No domingo, 29 de março, recebi uma notificação de mensagem que criticava os fanáticos que ignoravam evidência científica. Certa de que era uma mensagem de minha própria rede progressista, surpreendi-me ao ver que era de um dos tantos grupos bolsonaristas que acompanho. Os fanáticos, no caso, seriam os esquerdistas que são movidos pela ideologia. Nessa bolha, eles compartilham estudos duvidosos e até mesmo matérias antigas, como foi o caso na reportagem do El País sobre a Itália antes da crise, que obrigou o jornal a emitir uma nota dizendo que se tratava de uma matéria antiga. O mesmo ocorreu com o uso descontextualizado de uma fala de Drauzio Varella se referindo à epidemia como uma gripezinha.
Esses exemplos indicam que os fanáticos bolsonaristas não estão ignorando a ciência como fonte de autoridade e recorrendo à ordem divina de Deus para justificar seu entendimento sobre a pandemia. Eles recorrem a um recorte conveniente e oportunista da ciência. É uma espécie de populismo científico vulgar.
Esse populismo científico hoje se mostra letal. E isso não é privilégio dos autoritários tupiniquins. Donald Trump tem causado constrangimento entre as principais autoridades em epidemiologia que dão suporte às ações do governo norte-americano. Trump é o próprio ignorante orgulhoso – e agora faz jus a esse título defendendo o uso de hidroxicloroquina e azitromicina no combate ao coronavírus.

Não são as caminhonetes em carretada que estão salvando vidas: são as instituições democráticas.
Hidroxicloroquina, em particular, é a mesma substância o que a família Bolsonaro está engajada difundir como possível cura do coronavírus – o que pode ter consequências catastróficas sobre a população brasileira que há muito tempo está exposta à automedicação e ao mercado ilegal de remédios e receitas médicas falsificadas. Mas nem Donald Trump nem Boris Johnson ganham de Jair Bolsonaro quando o assunto é estupidez humana. Nenhum líder do mundo tem sido tão irresponsável, danoso e até genocida do que aquele que ocupa o Palácio do Planalto. Como disse a manchete da revista norte-americana The Atlantic: “O movimento de negação do coronavírus tem agora um novo líder”.
O antídoto contra o populismo científico é um só: a ciência consolidada. Como apontou Mariana Varella, editora-chefe do Portal Drauzio Varella, ao contrário de muitos tópicos em que há disputas de visões, no caso do coronavírus há consensos estabelecidos: 1) isolamento diminui a curva da disseminação e 2) a situação do Brasil será grave.
Quando milhões de vidas estão em risco, não há diálogo com fanáticos. Foram muitas décadas de lutas para que chegássemos a um modelo de democracia que se pretende secular. A tolerância precisa ser zero.
A crise do coronavírusLeia Nossa Cobertura CompletaA crise do coronavírus
Nessa mesma direção, a tão comentada saída da CNN Brasil da comentarista Gabriela Prioli não podia ter sido mais acertada. Não dá para opiniões embasadas em evidências debaterem com o achismo como se fosse um debate simétrico. Também foi fundamental a atitude do Twitter em deletar os tuítes de Bolsonaro que exibiam imagens de ele dando as mãos para ambulantes do Distrito Federal. Os representantes da rede social declararam que as publicações iam de encontro às orientações oficiais de saúde pública. O limite da liberdade de expressão é justamente quando ela fere o princípio da honra e da vida. Declarações genocidas precisam ser banidas.
Por outro lado, diante de toda essa tragédia, há de se celebrar que, como bem colocou o cientista político Steven Levitsky, a crise do coronavírus isolou os líderes autoritários. A gente pode sofrer com a repercussão e insanidade de Bolsonaro, mas existe um fato inegável: grande parte da população está confinada, e o presidente está sendo desautorizado por políticos e pela população. Sua legitimidade se corrói ainda mais entre setores que ainda estavam em cima do muro – é claro, que não estou falando do bolsonarista-raiz.
Hoje, à frente do país estão as instituições de pesquisa, as autoridades sanitárias, os meios de comunicação e a sociedade civil que se organiza para garantir a sobrevivência dos mais vulneráveis. Não são as caminhonetes em carretada que estão salvando o Brasil: são as instituições democráticas que, a duras penas, resistem e se engrandecem em momentos de crise.