sexta-feira, 16 de outubro de 2020

O Xadrez das chagas do sistema judicial com o caso André do Rap, por Luis Nassif

 Ao investir contra a decisão de Marco Aurélio, Fux pretendeu o controle total da pauta pela presidência. Que tenha tido o apoio de Barroso e Fachin mostra a deterioração do Supremo

Jornal GGN. - O caso de André do Rap, o traficante solto por uma liminar do Ministro Marco Aurélio de Mello, se tornou uma síntese clássica das disfuncionalidades do sistema Judicial e, especialmente, do Supremo Tribunal Federal.

Primeiro, uma ressalva: em décadas de atuação no STF, não há uma desconfiança sequer sobre a honestidade de Marco Aurélio de Mello. Por vezes, ele é extravagante, por vezes admiravelmente crítico das tentativas do Supremo de reescrever as leis e a Constituição,  mas não faz negócios. Principalmente, ele é um garantista, o juiz que tende a reconhecer direitos dos réus.

Acompanhe.

Peça 1 – o algoritmo do Supremo

O caso André do Rap revelou dois pontos suspeitos no STF.

O primeiro, amplamente apontado aqui no GGN na época do impeachment, a possível manipulação dos algoritmos, o sistema que supostamente faz distribuições dos processos pelos Ministros. A incrível lista de coincidências, com casos fundamentais sempre caindo para Ministros, dos quais se sabia de antemão a posição, reforçava a suspeita. Agora, há indícios de que advogados de grandes criminosos de alguma maneira conseguem influenciar ou prever o comportamento dos algoritmos.

O segundo ponto é a persistência de uma jogada que, em qualquer tribunal zeloso, teria sido identificada e proibida. O advogado entra com o pedido de liminar. Se cai com algum Ministro punitivista, desiste da cautelar e entra com outra, até cair com um garantista. Por sua posição doutrinária, os garantistas obviamente são os julgadores preferidos dos advogados de defesa e, por isso, mais vulneráveis às represálias de cortes majoritariamente conservadoras.

Essas duas distorções acabam tornando os garantistas alvos de suspeitas, a maior parte das quais injustificadas, com o objetivo de enfraquecer seu contraponto incômodo. De certo modo, é o que está acontecendo no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, com o desembargador Siro Darlan.

Peça 2 – o corporativismo de Fux e Barroso

Há tempos, o Ministro Luis Roberto Barroso atua como líder sindical do Poder Judiciário. Usou a alavanca do punitivismo, o estímulo da chamada voz das ruas, para se dar o direito de reescrever a Constituição sem Constituinte e colocar o Judiciário como um poder acima dos demais.

Desde os tempos do “mensalão”, Fux tenta avançar sobre as prerrogativas de outros poderes. Na ocasião, com o Congresso de joelhos, manteve a pauta de votações como refém afim de pressionar a casa a garantir os royalties para o Rio de Janeiro. Além de inúmeras decisões privilegiando interesses corporativos da classe.

Ambos são os dois principais líderes corporativistas atuando no Supremo, em geral contra o corporativismo de outras corporações. Ou seja, empunham a bandeira da modernidade para justificar o comportamento político mais anacrônico e típico de países institucionalmente subdesenvolvidos.

Por seu turno, desde o impeachment, Luiz Edson Fachin e Carmen Lúcia abriram mão da análise individual para o pensamento em grupo, mesmo que esse pensamento seja cinzelado por Luiz Fux. O país perdeu um grande jurista, Fachin, e Fux ganhou um seguidor.

O caso André do Rapp revelou a face mais extravagante do corporativismo de Barroso.

Tem-se um caso simples. A Câmara votou uma lei que obriga que prisões preventivas sejam revistas de 90 em 90 dias. A medida visa corrigir uma das maiores aberrações do sistema jurídico, das prisões preventivas eternas, penalizando especialmente os anônimos, o enorme contingente de pequenos transgressores, sem periculosidade, que são jogados nos presídios, por uma das políticas públicas mais cruéis e inócuas do país. Não manda soltar os reus: manda apenas rever as preventivas.

O que faz Barroso? Aproveita as trapalhadas de Mello para desqualificar a lei, invocando as  dificuldades da Justiça em cumprir o ela determina. O juiz já está assoberbado de trabalho. Além disso, se julga o caso e ele vai para segunda instância, como fazer? Endossa todas as reclamações das associações da categoria.

É inacreditável um Ministro do STF brandir esses argumentos. Se a lei determina uma medida, é responsabilidade do Judiciário – através do STF, do Superior Tribunal de Justiça, do Conselho Nacional de Justiça – preparar o poder para atender o que ela diz. Essa inversão é típica do funcionário público relapso: não cumpro determinada ordem porque vai mudar a minha rotina. Simples assim: um funcionário público que tem como função maior fazer respeitar as leis, colocar-se no papel de desacredita-las por darem muito trabalho.

Peça 3 – a ditadura no Supremo

A atitude de Fux, de revogar a liminar dada por um colega, atropela um dos princípios básicos do Supremo, a de ser uma corte entre iguais. Isto é, nenhum membro, ocupe o cargo que ocupar, pode desautorizar liminar concedida por um colega. No máximo, pode levar a decisão a uma das turmas, ou ao pleno, para reavaliação.

No Supremo há um embate entre grupos. De um lado, os punitivistas, grupos composto por Fux, Barroso, Carmen Lúcia e Luiz Edson Fachin. De outro, os garantistas, por Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli. Quando o tema é Lula, o lado punitivista é reforçado.

Ao investir contra a decisão de Marco Aurélio, Fux pretendeu abrir espaço para um controle total da pauta pela presidência. Que tente isso, não é surpresa: basta analisar seu histórico e seu sonho de ser carregado nos ombros pelo povo das praias cariocas. Que tenha tido o apoio de Barroso e Fachin é o ponto que mostra a deterioração do Supremo. O grupo não se limita a compartilhar interpretações sobre temas penais, mas a atuar como frente única, endossando qualquer arbitrariedade dos aliados. Desses que não abandonam um aliado no campo de batalhas. E reforçam o princípio – externado por Carmen Lúcia – de que os fins justificam os meios.

Tornaram-se corporativistas e militantes clássicos.

Peça 4 – os que saem e os que ficam

O mote principal para a desmoralização da lei foi dada pelo Ministro Marco Aurélio com a interpretação esdruxulamente literal de que, se não houver renovação do pedido, o réu estará automaticamente solto, independentemente dos crimes pelos quais é acusado.

No episódio em que o desembargador Favretto ordenou a libertação de Lula, todo o sistema judiciário se moveu. O delegado atrasou o cumprimento da ordem, enquanto consultava o juiz Sérgio Moro. Deu tempo para o presidente do Tribunal Regional Federal cassar indevidamente a decisão do seu colega desembargador, até chegar ao Ministro Luiz Fux. Atropelaram todos os procedimentos, mas mantiveram Lula preso.

Com André do Rap foi vapt-vupt. Dada a ordem de soltura, pelo Ministro Mello, imediatamente o réu foi libertado e escafedeu-se, mostrando uma falha coletiva do sistema de Justiça, e confirmando que a eficácia do Judiciário obedece apenas a propósitos políticos ou à punição dos anônimos.

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