quarta-feira, 1 de julho de 2020

O fascismo e a politização paranoica das massas em proveito dos poderosos de sempre, por Wilton Cardoso




Os chamados despolitizados são os que aderem à política liberal e seu individualismo fragmentário sem maiores questionamentos.
Jornal GGN:

O fascismo e a politização paranoica das massas

Por Wilton Cardoso

O que o senso comum costuma entender por politização de um grupo social ou de uma nação é a capacidade dos indivíduos perceberem o seu destino como coletivo e, a partir daí, agir politicamente de forma associada, seja integrando ativamente algum tipo de associação formal ou informal, se manifestando em espaços públicos e participando ativamente dos pleitos eleitorais, não em interesse próprio ou de terceiros, mas no da coletividade.
Assim entendida, a politização costuma predominar nas esquerdas, sejam elas revolucionárias, reformistas ou anti-imperialistas (nacionalistas). Os indivíduos com tendências  liberais (incluindo aí os neoliberais) e conservadoras são despolitizados, ou melhor, se contentam com as regras do jogo da política nacional, seja ela uma democracia representativa ou um regime autoritário que mantenha a ordem da nação e que eles apoiam ou aceitam. No mais, tratam de cuidar de suas vidas individuais e familiares dentro das regras capitalistas e, no caso dos conservadores, seguindo ou aparentando seguir a moral e os bons costumes.
Além de perceber seu destino como coletivo, outro aspecto do indivíduo ou grupo social politizado é seu caráter utópico, seu desejo de modificar a sociedade de forma benéfica para todos ou, pelo menos, para grupos sociais específicos: nação, pobres, negros, mulheres etc.
Portanto, de acordo com a opinião corrente (doxa), a politização se sustenta em dois pilares: a importância dada à mobilização coletiva, que se sobrepõe ou se equilibra com o mérito pessoal; e a vontade utópica de promover a mudança social, que não raro se efetiva como prática.
O sujeito despolitizado, ao contrário, percebe o empenho e o mérito pessoal como mais importantes do que a mobilização social e aceita ou defende a ordem estabelecida do capitalismo liberal como justa e ideal para que os indivíduos se desenvolvam. Se fazem críticas de ordem política ou econômica, estas costumam ser pontuais e se referem menos à mudança sistêmica do que ao aperfeiçoamento da política. E quase sempre na direção de deixar os indivíduos e empresas agirem em busca de seu sucesso pessoal.
Os chamados despolitizados são os que aderem à política liberal e seu individualismo fragmentário sem maiores questionamentos. São, na verdade, politizados, mas no grau zero da política própria do capitalismo. Esse grau zero são as bases políticas dadas pelo liberalismo e supõe a prevalência do livre mercado, das liberdades individuais e, se possível, a democracia formal e o estado de direito.
O neoliberalismo, que se tornou o destino político e econômico do capitalismo ocidental, a partir da década de 1980, promoveu e disseminou globalmente esse grau zero da política, cujo indivíduo modelar é o homem de classe média, racional, trabalhador e competitivo, de mentalidade individualista e meritocrática – o despolitizado por excelência.
Este homem pós-moderno se vê como capital individual auto-empreendedor (mesmo se for funcionário) e todas as suas ações são no sentido de multiplicação do capital próprio: o crescimento pessoal se confunde com a acumulação particular de capital, na forma de posses, renda e/ou capital cultural, para usar o termo que Jessé Souza tomou da sociologia de Pierre Bourdieu.
Inclusive o indivíduo pobre das classes populares tende a se estruturar mentalmente como homem de classe média, desejando e lutando para atingir tal patamar social, o que é impossível na quadra atual do capitalismo, cuja tendência incontornável é o aumento da pobreza e a diminuição numérica das classes médias, como já tratei em outro artigo.
O desencanto inevitável com as promessas da política liberal
O liberalismo individualista é a política de base do capitalismo. Mesmo os progressistas e conservadores, que divergem dos liberais, o fazem sem contestar seus fundamentos políticos e econômicos, que são as bases éticas e funcionais do capitalismo: estado nacional, direito, lucro, propriedade privada, competição, racionalidade instrumental, trabalho remunerado etc.
