É possível que se inicie o ciclo que faltava para consolidar a defesa dos direitos humanos: a aplicação da justiça de transição após a Ditadura Militar, deixando o alerta, para os torturadores de hoje, que um dia chega a punição.
A Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) acaba de proferir sentença histórica. Determinou que o Tribunal Regional Federal da 3a Região (TRF3) analise novamente ação civil pública contra três delegados da Polícia Civil de São Paulo pela tortura praticada nos tempos que serviam ao Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operação de Defesa Interna (DOI-Codi).
São eles Aparecido Laerte Calandra, David dos Santos Araujo e Dirceu Gravina.
Foi a primeira ação do Ministério Público Federal, em 2008, visando contornar a interpretação dada pelo Supremo Tribunal federal (STF) à Lei da Anistia, que englobou até crimes cometidos após sua promulgação.
Na época, os procuradores Marlon Weichert e Eugenia Gonzaga enveredaram por outro caminho. Se o STF não reconhecia sequer crimes contra a humanidade, que se processasse os torturadores na área civil, condenando-os a indenizar parentes de suas vítimas. Além de ambos, a ação teve a participação dos procuradores Jefferson Aparecido Dias, Luiz Fernando Costa, Adriana da Silva Fernandes e Sergio Suiama.
Além da indenização, propunha responsabilização pessoal, afastamento imediato das funções, perda dos cargos e aposentadoria.
A ação esbarrou nas sentenças de 1a e 2a instância, baseadas nas interpretações da Lei da Anistia sancionadas por ex-Ministros do STF, como Sepúlveda Pertence e Nelson Jobim.
Relator do recurso, o Ministro Og Fernandes mostrou precedentes do STJ, nos quais a Lei de anistia não se aplicava a ações cíveis. Além disso, disse ele, nada impede que, além da reparação econômica geral, prevista na Sumula 24, possa haver a busca de reparação dos danos morais individuais.
Não apenas a reparação financeira, mas a reparação moral – a obrigação do pedido de desculpas – também encontra amparo na legislação.
Segundo o relator, ao contrário do entendimento do TRF3, a jurisprudência do STJ é de que as ações cíveis fundamentadas em atos de perseguição política, tortura, homicídio e outras violações de direitos fundamentais.
É possível que se inicie o ciclo que faltava para consolidar a defesa dos direitos humanos: a aplicação da justiça de transição, deixando o alerta, para os torturadores de hoje, eu um dia chega a punição.
O torturador Gravina
Gravina usava cabelo comprido e barbas e seu nome de guerra era Jesus Cristo. Em uma das sessões de tortura, uma mulher estava no pau-de-arar levando choque e banhos de água fria. Em determinado momento, a vítima conseguiu se desvencilhar e agarrou Gravina, transmitindo o choque para ele. Imediatamente ele mandou soltar o pau de arara, para que ela caísse no chão. A moça precisou ser hospitalizada.
Era visto pelos presos como um autêntico desequilibrado. Ajudante de fotógrafo no DOPS, pedia para participar da caça aos inimigos. Permitiram que se tornasse investigador. Foi afastado quando, em uma das operações, metralhou uma pessoa, que era para ser capturada viva, e ainda acertou um transeunte.
David dos Santos Araújo, o Capitão Lisboa, deu a paulada final que matou Joaquim Seixas, pai do ex-preso político Ivan Seixas. Não apenas isso. Também abusou das filhas de Joaquim, que sequer eram militantes. Todos os filhos de Joaquim foram colocados em um carro da Folha de S. Paulo para ver as notícias da morte do pai, publicadas nos jornais daquela manhã.
Já Calandra, ou Capitão Ubirajara, tornou-se o braço direito de Romeu Tuma, quando ele se tornou delegado geral da Policia Federal. Participou da morte de Vladimir Herzog e de Manoel Fiel Filho. Torturou pessoalmente Paulo Vanucchi, Nilmário Miranda e Amelinha Telles.
Relatos que constam da inicial
APARECIDO LAERTES CALANDRA
É delegado aposentado da Polícia Civil. Requisitado para trabalhar no DOI/CODI traz alguns documentos firmados pelo réu nesse destacamento), utilizava a alcunha de CAPITÃO UBIRAJARA.
Foi reconhecido por diversas vítimas como autor de torturas. Em função do seu envolvimento com a repressão militar recebeu a condecoração do Exército “Medalha do Pacificador”, em 1974. CALANDRA trabalhou na Polícia Federal a partir de 1983, quando o também Delegado de Polícia Civil ROMEU TUMA assumiu a função de Superintendente dessa força federal em São Paulo. O réu foi encarregado nessa época de zelar pelos arquivos do DOPS, que haviam sido transferidos para o governo federal. Consta, inclusive, que, sob a guarda de CALANDRA, parte substancial do arquivo foi eliminada.
