segunda-feira, 20 de maio de 2019

Sem black blocs, Bolsonaro responde às manifestações das ruas através de um manifesto semioticamente criptografado para estimular as milícias fascistas virtuais e reais.



   "Ironicamente, um “manifesto” escrito por um espécime do mercado financeiro com seus interesses bem corporativos – um “não-acontecimento”.  Sem black blocs, Bolsonaro responde às ruas através de um manifesto semioticamente criptografado para elevar o moral das milícias virtuais e reais. Numa estratégia de manter-se sempre no centro das atenções, seja como herói ou “boi de piranha”."


Do CineGnose, de Wilson Ferreira (reproduzido no GGN)


por Wilson Ferreira

Cadê os black blocs? De 2013 a 2016, em toda manifestação de rua, lá estavam eles fazendo poses épicas para câmera e cinegrafistas em meio a chamas e destruição, enquanto eram incensados por alguns pesquisadores e artistas como “linda anarquia” antiglobalização. Por que desapareceram? Onde estavam nas grandes manifestações de rua, no dia 15, por todo o País contra os cortes na educação? Talvez suas ausências tenham uma relação direta com o atual governo que ocupa Brasília, embora o “manifesto do apocalipse” compartilhado por Bolsonaro nas redes sociais aponte para um governo vítima dos “interesses corporativos”. Ironicamente, um “manifesto” escrito por um espécime do mercado financeiro com seus interesses bem corporativos – um “não-acontecimento”.  Sem black blocs, Bolsonaro responde às ruas através de um manifesto semioticamente criptografado para elevar o moral das milícias virtuais e reais. Numa estratégia de manter-se sempre no centro das atenções, seja como herói ou “boi de piranha”. Um discurso monofásico e repetitivo, como apontou o linguista Noam Chomsky em relação à estratégia midiática de Donald Trump, emulada por Bolsonaro.
Nos anos 1950, o linguista Noam Chomsky criou uma das mais influentes abordagens sobre a gramática das línguas humanas – a “Sintaxe Gerativa”. Em rápidas palavras, consiste na descoberta de que todas as línguas humanas são capazes de criar um número infinito de expressões linguísticas (frases, sintagmas etc.) a partir de um conjunto limitado de fonemas, morfemas, palavras e regras computacionais. Uma surpreendente capacidade gerativa de fazer um uso infinito de recursos finitos.
Talvez isso explique a indignação de Chomsky com a criação artificial do consenso político na opinião pública através da mídia por meio de um discurso monofásico, repetitivo, previsível, mas de grande eficiência ideológica. Uma linguagem com pouquíssima variação. Repetitiva, mas eficiente.
Isso pode ser percebido na entrevista de Noam Chomsky concedida a Jan Ahrens do El País. Para Chomsky, “as pessoas já não acreditam nos fatos” porque “as pessoas não confiam mais em ninguém” – clique aqui.
“Nem mesmo nos veículos de comunicação?”, indagou Jan Ahrens.
“A maioria está servindo os interesses do Trump”, disparou Chomsky diante da surpresa do jornalista.
“Mas há alguns críticos, como The New York Times, The Washington Post, CNN…”, pontuou o repórter.
E Chomsky respondeu:

“Olhe a televisão e as primeiras páginas dos jornais. Não há nada mais que Trump, Trump, Trump. A mídia caiu na estratégia traçada por Trump. Todo dia ele lhes dá um estímulo ou uma mentira para se manter sob os holofotes e ser o centro da atenção. Enquanto isso, o flanco selvagem dos republicanos vai desenvolvendo sua política de extrema direita, cortando direitos dos trabalhadores e abandonando a luta contra a mudança climática, que é precisamente aquilo que pode acabar com todos nós”.

Chomsky em seu escritório na Universidade do Arizona, Tucson 
(Apu Gomes – El País)

Despolitização de extrema-direita

Acredito que é sob esse olhar perspicaz de Chomsky que deve ser interpretado o “texto bomba”, “manifesto do apocalipse”, “manifesto de Dallas” ou simplesmente “carta bomba” que o capitão da reserva dublê de presidente Jair Bolsonaro compartilhou no WhatsApp para seus contatos.
Escrito por Paulo Portinho (filiado ao Partido Novo pelo qual concorreu a vereador no Rio de Janeiro em 2018 e trabalha na Comissão de Valores Mobiliários – CVM), o típico “textão de Facebook” no qual desfila todos os clichês da atual onda de despolitização promovida pela extrema-direita.
Lamentos sobre um país “ingovernável” porque a política tem que se submeter a “conchavos”. Além disso, o textão diz que Bolsonaro ajuda a revelar toda essa “podridão” quando confronta os “interesses das corporações”.
“Não existe compromisso de campanha que pode ser cumprido sem que as corporações deem suas bênçãos”, para terminar em tom apocalíptico alerta para a ingovernabilidade, desemprego, inflação. Afinal, a “agenda de Bolsonaro não é dos interesses das corporações” e, por isso, o presidente está de mãos atadas pela “velha política”. Por isso, “Sell”, venda! Típica exortação do mercado financeiro no qual o missivista trabalha – ele parece fazer uma curiosa distinção entre “interesses de corporações” (os vilões) e “mercado financeiro” (no qual trabalha).

Não-acontecimento

O episódio tem todos os ingredientes de um “não-acontecimento” ou “pseudo-evento”, no sentido atribuído por Daniel Boorstin (clique aqui) ou Jean Baudrillard (clique aqui). O que aproxima ainda mais das observações de Chomsky: estratégia deliberada para manter sempre Bolsonaro no centro das atenções enquanto o “flanco selvagem” põe em ação a política de terra arrasada neoliberal.
Não sabia que ia ter tanta repercussão…”, diz “surpreso” o autor Paulo Portinho
Se não, vejamos:
(a) Tanto o autor como o dublê de presidente se dizem “surpresos” com a repercussão do textão. Em suas santas inocências ou espontaneidade, pretendiam apenas partilhar “com amigos e contatos” … Como se em redes sociais fosse possível algum tipo discrição.
(b) Paulo Portinho publica o texto nos dias que antecediam às manifestações contra os cortes na educação no dia 15 de maio – que acabaram sendo gigantescas por todo País.
(c) Timing e oportunidade: Bolsonaro compartilha o textão “com os amigos” em meio a uma agenda midiática negativa – a quebra do sigilo bancário do filho Flávio Bolsonaro e Fabrício Queiroz e os protestos nas ruas contra os cortes nas verbas da educação.

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