sexta-feira, 29 de março de 2019

Golpe, humor negro e imbecilidade na atualidade, por Luis Costa Pinto




Por 21 anos, entre 1964 e 1985, o Brasil viveu sob uma ditadura militar. Ela foi instalada por um golpe clássico, daqueles em que chefetes de quartéis imbuíram-se da autoridade dos guardas da esquina, subiram nas carcaças de tanques que tinham sob suas responsabilidades e ameaçaram os subordinados caso não os seguissem. Depois meia dúzia ou uma dúzia desses, vá lá, meganhas fardados, conseguiu suspender as atividades do Congresso Nacional. Por fim, subjugaram o Supremo Tribunal Federal. O presidente constitucional da República, que assumira o mandato anos antes em razão da renúncia do eleito, num gesto desesperado por união nacional e para resguardar a integridade de seu povo evitando uma guerra civil, recusou a resistência armada que lhe foi ofertada e exilou-se no Uruguai.

Tudo começou assim.

Violando a Constituição de 1946, que enterrara outro período ditatorial, o rábula servil que ocupava a presidência da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazilli, declarou a vacância do cargo de presidente na madrugada de 2 de abril, na esteira de uma sessão burlesca chamada por ele e iniciada a 1º de abril de 1964 enquanto João Goulart voava para Porto Alegre. Xingado de "canalha, canalha" por Tancredo Neves no plenário do Parlamento, Mazilli usurpou a cadeira presidencial e convocou uma eleição indireta no prazo de 10 dias.

O pleito ilegítimo consagrou o último dos marechais de campo do Exército brasileiro, Castello Branco. Investido no cargo, Castello Branco conservou um pouco de juízo e quase nenhuma ascendência sobre as tropas sublevadas. Tentou uma transição para devolver o poder aos políticos, mas sucumbiu à tal noite de 21 anos. A íntegra desse roteiro já veio a lume por meio de narradores diferentes:

 primeiro, pelos vencedores imediatos, aos quais sempre cabe o rascunho dos fatos históricos.

 Depois, pelas penas adocicadas dos títeres da transição lenta, gradual e segura iniciada com o ditador Ernesto Geisel e concluída pelo hábil e colaborativo José Sarney.

 Por fim, ao resgatarem nas urnas o poder usurpado, sociais-democratas vencidos em 1964 começaram a reescrever a História com cores mais vivas e realistas depois da ascensão de Fernando Henrique Cardoso. Esse ciclo final, e justo, vinha se completando no período de Lula e de Dilma na presidência. Foi abruptamente interrompido pelo golpe parlamentar de 2016 que devolveu a turma da pena adocicada – em versão ainda mais dócil com os coturnos do que nos tempos de Sarney – ao Planalto.

A chegada do energúmeno e microcéfalo Jair Bolsonaro ao poder com a autoridade e a legitimidade do voto popular conferiu ousadia ímpar aos boçais que desejam, agora, jogar fora a História escrita anos a fio a partir da Comissão Nacional da Verdade e determinar a aposição de uma fake news no lugar do capítulo vergonhoso da ditadura militar em nossa biografia nacional: a versão falsa, torpe, pedestre, de que não houve nem violência física, nem mortes, nem violações constitucionais e à ordem constituída no período 1964-1985.

Os mortos e desaparecidos vítimas da bestialidade dos ditadores fardados e de seus jagunços nos DOI-Codis, nos Esquadrões da Morte, nas Operações Bandeirantes, nas delegacias, nos porões, nas esquinas e até mesmo em aparatos para-estatais mantidos em algumas empresas a fim de sustentar o regime somam 434 cidadãos. A herança maldita que se abateu sobre nossa sociedade aniquilou ao menos duas gerações de brasileiros que cresceram com medo da ação política e com nojo dos políticos. Medo e nojo quem nos traz são as ditaduras, assim nos ensinou Ulysses Guimarães no discurso em que promulgou a Constituição de 1988. E é a Constituição de 1988, lápide definitiva da ditadura sanguinária dos militares, que desautoriza o Carnaval fora de época que Bolsonaro deseja fazer nesse 31 de março de 2019. A data o flagra momentaneamente no exercício do poder.

Presidentes da República, nas democracias, podem muito. Num sistema imperfeito como o nosso, em que o Poder Executivo é hipertrofiado ante seus congêneres, pode mais ainda. Há limites, contudo, para esse excesso de proatividade presidencial e cabe aos outros dois poderes – Legislativo e Judiciário – delimitar a zona de exclusão das iniciativas sem lastro constitucional dos presidentes. Mesmo que estes tenham sido legitimamente eleitos. Afinal, sabemos todos, a categoria mais infame de idiotas é a dos idiotas com iniciativa. Esses são mais perniciosos aos contemporâneos porque exalam venenos tóxicos a cada atitude bárbara que tomam.

Bolsonaro não foi eleito por 39% dos brasileiros aptos a votar em 2018 para reescrever a História do Brasil. Ele foi eleito para tentar escrever ao menos um parágrafo da própria biografia, trabalhando depois para colá-la à colcha de retalhos que é a narrativa de nossa República – ainda assim se o povo julgar que merece. Não há nada a comemorar nas trapaças que a História no fez naquele 1º de abril de 1964 quando o general Mourão Filho surgiu guiando uns tanques em direção ao Rio de Janeiro na rodovia que liga a cidade a Juiz de Fora (MG), a não ser a grande piada contada nos salões das casernas: a de que se tratava de um "movimento", uma "revolução", e não um golpe de Estado. Foi golpe. Foi um golpe clássico.

No fim daquele dia inaugural da bestialidade, se houve grandeza e espírito público, eles repousaram em Jango. O presidente deposto recusou a resistência armada que Leonel Brizola lhe oferecia a partir do Rio Grande do Sul e que poderia sublevar algumas unidades no Nordeste também. Teria sido um banho de sangue. Só os facínoras e os débeis mentais celebram ditaduras e regimes de exceção.

Como voltar atrás, recuar sem vergonha de tê-lo feito, desdizer o que dissera, autotraduzir as próprias palavras são atos praticados por Bolsonaro sem se sentir em situação vexaminosa e sem enrubescer sequer os lábios emaciados, descoloridos, lembrando lábios de defuntos emaciados, que nos oferece na TV todas as vezes em que nela aparece, há tempo para ele anunciar que o apelo à celebração do golpe de 1964 foi uma chula, inoportuna e malfeita piada de 1º de abril.

Luis Costa Pinto é jornalista, escritor e consultor na Ideias, Fatos e Texto. É também membro do Jornalistas pela Democracia. Twitter: @LulaCostaPinto, Facebook: lula.costapinto

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