sexta-feira, 29 de março de 2019

A quem elogia a tortura e a degradação humana pela violência e perseguição cabe a pergunta: É isto um ser humano? Artigo de Flávia D'Urso, mestre em Direito Processual Penal e Doutora em Filosofia Política pela PUC/SP.


  "O racismo de ideologia científica dá lugar na modernidade ao racismo de ideologia política. Nesta perspectiva, o Estado se vale de uma técnica, portanto, de exercício de poder do domínio da vida das pessoas. Estabelece-se quem deve morrer e quem deve viver (biopolítica). A morte do outro não é simplesmente a condição da vida de cada um, mas da vida em geral, de toda a sociedade. A eliminação do indesejável tornará tudo mais saudável, mais puro."

Resultado de imagem para albert einstein marchar

Do site Justificando:
Quinta-feira, 28 de março de 2019

É isto um homem?

É isto um homem?
Ilustração com a arte “Perseguição” de Paul Klee
“É isto um homem?” é o título de um dos livros mais tocantes sobre o holocausto. O seu autor é Primo Levi, um judeu-italiano, preso em Auschwitz durante a Segunda Guerra Mundial. O seu relato é impressionante, muito embora não expresse qualquer juízo de valor. Limita-se ao relato de fatos que levam o homem a um grau de aniquilamento pouco imaginado para os que nunca experimentaram uma vida submetida a um extremo sofrimento até o limite constante da morte. Trata-se de um testemunho de profunda sensibilidade e reflexão sobre o comportamento humano em um contexto de extrema violência, caos e desumanização. A inspiração neste primoroso texto é o da tentativa de compreensão da perda conceitual da vida humana.
O fenômeno do racismo é muito, muito anterior ao período do nazismo. Assim é que, na cultura grega, Aristóteles classificava homens que “por natureza” estavam destinados a serem livres e comandar. Os romanos desprezavam os bárbaros profundamente. Na era cristã, os hebreus representavam a morte de um Deus. A polêmica da liberdade dos germânicos contra o absolutismo romano durou dois séculos e era toda baseada na teoria da raça.
No final do século XVIII, com o progresso das ciências naturais fomentado pelo Iluminismo, começou-se a tentar a classificação das raças humanas pelo rosto, fisionomia, etc… Quem não se lembra de Lombroso e suas teorias sobre o biótipo do criminoso?
As raças passaram a ser então categorizadas e, em sequência natural, hierarquizadas: a branca em primeiro lugar, por suas “qualidades” superiores à “sensualidade” dos negros e ao “materialismo” dos amarelos. Estas premissas supostamente científicas deram origem à eugenia e tinham por fundamento a necessidade de sobrevivência por um alucinante combate a degeneração racial. A mistura das raças, portanto, tornava-se uma obsessão proibitiva.
É neste contexto que a ideia de nação bem depressa se desvincula da ideia de povo. Essa é a chave do entendimento político da idade moderna e contemporânea. Não é o ideal de nação, mas o nacionalismo para o qual uma nação é superior às outras, e a seguir o imperialismo, obrigado a justificar o domínio colonial, que deram um novo e profundamente lesivo  impulso à difusão das teorias racistas.
O sangue passa a ocupar o lugar da língua e o primitivo se converte em mistério místico. É comovente a passagem no livro “É isto um homem” na ocasião em que Primo Levi tenta ensinar ao francês Jean expressões em italiano. A urgência da língua traduz-se na urgência da sobrevivência.
O racismo é um irracionalismo baseado na carne, no sangue, na hereditariedade biológica e  na terra em oposição à cultura, ao racionalismo e ao ideário humanista.
No nazismo, as ideias políticas do racismo atingem pela primeira vez uma dimensão estatal e a importância histórica desta condição levará Michel Foucault a uma conclusão fundamental em sua teorias sobre o poder: o racismo é muito mais profundo que uma velha tradição, muito mais profundo que uma velha ideologia, é outra coisa, diz o autor. A especificidade do racismo moderno, o que faz a sua especificidade não está ligado às mentalidades, às mentiras do poder. Está ligado à técnica do poder, à tecnologia do poder.
O racismo de ideologia científica dá lugar na modernidade ao racismo de ideologia política. Nesta perspectiva, o Estado se vale de uma técnica, portanto, de exercício de poder do domínio da vida das pessoas. Estabelece-se quem deve morrer e quem deve viver (biopolítica). A morte do outro não é simplesmente a condição da vida de cada um, mas da vida em geral, de toda a sociedade. A eliminação do indesejável tornará tudo mais saudável, mais puro.
É possível o entendimento, a partir destas premissas, das razões de uma política – em plena implementação pelo governo de Jair Messias Bolsonaro – onde a morte é requerida.
Os exemplos são diuturnos e intermináveis: mandar desafetos para a Ponta da Praia, fuzilar a petralhada, simulação de armas como mote de campanha (inclusive com crianças), elogios à atuação das milícias (por um dos filhos do Presidente na tribuna da Assembléia Legislativa no Estado do RJ), flexibilização do porte de armas, apologia da ditadura militar no cúmulo de uma orientação comemorativa para o dia 31 de março, etc.
O pacote “Anti-Crime”, proposto por um ainda saudado Ministro da Justiça, significará, sem dúvida alguma, o aumento brutal das mortes de negros e pobres de todas as periferias deste país, já com índices inaceitavelmente alarmantes.
O racismo político está formalmente adotado pelo Brasil e é hoje o modelo de atuação do poder do Estado.
É isto um governo?
Flavia D´Urso é mestre em Direito Processual Penal e Doutora em Filosofia Política pela PUC/SP. Advogada. Autora do livro “A crise da representação política do Estado. Perspectivas da soberania em Carl Schmitt, Michel Foucault e Giorgio Agamben”.  
Foto

Nenhum comentário:

Postar um comentário