Nada disso deu as caras durante as duas horas e 45 minutos do debate que o ministro de segunda classe Roberto Goidanich, atual presidente da Funag, mediou na última terça-feira à noite e que tive o desprazer de assistir para contar a vocês na newsletter do TIB. Houve generosas doses do que se poderia esperar: mentiras, teorias da conspiração e pouco caso com os 12.400 mortos oficiais pela covid-19 que o Brasil contava àquela altura.
“O superdimensionamento da crise do coronavírus é baseado em modelos matemáticos futuros, semelhantes aos usados para espalhar o caos climático”, bradou Sepúlveda, um português radicado no Brasil desde a década de 1970 que foi protegido do fundador da Tradição, Família e Propriedade, a TFP, braço ultra-reacionário do catolicismo. “[Diziam que] Veríamos mortos nas ruas”, zombou.
“A ciência nunca vai poder decidir o que é melhor para nós mesmos. Pedem mil provas da eficácia da hidroxicloroquina mas nenhuma do isolamento social”, concordou Ruschel, um dublê de economista que passa o dia defendendo Bolsonaro no Twitter.
Olavo não apareceu. Mas um único post dele no Twitter, minutos antes do debate, deu um resumo do que se ouviria. Natural: a Funag se tornou uma difusora do pensamento do guru ideológico do bolsonarismo.
O Itamaraty escancarou suas portas a Olavo de Carvalho com a nomeação de Ernesto Araújo. “Ele é mais um entre vários [do governo] que não tinha espaço entre os grandes em sua área, como Paulo Guedes, Abraham Weintraub. O que o garante no cargo é o fato de ser discípulo fiel de Olavo de Carvalho”, me disse Guilherme Casarões, professor da FGV e pesquisador de política externa.
“Como depende do olavismo para existir como figura pública, Ernesto precisa dar palanque e amplificar a voz dele. A Funag é usada não só para legitimar ideias estapafúrdias mas também para cacifar pessoas que até ontem não tinham a menor relevância”, prosseguiu Casarões. É, como já se falou, a vingança dos ressentidos.
Nomes desconhecidos até a ascensão da extrema direita falam perante plateias de diplomatas e na internet sob a marca da Funag.
Araújo foi uma escolha de Eduardo Bolsonaro e de Filipe Martins, o assessor de Jair para assuntos internacionais cujo maior predicado é ter sido aluno de Olavo de Carvalho. Martins foi o primeiro da turma a ser convidado para proferir um seminário na Funag – falou sobre o que chama de globalismo, em maio passado.
Desde então, um compilado de nomes desconhecidos até a ascensão da extrema direita falou perante plateias de diplomatas e na internet – todos os seminários são transmitidos e ficam disponíveis num canal no YouTube.
Seguiram-se eventos parecidos com gente como os influenciadores Flávio Morgenstern (condenado a pagar R$ 120 mil a Caetano Veloso por promover um linchamento público no Twitter, acusando o cantor de pedofilia) e Alexandre Costa (autor de livros que batem George Soros e sociedades secretas no liquidificador para fazer panfletagem terraplanista), a juíza Ludmila Lins Grilo (que garante haver uma conspiração de colegas ativistas a favor do globalismo), o professor de direito Evandro Pontes (auto-denominado “tio careca”) e a deputada federal Chris Tonietto, do PSL fluminense, para quem “o meio ambiente também não pode ser tratado como se fosse Deus”.
Tido como funcionário correto no Itamaraty até ser guindado por Araújo ao comando da Funag, Goidanich se proclama um “soldado da atual política externa”, me contou o embaixador Paulo Roberto de Almeida. “Ele é alguém que se prestou a ser um serviçal do chanceler acidental, que por sua vez é serviçal dos malucos que mandam na política externa”, resumiu.
“Ele engajou a Funag numa guerra cultural contra o que veem como uma ameaça que é o que se chama de globalismo”, me falou um embaixador que ocupa um cargo importante no Itamaraty, pedindo sigilo.
“Está em busca de promoção, por isso estará alinhado com qualquer coisa que o ministro solicitar da instituição”, resumiu um outro diplomata que é próximo ao setor militar e também prefere não se identificar por medo de represálias.
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No debate de terça passada, Grimaldo fez questão de agradecer “também ao ministro Ernesto Araújo pelo convite”. Mas Goidanich pareceu à vontade no papel de bajulador de gente que usa o Itamaraty para ganhar a relevância que jamais teria por conta própria.
Quem não acredita tem uma nova chance de conferir nesta terça, dia 19, para quando está marcada uma nova rodada – a terceira – do seminário sobre a conjuntura pós-coronavírus. Os debatedores da vez são mais do mesmo: o condenado Morgenstern (seu sobrenome verdadeiro é Azambuja), a juíza Grilo e o youtuber Bernardo Küster, que costuma reproduzir mentiras como a que afirma categoricamente que “o parlamento francês legalizou a pedofilia“.
Eu pedi comentários a respeito dos eventos olavistas ao Itamaraty. Não recebi nada até fechar este texto. Enquanto isso, as baboseiras e mentiras com o selo da Funag seguem à disposição no YouTube.
“Espero que o espectador não encare visão dos nossos convidados como as da Funag ou do Itamaraty”, despistou Goianich, ao final do debate de terça passada, antes de mandar a real. “Mas os supostos especialistas defendem ideias globalistas e este tipo de ideia [olavista] não tem muito espaço. Agradeço canais que reproduzem nossos debates. O objetivo é disseminar o conhecimento.”
Foi prontamente atendido. As teorias da conspiração, na versão 2020, vão com chancela do Itamaraty, emporcalham a imagem do Barão do Rio Branco e atiram na privada o bom trabalho de décadas que tornou a diplomacia brasileira respeitada e influente no mundo.
O Itamaraty está doente.

Avisados por um leitor sobre a origem racista do termo, substituímos a palavra boçalidade no título usado na newsletter. Pedimos desculpas pela ofensa e agradecemos pelo aviso.