quarta-feira, 8 de julho de 2020

Bolsonarismo fardado e o lawfare da toga como efetuado pela Lava Jato são exemplos dos dois braços do pior autoritarismo . Artigo do jurista Pedro Serrano


"Na América Latina, o autoritarismo líquido resultou em impeachments inconstitucionais e processos penais de exceção. Na aparência, um processo penal, regular e de acordo com a Constituição, mas a maquiagem oculta a conduta política e tirânica, que trata o réu como inimigo do Estado. No pós-11 de setembro de 2001, foram normalizadas medidas de exceção típicas dos regimes jurídicos especiais de guerra ou grave ameaça à segurança nacional.
"O agente principal na experiência da América Latina não é, como se desenrolou nos países desenvolvidos, o chefe do Executivo. Foi o sistema de Justiça quem capitaneou as medidas de exceção, contribuindo com impeachments inconstitucionais (Brasil e Paraguai), quando não afastando diretamente o chefe do Executivo (Honduras)."

Foto: Isac Nóbrega/PR
FOTO: ISAC NÓBREGA/PR

Do site da CartaCapital:

A Lava Jato forneceu a escada para a ascensão do populismo autoritário no Brasil

A crise institucional abala alicerces do Estado Democrático de Direito concebido na Constituição de 1988. Ao contrário do que muitos pensam, o atual estágio nos apresenta um conflito entre duas formas de autoritarismo intimamente associadas: o bolsonarismo fardado e o bolsonarismo de toga.
Entende-se o bolsonarismo não como o movimento político em torno da figura do presidente da República, Jair Bolsonaro. Mas a marcha histórica iniciada nos anos 1990 e que culminou, décadas depois, com a vitória eleitoral do populismo de extrema-direita personificado em Bolsonaro.
Tem sido recorrente o que tenho chamado de autoritarismo líquido. Ou seja, a forma autoritária que não se manifesta por um governo de exceção, uma ditadura, um bonapartismo, mas por medidas de exceção no interior da democracia. Medidas de aparência democrática e constitucional, mas cujo conteúdo é político e tirânico, voltado à perseguição ao inimigo.
Na América Latina, o autoritarismo líquido resultou em impeachments inconstitucionais e processos penais de exceção. Na aparência, um processo penal, regular e de acordo com a Constituição, mas a maquiagem oculta a conduta política e tirânica, que trata o réu como inimigo do Estado. No pós-11 de setembro de 2001, foram normalizadas medidas de exceção típicas dos regimes jurídicos especiais de guerra ou grave ameaça à segurança nacional.
O agente principal na experiência da América Latina não é, como se desenrolou nos países desenvolvidos, o chefe do Executivo. Foi o sistema de Justiça quem capitaneou as medidas de exceção, contribuindo com impeachments inconstitucionais (Brasil e Paraguai), quando não afastando diretamente o chefe do Executivo (Honduras).
No Brasil, o autoritarismo líquido se traduziu no esvaziamento do sentido da Constituição, a partir dos anos 1990. Primeiro, o traficante foi eleito como inimigo do Estado. Depois, a figura genérica do bandido também ocupou esse lugar. Nos países desenvolvidos, o estrangeiro terrorista cumpre esse papel. Oriundos da guerra às drogas, no Brasil, esses processos elegem como inimigos uma parte da população, por óbvio, a mais empobrecida e negra.
Nesse sentido, foi o sistema de Justiça que se ocupou de criar as medidas de exceção. A migração para a seara política ocorre, inicialmente, no caso do “Mensalão”, mas tem seu ápice na Lava Jato, com a perseguição política a lideranças de esquerda. A defesa recebe tratamento pro forma, o conjunto probatório é frágil ou insuficiente, existe denunciação por uma conduta e condenação por outra, condenações prévias pela imprensa, enfim, processos que contrariam as normas formais e ofendem os princípios que caracterizam as relações civilizadas entre Estado e cidadãos. A aparência é democrática, mas o conteúdo é tirânico.
Abraçada às forças dos grandes grupos de mídia, a Lava Jato favoreceu e fortaleceu a criação de um circuito afetivo na sociedade de motivações populistas de extrema-direita. Fez migrar o populismo do sistema de Justiça para a seara política. É nesse momento que Bolsonaro é ungido como a liderança nacional. Ele dialoga com esse sentimento, usado eleitoralmente.
O bolsonarismo é, portanto, anterior à ascensão de Bolsonaro, nasce de ação política e militante de parte do sistema judiciário. É a expressão brasileira do autoritarismo líquido. A eleição de Bolsonaro consolida um bloco de poder autoritário. De um lado, o bolsonarismo político, com o presidente e sua família, parte das Forças Armadas, das polícias e grupos de milícias. De outro, o bolsonarismo jurídico, constituído por lideranças egressas do sistema de justiça. Sérgio Moro e Wilson Witzel são expoentes do bolsonarismo jurídico e decisivos para a ascensão do bolsonarismo político.
A atual crise é fruto do conflito entre essas duas frações do bloco de poder bolsonarista. Cada fração usa os recursos autoritários que dispõe. Bolsonaro ameaça com o uso das Forças Armadas, enquanto o bolsonarismo jurídico se utiliza das investigações e de processos de exceção para contra-atacar. É um conflito entre a farda e a toga. Mas ambas têm a tirania e o autoritarismo como força-motriz.
É preciso que os setores progressistas fiquemos alertas. Cada processo judicial precisa ser analisado individualmente. Observamos que alguns são legítimos, mas convivem com medidas ilegítimas de intervenção do Judiciário no Executivo, de processos e inquéritos que suprimem direitos fundamentais.
A existência de dois braços do autoritarismo, o bolsonarismo político e o bolsonarismo jurídico, deixou de ser um problema de governo ou da pauta apresentada pela esquerda. Passou a ser um problema de Estado em que todos os democratas devemos estar atentos e atuantes.

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Advogado, professor de Direito Constitucional da PUC-SP, mestre e doutor em Direito do Estado pela PUC/SP com pós-doutorado pela Universidade de Lisboa.

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