sexta-feira, 29 de março de 2019

A principal religião praticada no Brasil por parte considerável da classe média é o ódio à democracia. Por Glauber Piva, Mestre em Ciências Públicas e Formação Humana


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Para compreender isso, é preciso um esforço de dupla natureza: analisar a aparente legitimidade social desse ódio à democracia no país e, também, buscar a compreensão dos movimentos econômicos que servem de motor para a instabilidade política e para o entravamento do próprio capitalismo tupiniquim[1]. Sob nenhum aspecto isso é uma tarefa simples, ainda que seja saborosa. O fato é que, na cena brasileira que perdura desde 2014, o ódio à democracia é, ao mesmo tempo, uma perturbadora trilha sonora e um insistente trilho institucional que nos devora os olhos. E, por isso, ao anular os ouvidos e perder os olhos, enlouquecemos sem sentidos.

O ódio à democracia é uma obra do francês Jacques Rancière, publicado pela Boitempo editorial, no qual ele faz um giro erudito em torno do trânsito feito pela própria democracia, que passou de oposição ao horror totalitário ao “reino dos desejos ilimitados dos indivíduos na sociedade de massa moderna” (p. 08). O ódio à democracia é tão antigo quanto ela própria. Mas, como ele próprio sugere, mesmo sem falar do Brasil, “a violência desse ódio” é bastante atual.

Bolsonaro entende que devemos comemorar o golpe civil-militar de 1964. Para ele, não houve ditadura, mas um regime saudável que teve apenas alguns “probleminhas”: afinal, “qual casamento é uma maravilha?”. A lista de estupidezes dele próprio ou de gente de seu governo é infindável: queima de livros, professores pedófilos, redução do salário mínimo, mentiras sobre um suposto deficit do sistema de seguridade social, um guru astrólogo acusado de pedofilia, propostas para armar professores para diminuir a violência nas escolas, desmonte do Ministério do Meio Ambiente, fechamento do Ministério da Cultura, paralisação do Ministério da Educação, invenção de um tal de marxismo cultural, entrega da base de Alcântara para os EUA e fim da reciprocidade diplomática com eles, ensinamento de matemática a partir do Gênesis, negação da inteligência, intolerância permanente, liberação do porte de armas, privatização da Eletrobras, extinção do conselho nacional de segurança alimentar etc. etc. etc…

A lista não tem fim, mas tem um mesmo ponto em comum: o ódio à democracia e a negação da política. Bolsonaro é o profeta do ódio, suas profecias odiosas têm sentido e intenção. Mas (atenção!), ele não é o inventor desse ódio e da violência decorrente dele.

Um pouco de história pode nos ajudar. A política brasileira e suas expressões oficiais fundam-se numa retórica liberal absolutamente artificial entre nós e que é celebrada como uma espécie de direito natural irrenunciável. Em nome disso, é melhor governar sem povo, sem dissensos e sem a interferência dos perturbadores dessa ideologia de elite: é insuportável o convívio com questionadores do discurso pseudocientífico dos que odeiam a democracia.

Quando Jair Bolsonaro diz que não houve ditadura no Brasil está dizendo, dentre outros absurdos, que a política não nos serve. Quando Paulo Guedes, no Senado Federal, ameaça sair do governo se suas propostas, ainda que baseadas numa série de tecnicalidades falaciosas, não forem aprovadas, está interditando a política. Quando o Ministério da Cultura é fechado e o de Educação é interditado, estão anulando a própria retórica fundadora da política.

Esta aí o paradoxo da política brasileira atual. A autoridade de nossos governantes se vê numa circular de contradições: ela precisa ser legitimada pela escolha popular, mas as decisões políticas e econômicas supostamente certas derivam do conhecimento “objetivo” de especialistas que odeiam a democracia e não suportam o cheiro do povo.

