domingo, 24 de setembro de 2017

O Brasil que o povo quer, por Ion de Andrade




GGN.- A iniciativa “O Brasil que o povo quer” da Fundação Perseu Abramo e do PT é uma dessas boas notícias que devem ter visibilidade e capilaridade pois representa uma mudança importante de metodologia para a construção do que denominam de “Um novo Programa para o Brasil” na qual a participação popular tem papel central através de uma plataforma de debates.
Essa iniciativa, se bem executada, e não se iludam os organizadores, deveria tornar-se uma ação permanente, embora possa agora ter papel focado num plano de governo, permite à esquerda, através da sua maior organização partidária, pois a Frente Povo Sem Medo também abriu uma iniciativa semelhante, ir saindo de uma estratégia centrada no discurso e num planejamento centralizado para outra, mais participativa e mais afinada com a sua missão histórica de ser veículo político das aspirações do nosso povo.
Mudança metodológica importante a iniciativa começa a responder o enigma posto pela esfinge das jornadas de junho de 2013. Se consolidada como ação permanente tem poder de oxigenar a política partidária, evitando surpresas gigantescas e invisíveis como as que amadureceram subterraneamente em 2013, sem que ninguém tivesse previsto. Se tiver sucesso, a expressão de novas necessidades nos debates trará impacto na política pelo potencial que tem para consolidar consensos que deverão passar a compor uma agenda de lutas não somente para o plano nacional, mas também para os planos locais, municipais e estaduais. Ou seja, fincar o plano de governo na leitura que será feita das necessidades expressas no debate, tem potencial para alinhar a macro e a micropolítica num projeto único. Permite que desde a o nível local, onde atua a associação de bairro, até os níveis governamentais de cidades, estados e eventualmente do país, haja coerência na construção de um projeto comum de emancipação do nosso povo. Portanto a Fundação Perseu Abramo e o PT devem perceber o papel estruturante dessa iniciativa, evitando que venha a ser operada apenas como uma ferramenta eleitoral.
Vale perceber também que essa iniciativa tem potencial para fomentar o protagonismo popular desde que venha a alinhar realmente as teses partidárias e as ações de governo, pois o processo retornaria para o povo seja como uma agenda de lutas focadas em novos nortes, seja como conquistas realizadas, permitindo um encontro entre a agenda “economicista” (que é como com preconceito denominamos as lutas dos movimentos sociais e das comunidades) com a agenda partidária, comumente apenas um enunciado de vontades, muitas vezes sem eco na prática, ou no cotidiano das maiorias. De fato esse é o caminho para a intervenção na Sociedade Civil por meio de uma política ampliada, que expande o protagonismo do povo e concretiza, nas vitórias que possa ter, a metamorfose crítica dessa sociedade na que queremos, ao tempo que politiza o protagonista.
Ora, atenção aqui, as conquistas locais de um projeto que se constrói a muitas mãos em toda parte e tece coerência entre a macro e a micropolítica, exprimem o tipo de vitória que devemos mirar e viabilizar porque vão materializando hoje, na capilaridade, a cidade futura e realimentam o processo de credibilidade nas lutas por parte do povo, sendo por isso fonte importante de politização das maiorias e de consolidação da sua identidade enquanto um sujeito político que atua no cotidiano e na História. Se tiver sucesso o processo de alguma forma pode inaugurar a guerra de posição na Sociedade Civil, onde se disputa uma hegemonia. Melhor, ao podermos fazer mais estando no poder continuamos a construção do mutirão com o qual todos se identificam como autores.
Esse processo tem potencial para fecundar a democracia representativa com elementos de democracia direta e, finalmente, cimentar uma unidade da esquerda que, por meio da escuta ao povo, possa ensejar a construção de um programa comum. Lógica singela, se a Frente Povo Sem Medo e a Fundação Perseu Abramo ouvirem o mesmo povo, bem provável é que sintetizem um projeto de Brasil bem parecido... O acervo desses dois debates deveria aliás ser público e oficialmente intercambiado entre uns e outros.
Hoje as energias da esquerda estão dirigidas por um lado para um modelo de intervenção dominado por uma política pouco participativa e limitada à liturgia eleitoral e à disputa pelo poder, entendido sempre como um pressuposto linear para os avanços sociais por um protagonismo desse poder e por outro por um planejamento estratégico opaco.