No relatório Dossiê Ditadura: Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil (1964-1985), publicado pela Instituto de Estudos sobre a Violência do Estado e a Imprensa Oficial de São Paulo, encontram-se registros das condutas do réu CALANDRA.
i) Tortura e desaparecimento de HIROAKI TORIGOE :
Sua prisão deu-se na rua Albuquerque Lins, bairro de Santa Cecília, em São Paulo, por uma equipe chefiada pelo delegado Otávio Gonçalves Moreira Jr., vulgo Otavinho, em 5 de janeiro de 1972,sendo levado para o DOI-CODI, órgão chefiado pelo então major Carlos Alberto Brilhante Ustra e pelo, à época, capitão Dalmo Lúcio Muniz Cirillo. Segundo o documento elaborado pelo Comitê de Solidariedade aos Presos Políticos do Brasil intitulado “Aos Bispos do Brasil”, de fevereiro de 1973, encontrado nos arquivos do DOPS/SP: “Ferido, foi levado para o DOI/SP onde foi intensamente torturadopela chamada equipe B, chefiada pelo capitão Ronaldo, tenente PedroRamiro, capitão Castilho, capitão Ubirajara e o carcereiro Maurício, vulgo Lungaretti do DPF.”
ii) Tortura e morte de CARLOS NICOLAU DANIELLI:
Maria Amélia, César e Danielli foram presos em São Paulo, em 28 de dezembro de 1972, e submetidos a sessões de torturas.
Durante três dias, Danielli foi intensa e continuadamente torturado sob o comando do então major do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra, do capitão Dalmo Lúcio Muniz Cirillo e do Capitão Ubirajara, codinome do delegado de polícia Aparecido Laerte Calandra. MARIA AMÉLIA DE ALMEIDA TELES e seu marido CESAR AUGUSTO TELES relataram à Auditoria Militar, já em 1979, detalhes das violências que sofreram. Sequestrados no dia 28 de dezembro de 1972, foram levados para a sede do destacamento militar na Rua Tutóia. Arrastaram-nos para três salinhas separadas, duas no andar de cima e uma na parte térrea. Nessas salas, havia o equipamento de torturas: cadeiras-do-dragão, onde éramos amarrados e levávamos choques elétricos por todo o corpo nu, “paus-de-arara”, palmatórias e toda uma aparelhagem de violentação do ser humano (…) Durante todo o tempo, ouvimos seus gritos [de CARLOS NICOLAU DANIELLI]de dor que foram se tornando cada vez mais fracos e roucos. (…) No fim do segundo dia de prisão, pudemos ver Danielli, já quase morto, nu, meio sentado no chão e encostado à parede, com a cabeça tombada, os olhos semi-abertos e a barriga enorme, muito inchada, seu corpo cheio de manchas roxas e feridas. (…) No dia 30, o corpo foi retirado da OBAN numa maca. Estava todo sujo de sangue: nos ouvidos, boca, nariz. Danielli estava morto. A participação do réu CALANDRA nessa sequência de fatos é explicitada na descrição do processo de montagem da farsa sobre o homicídio: Depois, no dia 5 de janeiro de 1973, o “Capitão Ubirajara”, um dos torturadores, chefe de uma das três equipes de nossos algozes, nos mandou buscar e mostrou-nos um jornal onde estava estampada a manchete em letras garrafais: “Terrorista morto em tiroteio”. Não pudemos nos conter diante de tamanho absurdo. “É mentira”,retrucamos com veemência. “Quem o matou foram vocês, que não deixaram de torturá-lo, um só instante. Ele morreu sob as torturas e não em tiroteio.” O “Capitão Ubirajara” ainda tentou nos convencer de que realmente Danielli tinha se recuperado das torturas e saí do para um encontro com um companheiro, sendo morto num tiroteio travado entre este e os policiais. Retrucamos novamente: “Ele estava morto naquela maca. Ele saiu morto daqui. O “Capitão Ubirajara” simplesmente deu de ombros e nos falou: “Essa é a versão que daremos para a sua morte. E fiquem vocês sabendo que poderão ter também uma manchete igual a essa”.
CÉSAR e MARIA AMÉLIA TELES também foram barbaramente violados pela equipe do DOI-CODI, inclusive o réu CALANDRA. Não bastassem as sevícias corporais, ainda havia a pressão psicológica, mediante o uso de seus filhos.