Quero enfatizar dois aspectos problemáticos do liberalismo e sua política de grau zero, vista pelas esquerdas como despolitizadora dos indivíduos. O primeiro, já referido acima, é que ela tende a estruturar os indivíduos como capitais individuais auto-empreendedores com a promessa de que o empenho individual (nos estudos, no trabalho, na formação contínua) vão levar o indivíduo e sua família a uma vida confortável. E que isso pode acontecer de forma massiva, pois supõe que todos os que se dedicarem como indivíduos empreendedores, terão uma vida confortável.
A realidade, como se sabe, é bem outra e no capitalismo atual não há lugar para uma maioria numérica de classe média em países em desenvolvimento e mesmo nos ricos países centrais a pobreza relativa aumenta a olhos vistos, sem que nada se possa fazer a respeito.
Então, as pessoas começam a perceber, corretamente, que todo o aparato político de cunho liberal, como eleições, estado de direito, instituições como estado, partidos, três poderes, mídia etc, tudo isso não é feito para o bem estar das pessoas em geral, beneficiando apenas uma pequena elite: os 10% de classe média alta e os 1% ricos. (Na verdade o capitalismo não é dominado por essas elites, mas sua lógica concentradora leva irremediavelmente à concentração de renda, riqueza e poder não mãos de uns poucos: por isso, é mais correto falar em “elite privilegiada” do que “elite dominante”).
É aí que entra o segundo aspecto problemático do liberalismo: ele não oferece alternativas à sua política de grau zero, individualista e voltada para os interesses do capital. No máximo, as pessoas podem formar sindicatos e associações para vocalizar suas reivindicações ou para a ação coletiva. Mas nada disso promove, no capitalismo atual, melhorias de vida significativas em termos econômicos para as pessoas, conseguindo, quando muito, mitigar os problemas sociais decorrentes da desigualdade crescente.
Como afirmava Margaret Thatcher, “o que é a sociedade? Não existe essa coisa. O que existe são homens e mulheres, indivíduos, e famílias”. E, em relação a isso e aos demais princípios liberais que nos governa, ela arrematava que “There Is No Alternative” (em português, ‘Não há alternativa’). Podemos reprovar o cinismo e a desumanidade de Thatcher, mas ela está rigorosamente correta do ponto de vista da lógica liberal, que é também a capitalista e que, cedo ou tarde, acaba se impondo a tudo e a todos enquanto o sistema mercantil perdurar.
A socialização abstrata do capitalismo e a repolitização da sociedade
Mas o fato é que a condição humana é coletiva desde sempre e mesmo o capitalismo se organiza numa dimensão social (a sociedade que Thatcher rejeitava), na forma de mercado e capital. Só que essa ordem social é abstrata e alienada das vontades das pessoas, que se tornam coisas mercadológicas, ao negociarem seu trabalho ou seus bens no mercado.
A socialização capitalista existe num grau até maior que nas outras sociedades (a prova disso é que só sobrevivemos com os bens produzidos por terceiros), mas ela aparta os indivíduos concretos como produtores particulares e isolados na economia, e como sujeitos abstratos do direito na esfera política e civil. Concretamente, as pessoas encontram-se de fato isoladas umas das outras, com exceção do círculo íntimo de familiares e amigos.
Tal situação representa um perigo quando as pessoas caem na miséria e não encontram ninguém a quem recorrer, mas também representou avanços, como Marx demonstrou, ao libertar as massas da dominação direta que havia entre nobre e servo, senhor e escravo ou coronel e agregados.
Em todo caso,  as pessoas sentem um terrível mal estar no capitalismo por conta do bloqueio que este promove na socialização direta entre os indivíduos e na visão de um destino coletivo para o povo ou a comunidade. No grau zero da política liberal, é a própria noção de comunidade concreta que se esgarça, restando, como afirmava Thatcher, apenas os indivíduos e suas famílias.
