segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

O neoliberalismo jurídico e seu avesso tupiniquim influenciado por fundamentalistas evangélicos, por Fábio de Oliveira Ribeiro






Desde o golpe de 2016 os pastores evangélicos, vetores religiosos do neoliberalismo, conduzem um verdadeiro assalto coordenado às instituições públicas em geral e ao Sistema de Justiça em especial.

Arte MEC

O neoliberalismo jurídico e seu avesso tupiniquim

por Fábio de Oliveira Ribeiro, no GGN

O neoliberalismo se caracteriza por dois mitos: a ineficiência do Estado produz decadência econômica; somente a libertação das forças virtuosas do mercado é capaz de garantir o crescimento permanente da economia. Um dos corolários desse mito é a desregulamentação, com a transferência do poder legiferante da esfera pública para a esfera privada. O outro é a desdemocratização, pois seria impossível a existência de mercados livres se eles puderem ser controlados pela política.
Na esfera do Direito os reflexos do neoliberalismo são evidentes e paradoxais. Na produção, circulação e comercialização de produtos e serviços existe um evidente predomínio do direito privado sobre o direito público. Entretanto, esse fenômeno é forçado a coexistir com um aumento significativo do autoritarismo penal.
Não foi por acaso o Direito Penal do Inimigo passou a gozar de muito prestígio nos países neoliberais. Essa teoria que rejeita qualquer limitação ao poder punitivo, que defende a seletividade penal e que desdenha da segurança jurídica garantida pelo devido processo legal é a face autoritária de um sistema que produz tanto riquezas quanto exclusão social. Onde quer que seja implantado o neoliberalismo aumenta a concentração de renda e a criminalidade. A desregulação do mercado somente pode persistir mediante uma crescente repressão aos pequenos furtos e roubos. As manifestações de rua que ameaçam a higidez dos Estados neoliberais levam inevitavelmente à criminalização da política.
O espaço em que o Direito era objeto de discussão e formulação ganhou uma grande amplitude nas democracias liberais. Nos Estados neoliberais autoritários esse espaço está sendo reduzido. O objetivo do neoliberalismo é garantir o predomínio permanente do direito privado sobre o direito público mediante a repressão penal/política. Isso somente pode ser feito mediante um reforço substancial da hierarquia dentro do Sistema de Justiça. Todavia, as vezes a hierarquia existente é desafiada e/ou destruída para que a lógica do poder neoliberal possa se impor dentro do próprio Sistema de Justiça. Foi exatamente isso o que ocorreu durante a Lava Jato.
Alguns juristas chamam esse fenômeno de pós-democracia (Rubens Casara), outros de Estado de exceção (Rafael Valim e Pedro Estevam A. P. Serrano). Sem tirar o mérito destas análises, prefiro mergulhar na história para nela encontrar outros fundamentos possíveis para descrever o que está ocorrendo.
Nascido sob o signo de uma violência inenarrável contra os índios e, depois, contra os negros importados da África, o Brasil é um país extremamente desigual e instável. Períodos de relativa paz social são interrompidos por tiranias violentas implantadas quase sempre com a mesma finalidade: preservar a hierarquia racial e econômica originária do período colonial. A religião sempre ocupou um papel central nas disputas políticas brasileiras.
Desde o golpe de 2016 os pastores evangélicos, vetores religiosos do neoliberalismo, conduzem um verdadeiro assalto coordenado às instituições públicas em geral e ao Sistema de Justiça em especial. Mas eles não querem apenas conquistar cargos, privilégios e controlar o orçamento. O principal objetivo dos pastores é impor a ferro e fogo sua própria moralidade. Dentro dos marcos da Constituição Cidadã, a teologia da dominação total é incompatível com a democracia. Todavia, é evidente que ela tem servido perfeitamente ao ideal de desdemocratização sustentado pelos donos do capital.
Foi nesse contexto que começaram a aparecer juízes que dizem preferir aplicar a Bíblia à Constituição Cidadã. O curto-circuito entre o discurso teológico e o jurídico também pode ser visto nas encenações que ocorrem durante os julgamentos nos principais Tribunais do país.
Apesar de usarem um discurso laico supostamente sofisticado, no STF os inimigos da soberania popular (digo isso pensando especificamente nos Ministros Luiz Fux e Luís Barroso) se comportam como se fossem clérigos medievais. Quando fazem pose para as câmeras de TV durante as transmissões ao vivo dos julgamentos eles sempre dão a entender que as suas teses jurídicas são superiores às dos seus colegas. Quando são votos vencidos, os teólogos do neoliberalismo jurídico não exitam em usar a imprensa para desmoralizar a tese vencedora.
O positivismo jurídico foi claramente superado pela escola da livre interpretação. Quando entra em conflito com as preferências pessoais de alguns Ministros do STF a Constituição Cidadã é considerada inconstitucional. Acima de qualquer norma legal, o poder dos juízes deve ser exercido sem qualquer limitação. Esse dogma explica os ataques violentos da Associação dos Magistrados Brasileiros contra a Lei do Abuso. A rejeição da AMB ao “juiz de garantia” também se escora no mito da supremacia legítima do Direito aplicado de maneira ilimitada pelos juízes.
“En Portugal, como en España, dominó largo tiempo el método escolástico; el Derecho en su generalidad fué estudiado sobre bases teológicas, con intenciones moralistas y con inclinaciones hacia el absolutismo político, por obra cai exclusiva de sacerdotes.” (Filosofía del Derecho, Giorgio Del Vecchio, sexta edición corregida y aumentada, revisada por Luis Legaz y Lacambra, Bosch Casa Editorial, Barcelona, 1953, p. 281/282)
Caracterizada pelo autoritarismo, pela ambição teocrática da transformar a Bíblia em fonte primeira/única do Direito, pelo reforço da hierarquia e pelo mito de que os juízes devem ser totalmente livres de qualquer coação legal, a era neoliberal brasileira é diferente qualitativamente da era neoliberal norte-americana e europeia. O Brasil deu um salto para o futuro anglo-saxão e paradoxalmente aterrizou em seu próprio passado escolástico, moralista e absolutista.

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