Distribuíram choques nos ouvidos, na boca, nos tornozelos, nos seios, no ânus, na vagina. Numa ocasião caí numa cama de campanha, semi-acordada. Um dos torturadores aproveitou-se para esfregar-se em mim, masturbando-se, jogando esperma. Poderia haver algo pior? Sim. Poderia. Um dia eles foram buscar meus filhos Janaína, de cinco anos, e Edson Luís, de quatro. Colocaram-me na cadeira do dragão, toda urinada e suja de vômito e me exibiram as crianças. Jamais esquecerei que Janaína perguntou: mãe por que você está roxa e o pai, verde? (relato de MARIA AMÉLIA TELES, em entrevista à RevistaAtenção, transcrita no requerimento de indenização formulado combase na Lei do Estado de São Paulo nº 10.726/01).
Outro documento que revela a participação do réu CALANDRA na perpetração de graves violações aos direitos humanos consiste em correspondência localizada no arquivo da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, enviada pelo preso político MANOEL HENRIQUE FERREIRA a DOM PAULO EVARISTO ARNS, então Cardeal Arcebispo de São Paulo, em 1976. FERREIRA relata que, após preso (maio de1971), foi torturado no DOI/CODI do Rio de Janeiro, no Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica (CISA) também no Rio de Janeiro, assim como no DOI/CODI de São Paulo e no DOPS desta cidade. Ele relaciona 26 agentes pelos quais foi seviciado, dentre os quais: CAPITÃO UBIRAJARA e DIRCEU (J.C.), além de CARLOS ALBERTO BRILHANTE USTRA, DALMO LUIZ CIRILLO, PAULO BORDINI, JOÃO LUIZ, PEDRO RAMIRO, EDSEL MAGNOTTI, JOSÉ CARLOS TRALLI e MAURÍCIO JOSÉ DE FREITAS, todos lotados em São Paulo (DOI/CODI e DOPS). É fato que CALANDRA recusa ser CAPITÃO UBIRAJARA. Todavia, ele foi reconhecido pelas vítimas, tanto no período em que trabalhou na Polícia Federal (ver matéria do JORNAL DO BRASIL, de 1º de abril de1992, como por ocasião de sua nomeação para a chefia do Departamento de Inteligência da Polícia Civil de São Paulo, em 2003, o que gerou forte repercussão na opinião pública.
No periódico FOLHA DE SÃO PAULO, de 17 de abril de 2003, relata-se:
Uma foto de Calandra (…) datada de 2001 e exibida pela TV Globo depois que a Folha noticiou o caso, na última segunda-feira, foi reconhecida por alguns ex-presos políticos, entre os quais Maria Amélia de Almeida Teles (…).“Ele [Calandra] comandava as sessões de tortura, comandava os interrogatórios”, afirmou Teles. Ao ser questionado sobre o testemunho da ex-presa política, Calandra elevou o tom de voz: “Essa mulher é terrorista. Eu investiguei essa mulher, e ela é terrorista. Você sabia que ela foi processada por terrorismo? Sei que foi.” Flagrado pela reportagem nesse ato falho (reconhecimento da própria vítima), tentou retificar: “Antes eu não conhecia [Maria Amélia]. Fui investigar depois.”ARTUR MACHADO SCAVONE, que também foi preso e torturado no DOI/CODI, afirmou peremptoriamente – em depoimento ao Ministério Público Federal – que CAPITÃO UBIRAJARA é o réu APARECIDO LAERTES CALANDRA: Nos três primeiros dias sofreu torturas, sempre na cadeira do dragão. A cada dia era uma equipe de interrogatório diferente. Além da equipe do MANGABEIRA foi torturado pela equipe liderada pelo CAPITÃO UBIRAJARA, codinome do delegado CALANDRA. Soube o nome do CALANDRA quando viu reportagens com sua foto. Pode afirmar com absoluta certeza que CAPITÃO UBIRAJARA é o delegado CALANDRA (nesse momento foram exibidas duas fotos de APARECIDO LAERTES CALANDRA, publicadas na Revista Veja de8/4/92 e na Revista Já do Diário Popular de 30/07/2000 e o depoente confirmou se tratar do CAPITÃO UBIRAJARA).