Esse mal estar vem à tona em momentos de crise, quando as contradições do capitalismo se explicitam e o grau zero da política mostra que as instituições liberais servem antes para preservar o capital e seus privilegiados (elites) e não para amparar a vida das pessoas concretas.
É aí que as críticas difusas sobre as instituições liberais começam a emergir de forma irresistível e poderosa, como, por exemplo, a opinião geral sobre o Poder Legislativo ser, na verdade, um balcão de negócios escusos que se passa por representante do povo. Ou sobre o Judiciário ser uma casta de funcionários muito bem pagos que não estão ali para aplicar as leis e fazer justiça, mas para beneficiar poderosos desonestos com bons advogados.
Então, a legitimação do estado de direito e as instituições que o promovem, que sempre foi problemática entre o povo, começa a se desmoronar. No lugar desse vazio político do liberalismo, de seu individualismo e seu grau zero da política, começa a se gestar outra vez as tendências espontâneas da condição humana de ressocialização e estabelecimento de um destino coletivo (uma comunidade) que abarque os indivíduos.
Ocorre, então o fenômeno da repolitização dos grupos sociais e seus indivíduos, que pode tomar vários rumos e significados. O mais conhecido é a repolitização de feição progressista que, quando radicalizada, pode tomar rumos revolucionários. Ela levou à social-democracia do Pós-Guerra e aos socialismos realmente existentes do Leste Europeu, URSS, China e Cuba.
Mas há também a repolitização conservadora ou reacionária, como a do Irã, que resultou na teocracia dos Aiatolás. E o Golpe de 1964 no Brasil (e no resto da América Latina) não deixa de ser consequência de uma certa repolitização reacionária de parcela da sociedade, que vence, pela força, as tendências progressistas que apoiavam Jango.
Mas ambas as repolitizações (progressistas e reacionárias) costumam ser fenômenos passageiros e não causam abalos nos princípios liberais de base, exceto no caso das revoluções socialistas. Mesmo a ruptura iraniana com o imperialismo norte-americano preservou os mercados, tanto internamente quanto a inserção do Irã no capitalismo global.
E tão logo a repolitização provoca a mudança social desejada (que, como vimos não é estrutural em relação ao capital), ela restabelece novamente a despolitização dos grupos sociais, integrando-os na nova ordem social e restituindo, de acordo com o contexto, o grau zero da política que possibilita a reprodução do capital.
A repolitização fascista
Além das repolitizações de feição progressista e reacionária, há outra, muito mais perigosa, inclusive para o próprio capitalismo, a fascista. Ela se assenta em percepções críticas difusas e, em geral, corretas sobre o sistema democrático, os políticos e suas instituições, ao notar que a política em geral, seja ela de caráter liberal ou progressista, é intrinsecamente corrupta e feita para beneficiar os poderosos.
Há então, por parte dos fascistas, uma revolta generalizada contra a política. Por isso, eles são qualificados como “negadores da política”, “analfabetos políticos” ou “pessoas despolitizadas”.
A verdade, porém, é que os fascistas são bastantes politizados, se entendermos este termos de acordo com a opinião corrente (doxa), pois dão importância à mobilização coletiva, que se sobrepõe ou se equilibra com o mérito pessoal, e possuem uma vontade utópica de promover a mudança social.
Destino coletivo e mudança social voltam à ordem do dia com as massas fascistas, inclusive com o ativismo de um pequeno contingente dessas massas, extremamente engajado, barulhento e muitas vezes violento. A despolitização neoliberal é confrontada, agora, com uma nova politização das massas, não mais progressista e nem mesmo reacionária, mas paranoica.
Politização paranoica porque a utopia fascista é, de todas, a mais inatingível e delirante de todas: manter o sociedade capitalista e extirpar a corrupção no plano econômico, político e principalmente moral, pois, no fim das contas, a causa da corrupção é moral, uma questão de pureza que, não raro, se reveste de purificação racial ou religiosa.
