quinta-feira, 9 de julho de 2020

Desnudado, o presidente anti-sistema se prepara para o fim do Brasil. Por Paulo C. Ramos, cientista social, em artigo do Justificando


  O fenômeno do Bolsonarismo tem se explicitado na conduta pessoal do presidente, de seu staff, de suas referências pessoais e de sua rede de relações, de suas decisões e indecisões e, sobretudo, em seus discursos onde fica claro o que ele quer atacar. Ele pretende atacar tudo o que de alguma forma procurou se consolidar no Brasil – e como Brasil. Bolsonaro faz frente às bases simbólicas sobre as quais o País se construiu como nação, ao longo de uma centena de anos.


Do Justificando:


Desnudado, o presidente anti-sistema se prepara para o fim do Brasil

 Segunda-feira, 6 de julho de 2020

Desnudado, o presidente anti-sistema se prepara para o fim do Brasil

Arte: Justificando


Por Paulo C. Ramos,

Jair Bolsonaro venceu as eleições de 2018 no Brasil prometendo renovar a política, devolver “o Brasil aos brasileiros”, retirando-o dos políticos, acabar com a corrupção, entoando um discurso anti-establishment e antiinstitucional. Tanto nos assuntos internos como nos externos, ele tem se empenhado em demonstrar isso. Vide o esforço que o Itamaraty contra uma resolução que condenava o racismo e violência policial, a partir do Caso George Floyd, na ONU, contrariando uma tradição brasileira de atuação internacional no tema.

“Ele atua rompendo pactos nacionais sobre o qual as relações sociais no Brasil se desenrolam”
Com os recentes escândalos envolvendo seus filhos Flavio e Carlos Bolsonaro, e a saída de Sergio Moro do ministério da Justiça, a pauta anticorrupção esvaziou-se e acabou de vez quando o Centrão aderiu ao governo. Até o momento, três grupos ocupam o governo de Jair Bolsonaro; os militares e seu realinhamento com os EUA; a pauta reacionária da ala ideológica de seguidores de Olavo de Carvalho e de setores evangélicos; e o ultraliberalismo bagunçado de Paulo Guedes. Ainda que bem delineadas, Bolsonaro é incapaz de coordenar seus apoiadores.

As necessidades que foram impostas pela chegada da pandemia do Coronavírus e a opção de criar oposição entre saúde e economia jogaram o governo numa encruzilhada da qual ele não vai mais sair. É na crise que a verdade é exposta, dizem. E Bolsonaro está se mostrando; está ficando nu. A produção de crises e a busca incessante por inimigos é o que caracterizam a antipolítica do Mito. Ele atua rompendo pactos nacionais sobre o qual as relações sociais no Brasil se desenrolam.
Em discurso para membros do governo norteamericano ano passado, JB disse que estaria satisfeito se destruísse que o “socialismo” fez com o Brasil. Se ainda não se sabe muito bem para onde Bolsonaro que levar o País, é possível ver que estado de coisas ele quer mudar. O fenômeno do Bolsonarismo tem se explicitado na conduta pessoal do presidente, de seu staff, de suas referências pessoais e de sua rede de relações, de suas decisões e indecisões e, sobretudo, em seus discursos fica claro o que ele quer atacar. Ele pretende atacar tudo o que de alguma forma procurou se consolidar no Brasil – e como Brasil. Bolsonaro faz frente às bases simbólicas sobre as quais o País se construiu como nação, ao longo de uma centena de anos. Ao enfrentar estas bases, ele se consolida como um presidente anti-establishment. As bases são:

A singularidade do Brasil como modelo para o mundo

O Brasil sempre procurou projetar para o mundo uma imagem de si mesmo que mostrasse um sociedade ímpar. Com muito trabalho de suas elites, foi construída a ideia de que teríamos um conjunto de fatores que nos tornariam diferentes dos outros e, de tal forma positiva, que seríamos até mesmo um modelo a ser copiado por outras nações. Nesta projeção, despontaria um modelo de civilização moderna, ainda que subdesenvolvida, pois uma sociedade pacífica, que mantem a ordem interna sem provocar guerras com vizinhos, onde se cultiva a amizade com todos os povos. Na Bolsonarismo, o Brasil não teria mais o que ensinar para o mundo. Seria no máximo talvez mesmo uma cópia inacabada que deveria ser, ou seja, uma extensão da chamada “civilização judaico-cristã”, cultuando nações ícones deste modelo, como Israel e Estados Unidos da América. O Brasil, assim, perderia sua singularidade, que foi em grande parte assentada sobre a ideia que o país seria um lugar onde todas as raças e povos conviviam em harmonia entre si e com outros. Tal ruptura impacta sobre outro importante pacto do imaginário nacional.

O fim do mito das três raças

Grassa nas mais altas instâncias das instituições que se dedicaram a construir o Brasil o mito das três raças, ideia segundo a qual o Brasil fora construído com a participação de brancos europeus, nativos indígenas e negros africanos, cada um com sua contribuição, seja no âmbito da economia, da burocracia, da cultura, do comportamento etc. Mas, segundo a concepção de país da antipolítica bolsonarista, isto não tem mais importância. Dirá ela, o Brasil foi construído pelo homem Branco Europeu. Assim, a ideia de uma civilização multirracial, miscigenada e harmônica nos trópicos não tem mais espaço. Mesmo se a ideia fosse acolhida com seus problemas de subalternização e desigualdades, onde índios seriam os credores de traços comportamentais e subjetivos, os negros, os credores de alguma forma de arte, religiosidade e mesmo o trabalho nos tempos da  escravidão, e os brancos, os construtores da Economia, da Burocracia e das e do Estado – instituições com letras maiúsculas. A quebra deste pacto quebra resultará em outra esfera consolidada da vida nacional.

Fim do reconhecimento de indígenas e negros como sujeitos nacionais

O país sempre procurou reconhecer brancos, negros e índios como construtores da nação. Ainda que de forma precarizada, subalternizada, estavam incluídos no discurso de formação nacional. Seja nos livros didáticos de história, nas propagandas de arregimentação das Forças Armadas, seja nos manuais da diplomacia ou nas peças publicitárias de turismo. Na Nova Era, os índios são um problema para os latifundiários, e os negros devem se resignar com os problemas que têm – sendo ou não oriundos do racismo, da discriminação ou de outras injustiças. A figura do grande empresário, do capitalista, do hierárquico superior desponta como o construtor nacional, o provedor de trabalho, de emprego, da sobrevivência e da riqueza da nação. Esta característica desdobra em outro rompimento.

O fim do pacto capital-trabalho

O Brasil nunca foi uma nação socialista (parece óbvio, mas atualmente tem sido necessário negar isso), contudo nunca alijou totalmente do processo político e ideológico o papel dos trabalhadores e do trabalho como atores da construção nacional, chegando até mesmo a ter governos identificados com valores trabalhistas. O pacto capital-trabalho sempre foi renovado de alguma maneira, mais ou menos problemática a cada início de período democrático ou autoritário que o país experimentou. Todavia, no bolsonarismo o papel do trabalho é cada vez menor e mais desimportante, perdendo prestígio e poder político institucional e simbólico, seja dos trabalhadores como sujeitos nacionais, ou do trabalho como instituição nacional com valor simbólico positivo. Na sociedade de classes, isto tem o significado de oferecer reconhecimento a apenas alguns poucos grupos sociais, no caso, os grupos que detêm o poder econômico, latifundiários, industriais, agentes do mercado financeiro e correlatos. Assim, há um desdobramento em outro pacto social do Brasil.