A imprensa divulgou, ainda, notícias de CALANDRA ter participado da tortura de: a) PAULO VANNUCHI (Revista Veja, 8 de abril de 1992); b) NÁDIA LÚCIA NASCIMENTO (idem); e c) NILMÁRIO MIRANDA (Revista Época, 17 de abril de 2003)
CALANDRA está envolvido também com o assassinato do jornalista VLADIMIR HERZOG, tanto que foi o responsável em nome do DOI/CODI pela requisição à Divisão de Criminalística da Secretaria de Segurança Pública do laudo de encontro de cadáver, datado de 25 de outubro de 1975, que serviu à fraudulenta versão de suicídio. Note-se que a requisição foi firmada por“ Capitão Ubirajara”, tendo, porém, o Comandante do II Exército afirmado à Justiça Federal que não havia nenhum Capitão Ubirajara naquele destacamento. Em outras palavras, CALANDRA teria utilizado seu codinome até mesmo em documentos militares oficiais. De modo semelhante, o réu participou da investigação sobre o Partido Comunista Brasileiro da qual resultou o homicídio de MANOEL FIEL FILHO no DOI/CODI .Identificou-se, ainda, denúncias de participação de um “investigador UBIRAJARA” em graves atos de violência no DEIC(Departamento de Investigações Criminais, ano de 1968), no qual era lotada a equipe de SERGIO FLEURY, já então participante da perseguição a opositores políticos. Disse EDSON VIEIRA (depoimento prestado no processo nº 57/68na Justiça Militar, segundo acervo do projeto BNM21,“que a mulher[de Pierino Gargano] tinha sido vítima de estupro, por parte do investigador Ubirajara, mandado pelo Delegado Ernesto Milton Dias e Delegado Fleury”,sendo que a vítima “estava grávida de quatro meses”. O próprio PIERINO GARGANO confirmou que sua noiva “tinha sido vitima de estupro, por parte dos investigadores Ubirajara e Gaúcho”. A instrução do feito e a obtenção da ficha funcional do réu confirmarão se CALANDRA integrou esse Departamento.
David dos Santos Araujo
É delegado de Polícia Civil aposentado. No DOI/CODI utilizava o nome falso de CAPITÃO LISBOA. No próprio acervo remanescente do arquivo do DOPS – atualmente custodiado no Arquivo do Estado de São Paulo– consta ficha sobre sua pessoa, nos seguintes termos:
ARAUJO – Davi dos Santos vulgo CAPITÃO LISBOA, Del. Pol., equipe B de interrog. Do CODI/DOI (OBAN no período de1970/71, em meados de 1971 passou à equipe de busca. Atual/e e lotado numa Delpol. Da Zona Sul da Cidade de S.P. 50-Z-130-1045.23DAVID DOS SANTOS ARAUJO recebeu a Medalha do Pacificador, em 1981, outorgada pelo Exército brasileiro.
No relatório da Presidência da República, é citado no caso relativo à prisão e morte de JOAQUIM ALENCAR DE SEIXAS: No processo formado contra o MRT na Justiça Militar, consta uma fotografia do cadáver de Joaquim Seixas com inequívocos sinais de espancamento e um tiro na altura do coração. Apesar disso, a necropsia, assinada pelos legistas Pérsio José B. Carneiro e Paulo Augusto de Queiroz da Rocha, confirmou a versão oficial, sem identificar o que poderia ter provocado as lesões corporais. Suaesposa e filhos, além de outros presos políticos, denunciaram mais tarde os responsáveis pelas torturas e execução de Joaquim Alencar de Seixas: o então major Carlos Alberto Brilhante Ustra, comandante da unidade, o capitão Dalmo Lúcio Muniz Cirillo, subcomandante, o delegado Davi Araújo dos Santos o investigador de polícia Pedro Mira Granzieri e outros identificados apenas por apelidos.
O envolvimento de DAVID DOS SANTOS ARAUJO na tortura e morte de JOAQUIM ALENCAR DE SEIXAS é também destacado no Dossiê Ditadura:
– Seixas foi preso em São Paulo (SP) junto com seu filho Ivan na rua Vergueiro, altura do nº 9.000, em 16 de abril de 1971. Do local da prisão, ambos foram levados para a 37ª DP, na mesma rua Vergueiro, na altura do nº 6.000, onde foram espancados no pátio do estacionamento enquanto os policiais trocavam os carros usados naquela operação. Em seguida, foram levados para o DOI-CODI/SP, onde no pátio de manobras, pai e filho foram novamente espancados. A violência dos espancamentos levou ao rompimento das algemas que os ligavam. Na sala de interrogatório, foram torturados um na frente do outro. Nesse mesmo dia, sua casa foi saqueada e toda sua família presa.
