domingo, 26 de agosto de 2018

Sobre o direito democrático de se manifestar na UFSC contra o Estado de Exceção. Texto de Elaine Tavares



Do Contexto Livre:


Entrei na UFSC no ano de 1994. Fui trabalhar na Agecom sob as vistas do Moacir Loth
 e Raquel Moysés, dois jornalistas extraordinários. Ali aprendi a amar a UFSC.
Não com esse amor bobo, de trabalhador acrítico, que veste a camisa pra agradar
patrão. Mas com o amor compromisso, de quem sabe a importância que pode ter
uma casa de saber
quando for verdadeiramente popular. Um amor crítico também, capaz de enxergar as coisas
erradas e denunciar. Como quando quase perdi o emprego por denunciar em nível
internacional o assassinato de cachorros no HU, que eram usados pelos estudantes
e jogados no lixo, ainda vivos.Aquilo foi um furdunço, minha cabeça quase rolou.
Mas, foi justamente esse episódio que colocou em questão a tal da liberdade de expressão.
Como jornalista na UFSC eu deveria fazer vistas grossas ao crime? Ou, de maneira responsável,
denunciar e provocar a mudança? Creio que fiz o que era certo. Mas, não faltaram os censores,
os apontadores de dedo, os críticos do jornalismo. Acreditavam esses que, proteger e amar
a UFSC era ficar calado diante do horror. Não eu. E, com o apoio do chefe e dos colegas,
venci essa parada.

Depois, ainda na Agecom, mas sob outra chefia, vivi a dor da censura. Matérias feitas que
iam para o lixo, trabalhos que não me permitiam fazer, a voz calada, a impossibilidade
da expressão. Foi um tempo ruim, duro e triste. Mas, superei. Encontrei em meio a toda essa
dor, o caminho para a construção do IELA, onde hoje atuo. E da voz sufocada, da censura e
da impossibilidade, voltei a escrever e dizer das coisas da UFSC e da América Latina.
Porque é a alma do jornalismo ser crítico. Ou isso, ou não é jornalismo.

A UFSC sempre foi esse espaço contraditório. Em alguns lugares impera o conservadorismo,
o reacionarismo, o desrespeito. Em outros aflora a liberdade, a beleza, a comunhão.
É uma instituição pública e, como tal, abriga a pluralidade que existe na sociedade mesma.
E, cada um de nós, professores ou técnicos, temos a liberdade de expressar o que quisermos.
Em alguns cantos é mais difícil que outros, mas é a batalha normal da vida. A gente enfrenta
e avança.

Foi por se saberem numa instituição pública e afeita a democracia que trabalhadores, estudantes e
membros da comunidade expressaram sua dor e sua inconformidade com a tragédia que se abateu
sobre o reitor Luiz Carlos Cancellier, preso de maneira violenta, levado ao presídio e impedido de
entrar na UFSC por conta de uma denúncia de “obstrução de justiça”.

Era o dia da celebração do aniversário da UFSC. E era para ser uma data festiva. Mas, não foi.
O Cao havia se matado. Jogara-se do alto do xopingue por não suportar a dor de ser banido da
 universidade, espaço que amava a mais não poder. A dor, para os amigos, a perplexidade para os
conhecidos, o estupor até para os inimigos. Ele sequer completara metade da gestão. Sua figura
galhofeira, sempre com o cigarro entre os dedos, não mais circularia pelo Hall da reitoria em busca
de espaço para “fumaçar”. Fora levado à morte por uma ação truculenta e desnecessária.

Naquele dia, que deveria ser de festa, as gentes ainda estavam de luto. Mas, a UFSC tinha de
seguir em frente, então se decidiu que o que era para ser festa, seria celebração da vida e
protesto. Foi assim que as gentes da comunidade construíram faixas, cartazes e palavras
de ordem. E foram para o Hall onde estavam as autoridades. Aquele dia de aniversário seria
diferente e inauguraria a foto do Cao na galeria dos ex-reitores. E os amigos, colegas e
companheiros se manifestariam contra os abusos que tinham sido praticados pelos agentes
do poder público, da polícia e da justiça. Colocaram seus nomes e rostos em relevo,
para lembrar que a ação fora praticada por pessoas, com nome e sobrenome.  Porque o
Estado não é um ente, ele é feito de gente.

Aquele foi um dia triste. Para todos.

Pois agora, passados meses daquele momento, o atual reitor, Ubaldo Balthazar, e seu chefe de
gabinete , Áureo Moraes, foram denunciados por um procurador do Ministério Público,
Marco Aurélio Dutra Aydos, por, segundo ele, ofender a honra da delegada que conduziu
 a prisão de Cancellier, Érika Marena. Isso porque ela era um dos rostos estampados nas faixas
das pessoas que protestaram. O procurador quer que os dois paguem uma multa de 15 mil reais
por danos morais, quantia estipulada  pela própria delegada. Alega ainda que os dois, reitor e
chefe de gabinete, deveriam ter impedido a manifestação.

Ora, desde que a UFSC foi inaugurada, nos anos 60 do século passado, as pessoas protestam por aqui.
E nem mesmo na ditadura militar algum reitor impediu a livre manifestação. É fato que sempre foi
comum o chamamento da polícia para conter as manifestações. Mas elas nunca foram de fato
impedidas. As pessoas ficam ali, enfrentam a polícia, gritam, levantam seus cartazes.

Agora imaginem num dia de luto e tristeza, quando as pessoas precisavam expressar sua indignação e
quando todos ali estavam irmanados no mesmo sentimento de impotência diante da morte trágica?
Quem haveria de impedir que ação se fizesse? Cada um e cada uma que se somou naquele hall
estava ainda vivendo a perplexidade. E os rostos dos algozes do reitor morto era uma necessidade
do luto.

Nem o reitor, nem o chefe de gabinete teriam podido impedir a manifestação. Não o fizeram nem no
próprio velório do reitor, quando uma estudante se manifestou em protesto contra o reitor morto.
Porque a expressão ainda é livre nesse país, o qual muitos ainda chamam de democracia. Porque
 as pessoas ainda podem gritar, protestar, denunciar. E, a considerar a “normalidade” da UFSC,
se a manifestação não estava colocando em risco ninguém, que motivos haveria para impedi-la?

Não posso entender o que moveu esse procurador público a tornar “crime contra a honra” um grito
de dor, um protesto legítimo. Penso que numa democracia – como dizem os juízes do Lava-Jato –
ninguém é intocável. Sendo assim, os agentes públicos estão todos submetidos à mesma assertiva.
Também podem cobrados, criticados e denunciados.

Assim, nesses dias de imobilidade e medo, quando tudo nos convida ao silêncio assustado, venho
manifestar esse velho amor pela UFSC, que extrapola os dirigentes se plantão. E nesse amor,
manifestar também minha solidariedade aos colegas Áureo e Balthazar. E dizer que nessa específica
batalha, pelo direito de garantir a livre expressão da dor, estamos juntos.

Elaine Tavares
No Palavras Insurgentes





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