sexta-feira, 11 de setembro de 2020

A nova fase do fascismo e uma sociedade sem futuro, por Maurílio Botelho

 

Em livro de 1993, Robert Kurz analisava: direita radical é filha legítima da democracia. Mas a que se fortalece agora é distinta da que houve no Entreguerras: reacionária e passadista, já é fenômeno da crise estrutural do capitalismo

Por Maurilio Botelho

Sobre o livro A democracia devora seus filhos¹, de Robert Kurz

Lançado em 1993 como um longo artigo, A democracia devora seus filhos [trad. Daniel Cunha] antecipa em muitos aspectos o debate atual sobre o radicalismo de direita e a “morte da democracia”. A persistência do debate é um sintoma importante. Se por todos os lados se afirma que as “instituições democráticas estão em funcionamento”, então por que o fascismo volta à pauta nos meios de comunicação, nas discussões intelectuais e nas manifestações de rua?

Uma resposta imediata é a que entende o fascismo como uma ideologia autoritária sempre à espreita, uma ameaça à sociedade que ganha fôlego toda vez que são acentuadas as tensões e fragilidades sociais. Os liberais tendem a avaliar o fascismo como um risco que se manifesta quando a vigilância democrática é afrouxada – as regrinhas de Umberto Eco para a identificação do comportamento fascista oferecem, assim, um protocolo para “soar o alarme”. O ponto fraco dessas interpretações é que elas fixam o fascismo como um impulso antissocial geral desprovido de conteúdo histórico, algo completamente externo às instituições e, muitas vezes, parte de uma instintiva natureza humana violenta.

Se a “democracia amadureceu”, perguntamos, seguindo Kurz, então como explicar que três décadas de “democratização” no Brasil tenham conduzido a extrema direita ao poder; que o Leste Europeu, depois de três décadas de “choque democrático”, agora se oriente para o radicalismo de direita? Talvez seja possível colocar tudo isso na conta do déficit democrático desses países. Mas, então, como explicar a ascensão da extrema direita nas instituições parlamentares francesas e inglesas, a proliferação dos grupos neonazistas na Alemanha e que a maior nação democrática do mundo tenha levado ao poder um filho da KKK que trata supremacistas brancos como “very fine people”?

Outra linha de interpretação abordou o fascismo não como algo exterior, mas parte integrante da sociedade capitalista. Para Adorno e Horkheimer, na Dialética do Esclarecimento, o fascismo é o outro lado da racionalidade moderna, como uma força inseparável de uma sociedade que maneja meios técnicos avançados, mas permanece inconsciente em relações às determinações básicas da “gigantesca maquinaria econômica que não dá folga a ninguém”. Esse mecanismo converte a dominação em uma adesão inconsciente de todos. A comparação entre o Terceiro Reich e a Hollywood não era mera estratégia polêmica, mas resultado da reflexão sobre a técnica transformada em autoconservação individual em uma sociedade massificada: sob a forma individualizada ou do “povo” (Volk), a tendência era uma identificação geral com as “potências monstruosas” inauguradas pela produção em série, que culminou na industrialização da morte nos campos de extermínio.

O que se ganhou em enquadramento social – nas palavras famosas de Horkheimer, “quem não quer falar de capitalismo também deve silenciar sobre o fascismo” – foi o que se perdeu em historicidade do fenômeno fascista. A abordagem da “Escola de Frankfurt” também interpretou o fascismo como uma ameaça sempre latente, ainda que identificasse os vínculos íntimos da massificação promovida pelo mercado e a produção cultural industrializada com o totalitarismo.