No dia seguinte, 17 de abril, os jornais paulistas publicaram uma notaoficial dos órgãos de segurança estampando a notícia da morte em tiroteio de Joaquim Alencar de Seixas. Contudo, ele não estava morto, pois ainda sofria as torturas, o que foi testemunhado por seu filho Ivan, sua esposa e suas duas filhas, Ieda e Iara. Por volta das 19 horas do dia 17, Seixas foi morto. Sua esposa Fanny viu os policiais estacionarem uma perua C-14 no pátio de manobras, forrarem seu porta-malas com jornais e colocarem o corpo que reconheceu ser o de seu marido. Nesse momento, ouviu um policial perguntar a outro: “De quem é este presunto?”. E como resposta a afirmação: “Este era o Roque”, codinome utilizado por Seixas. (…) Os assassinos de Joaquim Alencar de Seixas foram identificados por seus familiares e companheiros como o então major Carlos Alberto Brilhante Ustra, o capitão Dalmo Lúcio Muniz Cirillo, o delegado Davi Araújo dos Santos, o investigador de polícia Pedro Mira Granziere e vários outros, conhecidos apenas por apelidos. A trajetória de JOAQUIM ALENCAR DE SEIXAS e de seu filho IVAN AKSELRUD SEIXAS foi ainda objeto de indignação por parte dos presos políticos do Presídio da Justiça Militar Federal em São Paulo em carta enviada ao então Presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, Dr. CAIO MARIO DA SILVA PEREIRA, em 23 de outubro de1975. Constam ali a identificação de DAVID DOS SANTOS ARAUJO/CAPITÃO LISBOA e a denúncia das diversas formas de violência praticadas naquele lugar. A Procuradoria da República em São Paulo colheu o depoimento de IVAN SEIXAS. Assim descreveu o dia em que foi preso (16 de abril de 1971):Na sala de tortura o depoente foi pendurado no “pau de arara”. Em outra parte da sala, dividida apenas por um tapume, seu pai foi posto na “cadeira do dragão”. Foi torturado por uma equipe de umas cinco pessoas, dos quais conseguiu identificar os seguintes: CAPITÃOLISBOA, alcunha de DAVID DOS SANTOS ARAUJO, AMICI, alcunha de JOÃO JOSÉ VETORATTO, Dr. NEI, alcunha de ÊNIO PIMENTEL SILVEIRA. Esporadicamente participava o DALMO CIRILLO. Que consegue identificar essas pessoas em função da comunicação que eles mantinham entre si, a qual acabava traindo o codinome. Que DAVID DOS SANTOS ARAUJO foi o agente no qual o depoenteacertara o soco durante o espancamento no pátio, acima referido. DAVID DOS SANTOS ARAUJO foi o maior torturador do depoente, era “quem mais batia”. DAVID ARAUJO, numa das vezes em que o depoente estava pendurado no “pau de arara”, ficou de pé no peito do depoente. A tortura consistia em choques elétricos, espancamentos, e uma espécie de afogamento, feito com um pano molhado em água. Tudo isso era feito quando o depoente estava no “pau de arara”. Que ficava despido. Que era espancado com um pedaço de pau. Como sequela desse tipo de espancamento teve uma vértebra dorsal quebrada. DAVID DOS SANTOS ARAUJO era um dos agentes que, com certeza, o agrediu com o “pedaço de pau”. Que foi preso de manhã, cerca de 10 horas, e torturado o dia todo.
No dia seguinte o suplício continuou, tanto com a simulação de seu fuzilamento, como também com a notícia antecipada da morte de seu pai: No início da manhã a viatura levou o depoente ao Parque do Estado, para uma área deserta às margens da Estrada do Cursino. Lá foi simulado seu fuzilamento, mediante o disparo de tiros em torno de si. Isso foi repetido várias vezes. Depois foi recolocado na viatura, para retornar ao DOI/CODI. Os agentes pararam em uma padaria para tomar café da manhã. O depoente estava algemado no porta malas de um carro Veraneio (C-14), donde podia ver o exterior.
Conseguiu ler na banca de jornal a manchete da Folha da Tarde no sentido de que seu pai morrera. A manchete dizia que o assassino do industrial BOILENSEN fora morto pelo Exército, exibindo a foto de seu pai, da carteira de identidade. Todavia, quando chegou no DOI-CODI, seu pai ainda estava vivo. Na volta ao destacamento militar, novamente lhe aguardava o réu DAVID DOS SANTOS ARAUJO.