Assim, as vitórias dessa política que exprimem uma inadaptada guerra de movimento desenvolvida no interior da Sociedade Civil, são as vitórias eleitorais dos sindicatos, associações ou dos candidatos partidários, fatos certamente importantes, claro, mas dos quais as maiorias atuam apenas passivamente como eleitores e não como artesãos do seu próprio destino, fato que tem baixo poder politizador.
Então a iniciativa da Fundação Perseu Abramo é a face prática de algo que precisa ter teoria, com isso quero dizer que, embora a inovação seja positiva por si só, pois incrementa a participação popular e devolve de alguma forma o protagonismo político ao seu verdadeiro protagonista, precisamos saber o que se pretende com uma iniciativa como essa para que não se caia na ingenuidade de uma ação que, mais uma vez, por falta de estratégia, não seja tática para nada que esteja além de fazer eleitorado.
Quero sublinhar que o valor político estratégico dessa iniciativa é que ela aponta, mas estamos muito longe desse objetivo alvo, para um processo de conversão do nosso povo aos padrões de cidadania e de protagonismo necessários para assegurar a estabilidade e a irreversibilidade do Estado democrático de direito no Brasil. Seria melhor inclusive que os debates presenciais previstos para as sedes do PT na metodologia, ocorressem nas periferias, nos assentamentos rurais, nas sedes das associações ou dos sindicatos, etc, sob a liderança da Fundação Perseu Abramo.
Apontei para essa pauta em diversos artigos publicados aqui no GGN, aliás desde a posse de Dilma no seu segundo mandato. Nessa mesma ordem de ideias, construiu-se em Natal, a iniciativa precursora dessa que agenda “O Brasil que o povo quer”:  “A Carta de Natal”. Esse documento, de 2015, escrito pelos movimentos sociais organizados da cidade, se propôs a ser remédio para os desafios postos em 2013 de continuar o processo de inclusão das maiorias à contemporaneidade com um agenda concreta de propostas e métodos.
Vale lembrar que a esfíngica jornada de junho de 2013, metade expressão genuína de necessidades de aprofundamento e ampliação da democracia e metade gérmen de fascismo, também nasceu Natal. Foi aqui que ocorreu a primeira manifestação de rua pela redução dos preços dos transportes urbanos, que em lugar de apontar para “preços”, mas poucos tiveramouvidos de ouvir, apontava, na verdade, numa linguagem simbólica, para a mobilidade urbana, para a cidade amigável, para o acesso à cultura e aos bens simbólicos dos quais os transportes são meios incontornáveis. Tais necessidades aliás, não foram, reconheçamos, asseguradas em larga escala ao nosso povo, concomitantemente à luta exitosa contra a fome e a miséria.
Essa linguagem que exprime necessidades que vão além da fome e da miséria, se for bem interpretada nos ajudará a encontrar o caminho que o povo aponta de necessidades não atendidas. O problema aí é que o povo privado historicamente  da cultura e da experiência de vida liberta, não consegue exprimir claramente o que lhe faz falta, e isso comumente emerge como “vinte centavos” em lugar de mobilidade urbana e cidade amigável. O processo de participação popular nas discussões deverá, portanto, ser acompanhado de uma escuta amorosa para a sua devida decodificação para a política. Ou poderá gerar um diálogo de surdos.
É preciso, se entendermos bem o seu alcance, dar máxima prioridade à iniciativa da Fundação Perseu Abramo e do PT, e acrescento porque são frutos da mesma árvore, também à inciativa anterior da Frente Povo Sem Medo. Enfrentamos na atual quadra da conjuntura nacional o fascismo e esse fascismo nasceu gêmeo de outro gêmeo sedento de necessidades sociais não atendidas.
Há uma energética aí. Temos que alimentar e dar vida ao gêmeo que aponta para a cidadania e para um novo protagonismo das maiorias, única força capaz de estabilizar o Estado democrático de direito, de tornar a nossa democracia irreversível e de nos permitir continuar avançando. Ou teremos êxito nisto ou dias difíceis nos esperam. De fato, é um gêmeo ou o outro!
 “O Brasil que o Povo quer” não é uma opção. É, se tivermos sorte, foco e trabalho, a decifração, já tardia, do enigma da esfinge que nos livrará do fascismo e nos permitirá avançar rumo a uma sociedade que não somente terá resolvido a fome e a miséria, mas conseguirá ao mesmo tempo que constrói vida digna para todos, fomentar a politização e o protagonismo das maiorias.

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