Paranoica também porque a purgação da corrupção para o fascista só pode se dar pela punição e destruição e nunca encontra um fim, nunca é suficiente e sempre deve continuar, cada vez mais radical e violenta, até que renasça um homem e uma maioria adâmica, harmoniosa e livre das impurezas do homem liberal ou progressista/comunista.
Paranoica, ainda, porque ao eleger determinadas práticas e grupos sociais como corruptos, a massa fascista fecha os olhos para as piores barbaridades e atos claramente corruptos de seus próprios líderes e membros mais ativos: torturas, assassinatos, injustiças, roubos, mentiras etc. Exemplo claro disso é a cegueira dos bolsonaristas (hoje, um terço da população) em relação ao claro envolvimento de Bolsonaro com as milícias cariocas.
A luta contra a corrupção é apenas um engodo que os fascistas utilizam para encobrir, principalmente para si mesmos, sua real “utopia”, que é a destruição pela destruição. É por isso que a corrupção e sua purgação nunca terminam, pois a destruição não pode parar até que tudo seja ruína. E é por isso que fecham os olhos para sua própria corrupção: não é apenas por hipocrisia, mas porque o seu real objetivo, que eles mesmo não têm consciência, nunca foi acabar com a corrupção, mas com o mundo a sua volta. A Lava Jato é o exemplo mais claro desse desejo de destruição, neste caso do país e suas empresas mais modernas, sob o disfarce (na verdade o autoengano) de combate à corrupção.
A politização fascista, portanto, resgata para as massas o sentimento do destino coletivo do povo e a vontade de mudança. O problema é de conteúdo desse destino, que não se assenta em nenhuma espécie de racionalidade, nem mesmo regressiva. Não se trata de fundar uma nova coletividade baseada em valores arcaicos ou modernos, na fé, na arte ou na ciência, nem de propor uma nova forma de exercício de poder (nova política) para as próximas gerações. O destino do povo é resgatado como purgação coletiva cujo objetivo final é a destruição do inimigo e, por fim, a autodestruição coletiva.
O fascismo surge em sociedades fracassadas, cujos problemas provocados pelo desenvolvimento do capitalismo são projetados num outro, o inimigo que seria responsável pelo fracasso social (judeus, negros, ativistas, progressistas/comunistas, nordestinos, políticos etc). No fim das contas, o ódio do fascista é contra si mesmo, contra sua derrota na sociedade ultra-competitiva do capitalismo global.
O fascista sente uma enorme vergonha e raiva de si (o famoso espírito vira-latas) e no final do processo de purgação moral, quando os inimigos mais imediatos são derrotados, seu ódio acaba por se voltar inconscientemente contra si mesmo, na forma de auto-sabotagem. É quando a Alemanha abre duas frentes de guerra contra potências muito maiores que ela (URSS e EUA).
É quando, na atual conjuntura brasileira, os lavajateiros destroem a engenharia, petroquímica e a indústria naval nacional em parceria com o Departamento de Justiça dos EUA e o Governo Bolsonaro lambe as botas norte-americanas sem pedir nada em troca e não faz absolutamente nada para combater a pandemia do coronavírus, na frente sanitária ou econômica. O fascismo brasileiro é um duplo combate ao progressismo moderado do PT, taxado de comunista, e ao próprio país enquanto comunidade nacional, provocando a autodestruição de sua economia e de seu povo.
Os fascistas não são despolitizados, Ao contrário, a (re)politização fascista é efetiva e avassaladora. Ela entorpece e excita as massas que se veem como coletividade atuante e anseiam raivosamente a mudança. Seu delírio, no entanto, às guia para a destruição do outro e de si mesmo. Sua politização se manifesta pelo ódio e pela irracionalidade absoluta que solapa, inclusive, a racionalidade instrumental do capitalismo.
E quando o fascismo avança ele se torna um poder político revolucionário capaz de submeter inclusive o todo poderoso capital, que deixa de funcionar para o lucro e passa a servir ao desejo irracional de destruição pela destruição. É quando os liberais e conservadores aceitam, como diria Churchill, fazer alianças até com o diabo (progressistas e comunistas) para combater o fascismo. Parece que ainda não chegamos a este ponto no país.

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