Aliás, foi nesse momento que IVAN SEIXAS descobriu o verdadeiro nome de seu torturador: Que ao retornar ao DOI-CODI foi levado por DAVID DOS SANTOS ARAUJO para a sala de tortura. Houve uma discussão entre DAVID eo torturador de seu pai naquele momento, que era o CAPITÃO ÊNIO, sobre quem seria torturado prioritariamente. Durante a discussão o CAPITÃO ÊNIO chama o até então CAPITÃO LISBOA, pelo seu nome real, DAVID. O comandante USTRA intervém nessa discussão e também chama o CAPITÃO LISBOA de DAVID. Pode constatar, nessa
discussão, que seu pai ainda estava vivo, pois ainda pretendiam interrogá-lo mais. Viu seu pai, preso na cadeira do dragão, com a cabeça caída e bastante machucado. O depoente era carregado, poisem função das violências que sofreu, não conseguia andar. De fato, a real identidade do CAPITÃO LISBOA não era propriamente um segredo, conforme relata SEIXAS:
Numa ocasião foi levado na viatura conduzida pelo CAPITÃO LISBOA e em determinado momento esse agente determinou ao motorista que parasse, pois queria conversar com um mecânico que viu na rua. Essa pessoa chegou à viatura e cumprimentou o CAPITÃO LISBOA como DAVID. Após esse cumprimento, o CAPITÃO LISBOA se virou para o depoente e disse que não tinha medo de se identificar. Ele disse “sou o delegado DAVID DOS SANTOS ARAUJO e não tenho medo de você”, exibindo sua carteira funcional.
Após a prisão de IVAN SEIXAS e seu pai JOAQUIM SEIXAS, os agentes do DOI/CODI foram à sua residência e sequestraram sua mãe, FANNY AKSELRUD DE SEIXAS, e suas irmãs IEDA e IARA SEIXAS.
IEDA relatou ao Ministério Público Federal: Foi então levada e trancada num banheiro no segundo andar, no qual havia também uma cama sem colchão. Pouco após ouviu uma ordem dizendo “tragam o IVAN” e em seguida uma rajada de metralhadora. Ouviu sua mãe gritando. Tratava-se de uma simulação do fuzilamento de seu irmão. Entraram uns cinco ou seis homens no banheiro, sendo que um era chamado de BUCÉFALO e outro CAPITÃO LISBOA. Foi agredida com tapas no rosto pelo BUCÉFALO, que estava sentado àsua frente. Enquanto isso, o CAPITÃO LISBOA e outro agente que não sabe o nome sentaram-se cada um de um lado da depoente e começaram a imprensá-la com forte conotação sexual. CAPITÃO LISBOA enfiou a mão dentro da roupa da depoente e começou aabusar sexualmente, falando obscenidades. A depoente entrou em pânico. Os agentes falavam que se ela não prestasse depoimento iria “ser currada”. A depoente disse que preferia “levar choques e porrada”. CAPITÃO LISBOA disse que iria fazê-la “gozar no pau dearara”. De madrugada foi posta numa viatura, C-14, na qual sentou aseu lado o CAPITÃO LISBOA e outro agente. O CAPITÃO LISBOA voltou a abusar sexualmente da depoente no carro, enfiando a mão sob a sua roupa.
No relatório e no acervo do projeto Brasil: Nunca Mais consta o depoimento que MILTON TAVARES CAMPOS prestou à auditoria militar, no qual relatou (depoimento prestado no processo nº 25/70): Que quer declarar fatos que consigo passaram após ter concedido suas declarações em São Paulo para o DOI do II Exército em São Paulo; Que foi torturado por elementos daquele Departamento durante dezesseis dias com choques elétricos, injeções de amoníaco pela boca e pelo nariz e espancamentos após colocado no “pau-de-arara” e na “cadeira de dragão” por elementos pertencentes às Forças Armadas, à Policia Civil e à Policia Militar que usam nomes falsos sendo que o chefe de todos é o major CARLOS ALBERTO BRILHANTE USTRA que entre eles usa o nome de “TIBIRIÇA CORRÊA”; Que um dos elementos que ali exerce suas atividades é oSr. VETORAZO, que utiliza o apelido de AMICHL ou Cap. JOÃO e outro o Delegado DAVID DE ARAUJO SANTOS que usa o nome de Cap.Lisboa, além do Ten. PAULO, que usa o nome de “AMERICANO” eoutro que agora não se recorda; Que viu, por estar na carceragem do Presídio da OBAN-SP, quando o preso JOAQUIM ALENCAR DE SEIXAS descia, depois de ter sido torturado na “cadeira do dragão”,juntamente com o filho (…).