Fim do Pacto constitucional de 1988

Um forte traço da Constituição Federal de 1988 (CF 1988) está nas inúmeras possibilidades de mediação entre os variados segmentos sociais e grupos de interesses que compõem a sociedade brasileira, que a Carta chama de igualitária, livre e justa, admitindo a livre organização política e a participação social, por exemplo, em sindicatos patronais ou de trabalhadores e a participação em conselhos de políticas públicas. Especialistas dizem que a CF 1988 garante o direito de lutar por mais direitos, base das sociedades democráticas. Contudo, a Nova Era vem contestar este fundamento constitucional. A organização política é aviltada seja nas figuras ONGs, dos Sindicatos etc., são chamados de criminosos, assim como a reclamação de direitos e reparação social é tratada com regular tom sarcástico e humorístico. Injustiças simbólicas e materiais não são mais problemas a serem sanados. Os indivíduos que se envolvem com qualquer ativismo sofrem ataques, sobretudo o ativismo em direitos humanos; organizações de vários matizes, até mesmo os partidos políticos institucionalizados, que lutam por justiça social são estigmatizados. Do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto à ativista mais liberal elitizada, são todos “comunistas”. A atividade política é criminalizada de tal modo que até as ações inexoráveis à mais elementar atividade política democrática são malditas, como por exemplo, a negociação de projetos políticos entre Governo Federal e o Parlamento Brasileiros. As consequências disso deságuam em outro pacto nacional.

A Federação e a divisão de poderes

Está claro no momento em que escrevo que Bolsonaro não respeita governadores e prefeitos, da mesma maneira que não respeita deputados senadores, assim como não o faz com representantes dos poder judiciários. Sempre que é possível ele mantem a ordem dos conflitos atualizada com os poderes constituídos e com os mandatários dos executivos regionais. A ingerência de Jair com as instituições que lhe seriam apoiadoras custa uma falta de capacidade de se consolidar como representante das vontades gerais – se é que JJ Rosseau me permite. Assim, ele rompe com a memória dos acordos coletivos entre povo e poder e mesmo entre membros das elites políticas, tornando inviável o entendimento coletivo e a construção de sentido em qualquer nível da sociedade. Isso vai desaguar em outros dois grandes problemas nacionais.

A ressignificação dos traumas nacionais: ditadura e a escravidão

É notório que no Brasil os discursos consolidados sobre a nação repelem o seu passado escravocrata e os períodos em que vivenciou regimes autoritários considerados não democráticos. Liberdade e democracia são direitos universais na linguagem política do Brasil. Seja nos livros de didáticos, na opinião publicada ou nos documentos estatais, a democracia sempre figurou como momentos de mais alta dignidade da vida pública brasileira, contrapondo-se ao autoritarismo de certos períodos; o mesmo vale para o período em que vivenciou a escravidão, versus o período sucedâneo, de trabalho livre. Contudo, a política da produção do confronto borra os contornos e adjetivos traumáticos destes dois períodos, por meio da negação e da obliteração da existência da escravidão e pela interpretação do último período ditatorial (1964 a 1985) como um tempo bom. Isto é, a escravidão de negros não existiu como conta a História e a Ditadura Militar foi um momento glorioso. Concomitante a este processo revisionista, o último período democrático (1988 a 2016) surge como o novo trauma nacional, um tempo de desordem, violência, crimes, mentiras e segregação política, e sob os signos da luta contra o “comunismo” e a “corrupção”.

Autoproclamado patriota, Jair Bolsonaro propõe, em verdade, o fim do Brasil por meio da eclosão das bases sobre as quais o Brasil se construiu. É esta a razão pela em seu governo o conflito é constante, é a própria ordem. Trata-se na verdade de destruir o Brasil como comunidade imaginada e possível de ser concretizada. Há ainda um ano e tanto para saber quem vai sobreviver, o Brasil ou o Bolsonarismo.


Paulo C. Ramos é doutorando em sociologia na USP, coordenador do Projeto Reconexão Periferias da Fundação Perseu Abramo.


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