito dos jornais de baixa circulação. No Brasil, resultou no fim da República Velha e na ascensão do tenentismo. Na Rússia, a era do comunismo; na Europa, na implantação do fascismo.
As semelhanças com os anos 20 ficaram escancaradas no livro “A rebelião das massas”, de Ortega y Gasset. O prefácio para a edição francesa mostra uma impressionante semelhança com os tempos atuais, mostrando que muitas vezes a história se repete, não como farsa, mas como tragédia.
Vivia-se, ainda, a era da ciência, um enorme avanço na mecânica, na física, nos mercados. E Gasset apontava  “ enorme incongruência entre a perfeição de nossas ideias sobre os fenômenos físicos e o atraso escandaloso das ‘ciências morais”.
“O único do que vai dito nestas páginas que me inspira algum orgulho, é não haver incorrido inconcebível erro de ótica que sofreram então quase todos os europeus, inclusive os próprios economistas. Porque não convém esquecer que então se pensava mui seriamente que os americanos haviam descoberto outra organização da vida que anulava para sempre as perpétuas pragas humanas que são as crises. Eu me envergonhava de que os europeus, inventores do mais elevado que até agora se inventou – o sentido histórico -, mostrassem carecer dele completamente”.
Menos de dez anos atrás, o mundo acreditava que a articulação entre bancos centrais seria suficiente para vencer todas as crises.
Há total semelhança dos bordões de economistas repetidos até a exaustão por todos os níveis intelectuais e que levaram à banalização do pensamento.  “O ministro, o professor, o físico ilustre e o novelista soem ter dessas coisas conceitos dignos de um barbeiro suburbano. Não é perfeitamente natural que seja o barbeiro suburbano quem dê a tonalidade do tempo?” Total semelhança com a banalização do pensamento, nas últimas décadas, da Globonews pegando os supostamente bem pensantes até os programas populares pegando o baixo claro.
Reconhecia como uma das poucas unanimidades do período a condenação do velho liberalismo. Para ele, o liberalismo individualista se inspira e morre com a Revolução Francesa. A criação característica do século 19 foi precisamente o coletivismo que cresce e se dissemina com o aparecimento dos grandes centros urbanos. E o grande instrumento de suplantação é a simplificação da fala – justamente o que ocorreu com o fenômeno da Internet. “A saborosa complexidade indo-européia, que conservava a linguagem das classes superiores, ficou suplantada por uma fala plebéia, de mecanismo muito fácil, porém, ao mesmo tempo, ou por isso mesmo, pesadamente mecânico, como material; gramática balbuciante e perifrástica, de ensaio e rodeio como a infantil. E, efetivamente, uma língua pueril ou gaga que não permite a fina aresta do raciocínio nem líricas cambiantes”.
Do mesmo modo, a polarização política, lá e cá, é uma maneira de vulgarizar o debate. “ Ser da esquerda é, como ser da direita, uma das infinitas maneiras que o homem pode escolher para ser imbecil: ambas, com efeito, são formas da hemiplegia moral. Ademais, a persistência destes qualificativos contribui não pouco a falsificar mais ainda a “realidade” do presente, já fala de per si, porque se encrespou o crespo das experiências políticas a que respondem, como o demonstra o fato de que hoje as direitas prometem revoluções e as esquerdas propõem tiranias”.
Religião, conhecimento e outras formas de ocupar o centro da mente humana são substituídos pela politização integral de todos os temas, “uma das técnicas que se usam para socializar” o homem massa, e tirá-lo da sua solidão cósmica. E, nessa quadra, surgem os demagogos, “os grandes estranguladores das civilizações”.
Espera-se que as semelhanças entre os dois períodos se esgote aí. No de Ortega a consequência foi uma guerra mundial, na qual a civilização quase perdeu para a barbárie.

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