sexta-feira, 29 de março de 2019

Paulo Coelho no Washington Post: “Fui torturado na ditadura. É isso que Bolsonaro quer celebrar?”



Paulo Coelho, 1971 (Paulo Coelho/Paulo Coelho)
De Paulo Coelho no Washington Post.
28 de maio de 1974: um grupo de homens armados invade meu apartamento. Começam a revirar gavetas e armários – não sei o que estão procurando, sou apenas um compositor de rock. Um deles, mais gentil, pede que os acompanhe “apenas para esclarecer algumas coisas”. O vizinho vê tudo aquilo e avisa minha família, que entra em desespero. Todo mundo sabia o que o Brasil vivia naquele momento, mesmo que nada fosse publicado nos jornais.
Sou levado para o DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), fichado e fotografado. Pergunto o que fiz, ele diz que ali quem pergunta são eles. Um tenente me faz umas perguntas tolas, e me deixa ir embora. Oficialmente já não sou mais preso: o governo não é mais responsável por mim. Quando saio, o homem que me levara ao DOPS sugere que tomemos um café juntos. Em seguida, escolhe um táxi e abre gentilmente a porta. Entro e peço para que vá até a casa de meus pais – espero que não saibam o que aconteceu.
No caminho, o táxi é fechado por dois carros; de dentro de um deles sai um homem com uma arma na mão e me puxa para fora. Caio no chão, sinto o cano da arma na minha nuca. Olho um hotel diante de mim e penso: “não posso morrer tão cedo.” Entro em uma espécie de catatonia: não sinto medo, não sinto nada. Conheço as histórias de outros amigos que desapareceram; sou um desaparecido, e minha última visão será a de um hotel. Ele me levanta, me coloca no chão do seu carro, e pede que eu coloque um capuz.
O carro roda por talvez meia hora. Devem estar escolhendo um lugar para me executarem – mas continuo sem sentir nada, estou conformado com meu destino. O carro para. Sou retirado e espancado enquanto ando por aquilo que parece ser um corredor. Grito, mas sei que ninguém está ouvindo, porque eles também estão gritando. Terrorista, dizem. Merece morrer. Está lutando contra seu país. Vai morrer devagar, mas antes vai sofrer muito. Paradoxalmente, meu instinto de sobrevivência começa a retornar aos poucos.
Sou levado para a sala de torturas, com uma soleira. Tropeço na soleira porque não consigo ver nada: peço que não me empurrem, mas recebo um soco pelas costas e caio. Mandam que tire a roupa. Começa o interrogatório com perguntas que não sei responder. Pedem para que delate gente de quem nunca ouvi falar. Dizem que não quero cooperar, jogam água no chão e colocam algo no meus pés, e posso ver por debaixo do capuz que é uma máquina com eletrodos que são fixados nos meus genitais.
Entendo que, além das pancadas que não sei de onde vêm (e portanto não posso nem sequer contrair o corpo para amortecer o impacto), vou começar a levar choques. Eu digo que não precisam fazer isso, confesso o que quiser, assino onde mandarem. Mas eles não se contentam. Então, desesperado, começo a arranhar minha pele, tirar pedaços de mim mesmo. Os torturadores devem ter se assustado quando me veem coberto de sangue; pouco depois me deixam em paz. Dizem que posso tirar o capuz quando escutar a porta bater. Tiro o capuz e vejo que estou em uma sala a prova de som, com marcas de tiros nas paredes. Por isso a soleira.
(…)
Décadas depois, os arquivos da ditadura são abertos e meu biógrafo consegue todo o material. Pergunto por que fui preso: uma denúncia, ele diz. Quer saber quem o denunciou? Não quero. Não vai mudar o passado.
E são essas décadas de chumbo que o Presidente Jair Bolsonaro – depois de mencionar no Congresso um dos piores torturadores como seu ídolo – quer festejar nesse dia 31 de março.

Nenhum comentário:

Postar um comentário