A ideia de que a política aqui é menor, mais suja, mais corrupta que “lá fora” e, portanto, deve ser interditada, não é uma expressão ingênua de algum desavisado, mas revela uma intenção de pensamento muito determinada: a condenação à intensidade da vida democrática. Mais contraditório ainda é que a condenação à vida democrática no Brasil (alegando uma suposta incapacidade natural à civilidade) é feita ao mesmo tempo em que se apoia intervenções militares dos Estados Unidos na Venezuela em nome de uma suposta democracia. Um raciocínio infantil do tipo “a grama do vizinho é mais bonita”.

Collor afirmou que deixaria “a direita indignada e a esquerda perplexa”. Bolsonaro já está fazendo isso.

Mas, sejamos honestos, Bolsonaro não tem liderança nem capacidade intelectual para inventar essa criminalização da política e da democracia. Ele é apenas parte de uma engrenagem que o faz ser seu porta-voz. Simplesmente porque ele tem a perspicácia de uma slime[2] ácida que corrói as mãos de quem lhe toca.

Não é à toa que seu apoio está diminuindo: nas ruas, entre seus patrocinadores no mercado, no Congresso Nacional e dentro do seu próprio governo. Simplesmente porque ele é um personagem tóxico que, além de não governar, atua na base dos gritos e da propagação do ódio.

A legitimação social desse ódio à democracia é parte da ideologia de elite que, no âmbito social, investe no baixo nível da reprodução da força de trabalho e, portanto, no aprofundamento e perpetuação das desigualdades extremas ao mesmo tempo em que nega direitos: a proposta de desmonte da previdência social é exatamente isso. É insuportável a eles verem os pobres se aposentando, frequentando universidades ou viajando de avião.

É nesse ambiente de negação da política, concentração de renda e rebaixamento das condições da vida urbana a níveis que inaceitáveis no Brasil e inimagináveis nos países do capitalismo central, que Bolsonaro é útil.  Porque é preciso um sujeito meio maluco para alimentar esse ódio e classificando de coitadismo a luta de negros, pobres e feministas. E, se estivermos de acordo que as sandices de Bolsonaro não são coisas de maluco, mas são parte de um projeto, precisamos ser diretos.

Pergunta: semeando diariamente esse ódio à democracia, onde quer chegar Bolsonaro?

Resposta:  ele quer enfraquecer as instituições (STF, parlamentos, imprensa, governos locais, a constituição federal e todo o aparato legal) e aprofundar o fosso entre a busca de satisfação privada e a esfera pública e (quem sabe?) normalizar a atuação de grupos paramilitares na vida pública.

Sejamos francos: quanto mais frágil estiver o país, quanto mais distante for a política da vida das pessoas e quanto mais sem sentido for a esperança, mais empoderados estarão as milícias que destroem a dignidade dos cidadãos e cidadãs. Seja nas periferias das cidades ou nas sombras das redes sociais virtuais. A estridência insistente de Bolsonaro é como uma senha para essas milícias destruírem reputações ou matarem o povo preto, pobre e periférico. Elas, essas milícias, são a expressão violenta desse ódio que ele vocaliza.

Na visão de Jacques Rancière, a essência da democracia é a pressuposição da igualdade, atributo insuportável para seus adversários. Esses caras reclamam que a democracia é real demais. Eles sabem que quanto mais democracia, mais participação política e, quanto mais participação política, mais dignidade. Mas essa gente é indigna, não sabe argumentar, acredita em qualquer propaganda e ama odiar. É por isso que a resistência democrática tem de ser diária, feita nas ruas e nas redes, com gritos, beleza e abraços.

Glauber Piva é Mestre em Polícias Públicas e Formação Humana (UERJ), é um bisbilhoteiro da vida comum. Ultimamente escreve sobre cidades e infâncias, política e comunicação.

[1] Sobre a influência dos interesses econômicos nesse ódio à democracia eu tratarei em outro texto.

[2] Massa de modelar caseira que virou febre entre crianças a partir de vídeos e receitas que circulam na internet.

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