DIRCEU GRAVINA
DIRCEU GRAVINA é delegado de Polícia Civil do Estado de São Paulo na ativa, lotado atualmente em Presidente Prudente. Era conhecido nos porões da tortura como JC, em alusão a Jesus Cristo, pois tinha cabelos compridos e lisos. Em depoimento prestado em 05 de agosto de 2008, na Procuradoria da República de São Paulo, LENIRA MACHADO relatou: Quando foi presa, passou dois dias no DOPS e, após, foi transferida para a rua Tutória (Doi/Codi). Não chegou a prestar depoimento nesses primeiros dias no DOPS. No Doi/Codi lhe foi dito para esquecer a Declaração Universal de Direitos Humanos. Não foi levada para as mesmas celas dos demais prisioneiros, ficou isolada em um quarto, em cima da garagem. De lá, saía 03 (três) vezes por dia para “apanhar”. Deste quarto podia ver as trocas de plantão e os presos que chegavam. Eram três equipes de interrogatório, além das equipes de busca. Havia uma disputa entre essas equipes para ver quem conseguia obter mais informações. Enquanto interrogavam os presos, colocavam música para disfarçar os gritos dos presos. Os vizinhos reclamavam do barulho desses gritos. Então passaram a utilizar a música. Quanto mais alto o volume da música, maior a intensidade das torturas. A atuação de DIRCEU GRAVINA na violação do seu corpo foi descrita ao Ministério Público Federal. LENIRA lembra-se com detalhes do ocorrido, pois GRAVINA se feriu durante a sevícia que lhe impingia:Na primeira vez em que foi interrogada, lhe pediram, logo no início,que tirasse a roupa. Ela negou e então Gravina e mais dois homens rasgaram toda a sua roupa, lhe restando apenas um casaco e um lenço de pescoço. Foi com essa vestimenta que ela permaneceu lá, pelos 45 (quarenta e cinco) dias de prisão no DOI/CODI. Após ter sido despida à força, lhe penduraram no pau de arara e começaram os choques elétricos. Gravina sentou-se em um dos cavaletes onde ela estava. Quando ela “berrava” ele lhe jogava salmoura na boca, ou água pelo nariz e sal na boca. Lenira conseguiu liberar uma de suas mãos e abraçou Gravina, logo após um dos choques que levou, fazendo com que ele também sentisse esse choque. Ele caiu por sobre a depoente, bateu a cabeça no outro cavalete, provocando um grande corte no rosto, na região do nariz. Tudo isso no primeiro dia. A tortura foi suspensa e ela foi colocada no chão, onde ficou por várias horas. Gravina se retirou e, depois, lhe contou que foi aoHospital Militar e que tinha levado pontos no nariz por causa dela. Ao retornar, GRAVINA foi ainda mais violento e cruel comLENIRA, provocando-lhe grave lesão na coluna:Quando Gravina retornou do hospital, amarraram-na novamente no“cano” e as sessões de tortura recomeçaram. Dessa vez havia um homem alto, mais alto que o Gravina. Os dois seguraram nas extremidades desse cano, levantaram-no e, quando Gravina contou até 03, eles a jogaram no chão. Nesse momento ela e eles perceberam que havia ocorrido uma lesão na coluna. Sua cabeça tombou para o lado direito, que ficou paralisado. Que as sessões de tortura continuaram mesmo após essa lesão.
Recebeu precária assistência médica mediante a atenção de um outro preso político, que, por coincidência, era um médico conhecido de LENIRA:Um dia, que não sabe precisar, após uma sessão de tortura, Ustra,que comandava o DOI/CODI, chamou então um médico, que também estava preso naquele período e cujo nome ela prefere não mencionar, que disse que eles haviam “aleijado” a Lenira, a quem já conhecia antes e sabia que ela não tinha, antes dessa data, nenhum problema de coluna. Foi recolhida, mas nos outros dias continuou a ser torturada. Ela era carregada para as sessões. Um dia, de madrugada, chegou a ser levada para o Hospital Militar. Deram-lhe uma injeção de morfina e a mandaram de volta para o Doi. LENIRA foi peremptória no seu depoimento: “Pode afirmar com plena certeza que Gravina foi um dos seus torturadores, usando o codinome de JC.”À reportagem da revista Carta Capital – que flagrou DIRCEU GRAVINA dando expediente na delegacia de Presidente Prudente – LENIRA relatou que o identificou a partir de uma reportagem sobre “um suposto vampiro que agia na cidade de Presidente Prudente e mordia o pescoço de adolescentes. O diligente delegado, que odeia ser fotografado e briga com repórteres por esse motivo, apareceu mais do que devia e, assim, ela o localizou.”