Essa indeterminação histórica é o ponto de partida de Robert Kurz para discutir a relação entre fascismo e capitalismo. Em sua análise, o fascismo histórico aparece como um processo de gestação da democracia. A oposição entre fascismo e democracia erra porque apreende momentos ou etapas distintas de um mesmo processo histórico, manejando categorias abstratas (democracia, ditadura, liberdade) sem a sua respectiva moldura temporal. O fascismo foi um fenômeno típico da modernização capitalista em países retardatários como a Itália e a Alemanha, muito diferente de nações onde as travas das sociedades agrárias já tinham sido superadas (França, Inglaterra) ou nunca existiram (EUA). Estes últimos estavam à frente no processo de construção da universalidade do mercado mundial por meios de instituições políticas que levavam progressivamente à forma livre e individual do cidadão e do consumidor; mas onde o desenvolvimento industrial avançava se batendo com as heranças estamentais foi preciso uma força violenta e destrutiva que libertasse as potências institucionais da democracia de mercado. Para Kurz, esse é o vínculo íntimo do fascismo com a democracia: a violência e terror do fascismo e do nacional-socialismo foram as dores do parto do nascimento da democracia em nações até então atrasadas no mercado mundial e que, no entanto, estavam já em concorrência direta com as potências capitalistas da industrialização clássica: “dessa perspectiva histórico-genética, o nacional-socialismo surge como momento específico do processo de construção da democracia moderna da economia de mercado, como um de seus estágios preparatórios e de desenvolvimento, e a crise de então (guerra mundial e crise econômica) como a maior de suas crises de desenvolvimento” (p. 45).

É claro que essa formula fere o ouvido sensível dos democratas ilustrados, que não podem admitir que sua forma ideal e mais avançada de convivência política tenha se desenvolvido por meio do fascismo histórico, que serviu como instrumento de imposição da “socialização pelo valor”, isto é, das formas da mercadoria, do dinheiro e do capital. Mas a formulação de Kurz tem ainda outro ângulo que a torna extremamente atual para explicar a ascensão da extrema-direita no seio das democracias ocidentais: o novo radicalismo de direita não tem mais a ver com o fascismo em sua manifestação histórica no Entreguerras, a não ser em termos simbólicos e ideológicos secundários; é um fenômeno não mais de ascensão, mas de dissolução da democracia de mercado. Como momento específico de um continuum que aplainou o terreno para o desenvolvimento da democracia em países de modernização retardatária, o fascismo e o nacional-socialismo não podem se repetir historicamente: “A máquina mortal nacional-socialista (…) era hipermoderna e orientada para o futuro” (p. 39). Por outro lado, a irrupção generalizada de gangues raivosas de direita, skinheads, milícias, supremacistas brancos e neonazis são fenômenos próprios da desagregação da economia capitalista a partir da década de 1970 e que atingiu em um primeiro momento os países da periferia ou da semi-periferia. A explosão do extremismo de direita no centro do capitalismo corresponde, assim, ao aprofundamento da crise estrutural do capitalismo. Esse argumento Kurz já havia indicado em O colapso da modernização (1991)onde apontava que o colapso do socialismo de Estado era apenas o início da crise geral do sistema capitalista. O tom polêmico permanece agora: “o nervo da consciência democrática é atingido” quando Kurz sustenta que o novo radicalismo de direita é filho legítimo da democracia de mercado, não uma excrescência. É por isso que “toda democracia produz como reação imanente ao fim do processo de modernização, com regularidade lógica, o novo radicalismo de direita em qualquer de suas variações” (p. 34).

Todos os variados grupos e expressões “neofascistas” não passam de sintomas da derrocada do mercado mundial que levou à produção tecnológica ao seu mais alto grau e agora expulsa gradativamente a força de trabalho, potencializando as tensões sociais, fazendo vazar ressentimentos étnicos e nacionais e levando à guerra civil difusa nas ruas. Não poderíamos esperar outra coisa de indivíduos que internalizaram as coerções da rentabilidade capitalista, sentem e ouvem por todos os lados os chamados à concorrência. O cidadão aferrado à defesa democrática das liberdades econômicas agora tem de conviver com seu irmão “neofascista” que quer se impor no mesmo campo da concorrência usando, para isso, de todas as armas possíveis, incluindo as armas de fogo. A diferença dessas hordas milicianas e mafiosas em relação ao fascismo histórico, segundo Kurz, é que elas não têm mais qualquer capacidade de formar um projeto social e político abrangente, dado que também a democracia de mercado cumpriu seu papel histórico e a individualização foi levada ao extremo. O novo radicalismo de direita não deixa de mostrar sua verdade histórica ao erguer bandeiras monarquistas, faixas com símbolos cruzados ou suásticas: sua inclinação é regressiva e atesta que vivemos em uma sociedade sem futuro.


[1] A democracia devora seus filhos. Robert Kurz. Rio de Janeiro: Editora Consequência, 2020, 172 pp.



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