GRAVINA ainda possui participação no desaparecimento forçado de ALUÍZIO PALHANO PEDREIRA FERREIRA. Apesar da existência de indícios da morte de PALHANO, não houve até a presente data confirmação do óbito, seja mediante a localização de restos mortais, seja mediante a apresentação de documentos que comprovem e esclareçam as circunstâncias desse evento. Juridicamente, ele é um desaparecido forçado. O sequestro de ALUÍZIO PALHANO teve início no dia 9 de maio de 1971. Segundo aponta o relatório da Presidência da República,após ser detido e encarcerado, sofreu torturas nas dependências do DOI-CODI no Rio de Janeiro e em São Paulo26:Sua prisão e morte foram denunciadas pelo preso político Altino Rodrigues Dantas Jr., (…). A prisão de Palhano também foi testemunhada por outros presos políticos, entre eles o militante do MR-8 Nelson Rodrigues Filho, filho do conhecido dramaturgo brasileiro, que esteve com ele no DOI-CODI do Rio de Janeiro.A carta de Altino contém informações taxativas: “Na época comandava o DOI-CODI o Major Carlos Alberto Brilhante Ustra (que usava o codinome de Tibiriçá), sendo subcomandante o Major DalmoJosé Cyrillo (Major Hermenegildo ou Garcia). Por volta do dia 16 de maio, Aluízio Palhano chegou àquele organismo do II Exército,recambiado do Cenimar do Rio de Janeiro (…) Na noite do dia 20para 21 daquele mês de maio, por volta das 23 horas, ouvi quando o retiraram da cela contígua à minha e o conduziram para a sala de torturas, que era separada da cela forte, onde me encontrava, por um pequeno corredor. Podia, assim, ouvir os gritos do torturado. A sessão de tortura se prolongou até a alta madrugada do dia 21,provavelmente 2 ou 4 horas da manhã, momento em que se fez silêncio. Alguns minutos após, fui conduzido a essa mesma sala de torturas, que estava suja de sangue mais que de costume. Perante vários torturadores, particularmente excitados naquele dia, ouvi de um deles, conhecido pelo codinome de JC (cujo verdadeiro nome é Dirceu Gravina), a seguinte afirmação: Acabamos de matar o seu amigo, agora é a sua vez. (…) Entre outros, se encontravam presentes naquele momento os seguintes agentes: Dr. José (oficial do Exército, chefe da equipe); Jacó (integrante da equipe, cabo da Aeronáutica); Maurício José de Freitas (Lunga ou Lungaretti, integrante dos quadros da Polícia Federal), além do já citado Dirceu Gravina JC, e outros sobre os quais não tenho referências. Esses fatos foram denunciados já no ano de 1975, na carta enviada ao Presidente do Conselho Federal da OAB.
Aluísio Palhano: foi preso no dia 9/5/71 pelo II Exército –CODI/DOI (OBAN) e levado para a sede da OBAN, sendo ali barbaramente torturado. Posteriormente, levaram-no para a sede do CENIMAR no Rio de Janeiro, onde passou por processo semelhante. Em 15/5/71 voltou para São Paulo, onde chegou a conversar com outros presos políticos. Do dia 15 ao dia 20 foi torturado até altas horas da madrugada. Neste último dia, logo depois que pararam osgritos, o torturador Dirceu de Tal, “JV”, disse a um preso político que lá estava e acompanhava os fatos: “Acabamos de matar seu amigo; agora vai ser você!” Desde então, nunca mais se teve notícias de Aluísio. Foram feitas denúncias na 2ª Auditoria da 2ª CJM, mas o Juiz Auditor não permitiu que elas constassem dos autos do processo. Outro documento que revela a participação do réu GRAVINA na perpetração de graves violações aos direitos humanos consiste na correspondência mencionada no item 3.1 supra, enviada pelo preso político MANOEL HENRIQUE FERREIRA a DOM PAULO EVARISTO ARNS, relatando as violências que sofreu. ARTUR SCAVONE também apontou que JC foi um dos seus algozes, enquanto esteve preso no DOI/CODI de São Paulo (entre fevereiro e novembro de 1972):Tinha também o JC, “que era sádico demais, um rapaz novo que usava um crucifixo no peito e cabelos longos”. JC era um jovem, comidade aproximada à do depoente, ou seja, cerca de 21 anos. JC também torturou o depoente, mas não se recorda em qual equipe ele trabalhava.
IVAN SEIXAS também reconhece o réu DIRCEU GRAVINA como um dos torturadores do DOI/CODI:Indagado sobre quem seria JC, disse que se trata de DIRCEU GRAVINA. O apelido JC era referência a JESUS CRISTO, pois DIRCEU usava cavanhaque e cabelos compridos. Alguns agentes o chamavam de DIRCEU, e não de JC. O depoente o reconheceu quando viu amatéria divulgada na revista Carta Capital, em 2008. Esclarece queJC, apesar das ameaças, não o torturou fisicamente, mas ointerrogou em algumas oportunidades. Numa destas, em 1971,DIRCEU GRAVINA e OBERDAN narraram ao depoente queYOSHITANE FUJIMORE havia chegado ferido no DOI/CODI e lá teriasido morto: “nós o matamos aqui”.
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