quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Com a volta da extrema-direita e seu discurso de ódio, voltamos ao mundo perigoso e persecutório próprio do fascismo. Leia o artigo do ex procurador geral de São Paulo, Márcio Sotelo Felippe

 

"Um juiz poderia estabelecer uma gradação pelo resultado. De um lado, milhões conduzidos a campos de concentração pela máquina administrativa de Eichmann, de outro, uma criança judia e os judeus assassinados por diversão no campo nevado. Isso pode se aplicar à esfera jurídica, não à moral. Repugna qualquer forma de gradação moral entre uns e outros. Dizer qual o mais grave nesse plano de barbárie resvala temerariamente em alguma espécie de atenuação do que sequer se pode conceber."


Do site da Revista Cult:


O mundo em que vivemos perigosamente

O mundo em que vivemos perigosamente
Mulheres fazem saudação à bandeira nazista; Johanna Altvater era secretária do Partido Nazista (Foto: Gamma-Keystone)

 

Johanna Altvater nasceu em Minden, Vestfália, em 1920, filha de operários. Em 1935 fez um curso de secretária comercial. Foi descrita na juventude como uma “mistura de moleca e namoradeira engraçada”. Em seu primeiro trabalho registraram ser “pontual, trabalhadora, honesta e muito interessada no trabalho”. Casou-se em 1953, adotando o nome do marido, Zelle. Não teve filhos naturais, mas tomou a seus cuidados uma criança de seis anos. Pagou seus estudos e depois a adotou. Morreu em Detmund, em 2003, aos 84 anos de idade.

Johanna teria sido uma cidadã alemã conhecida apenas em seu círculo de parentesco e relações pessoais. A memória de sua existência desapareceria duas ou três gerações depois da sua morte, como a de qualquer pessoa comum. Isso se não tivesse havido fascismo na Alemanha.

Hitler ascendeu ao poder e a sapeca Altvater ingressou na Juventude Hitlerista. Em 1942 candidatou-se a uma vaga de secretária nos territórios ocupados pela Alemanha nazista no leste europeu. Foi enviada a Volodymyr-Volynskyi, na Ucrânia, aos serviços do comissário regional nazista Wilhelm Westerheide. Entre 1942 e 1943 os judeus da região foram quase dizimados. De vinte mil restaram cerca de quinhentos.

Em 16 de setembro de 1942, Altvater foi ao gueto judeu da cidade. Com gestos que prometiam guloseimas, atraiu uma criança pequena. Agarrou-a pelas pernas, de cabeça para baixo, esmigalhou sua cabeça contra um muro e a deixou morta aos pés do pai. Em outra ocasião entrou em uma enfermaria infantil e jogou várias crianças pela sacada do terceiro andar.

Em Lida, vilarejo lituano-polaco, judeus foram levados a uma floresta para espantar coelhos e fazer com que corressem na direção dos caçadores, nazistas em uma dia de folguedos. Em uma charrete de inverno, oficiais graduados e mulheres usando casacos de pele, bêbados, se abraçavam e gritavam. Um dos oficiais começou a atirar com o rifle de caça nos judeus, o que foi vivamente festejado pelos acompanhantes. O campo nevado ficou coalhado de poças de sangue.

Os relatos estão em As mulheres do nazismo (Rocco), da pesquisadora do Holocausto Wendy Lower. A bibliografia de crimes inomináveis perpetrados por nazistas é imensa e bem conhecida. Mas estes pertencem a uma categoria especial e expõem uma das tantas facetas do fascismo.

Johanna Altvater não era soldado, não era da SS, não trabalhava em campo de concentração. Era uma civil cumprindo a função burocrática de secretária. Sozinha, gratuitamente, foi ao gueto estraçalhar uma criança. Os oficiais bêbados da caça aos coelhos e suas acompanhantes de casacos de pele estavam usufruindo um dia de folga.

Não foram atos nem mais nem menos bárbaros do que a eficiente organização de Adolf Eichmann para o transporte de judeus para campos de concentração ou qualquer outro ato tenebroso praticado sob a rubrica de “dever”. Um juiz poderia estabelecer uma gradação pelo resultado. De um lado, milhões conduzidos a campos de concentração pela máquina administrativa de Eichmann, de outro, uma criança judia e os judeus assassinados por diversão no campo nevado. Isso pode se aplicar à esfera jurídica, não à moral. Repugna qualquer forma de gradação moral entre uns e outros. Dizer qual o mais grave nesse plano de barbárie resvala temerariamente em alguma espécie de atenuação do que sequer se pode conceber.

Por que Altvater e os caçadores de coelhos se sentiram autorizados a agir como agiram, à luz do dia, à vista de todos, sem qualquer pudor ou escrúpulo? Por que, para eles, matar seres humanos podia ser um ato do cotidiano, equivalente a ir ao cinema, relaxar no campo, andar pelas ruas da cidade, tomar um café com amigos, fazer compras?

Porque viviam sob o fascismo e estavam legitimados por ele. O fascismo traz  a a guerra para o interior da sociedade. Não uma guerra civil em que cada lado tem sua força e organização, mas a guerra contra o excluído, o frágil, o indefeso, o cidadão comum. O móvel da dominação passa a ser a destruição física, política e jurídica de uma parte da própria sociedade. O que quer que seja que se faça com ela fica socialmente legitimado. Sob o fascismo, o senso comum, as opiniões, crenças, a chamada convencionalidade social, o conjunto de práticas e juízos hegemônicos no seio da sociedade passa a um estado de anomia moral, liberam uma energia irracional, descontrolada, sem limites.

Algumas experiências de psicologia moral foram realizadas depois da guerra para avaliar a conduta diante de ordens imorais. Na experiência de Avraham Milgram, 65% das pessoas aplicaram choques elétricos de 450 volts, obedecendo ao comando de um suposto experimentador. Os choques não eram reais, mas o aplicador pensava que fossem e prosseguia mesmo diante dos gritos e súplicas de quem parecia recebê-los.

A experiência não cabe para casos como o de Johanna Altvater e dos caçadores de coelhos. Não havia comando, ordem, obediência diante da barbárie. Para eles, uma interessante explicação pode ser encontrada nas pesquisas do psicólogo norte-americano Lawrence Kohlberg, que identificou e classificou estágios de juízos morais. Um deles é o da convencionalidade, subdividido nos níveis 1) “good boy-good girl” e 2) lei e ordem. No primeiro, o certo e o errado se resolvem na adequação às opiniões ou crenças hegemônicas no meio social. A pessoa quer ser o “bom menino” ou a “boa menina” que faz o que os outros aprovam: “eu também mato judeus”. No segundo, o juízo moral não vai além da ordem estabelecida. É certo matar judeus ou comunistas se a lei diz que são inferiores e os desumanizam.

O assustador é que a simpática senhorinha passando com o neto na calçada ao nosso lado, o nosso colega de trabalho que sempre se mostrou uma pessoa razoável e um cidadão de bem, podem ser alguma espécie de Johanna Altvater. Quando o fascismo assoma, este passa a ser um mundo em que vivemos perigosamente. A exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação, disse, em vão, Adorno.

***

Johanna Altvater foi julgada duas vezes e em ambas absolvida. No segundo julgamento o promotor pediu absolvição por ausência de provas documentais, apesar das dezenas de testemunhas. Altvater não levou nenhum fotógrafo ao gueto e nenhum jornal da Ucrânia nazista publicou alguma matéria do tipo “secretária esmigalha cabeça de criança”. Morreu sem nunca mais se envolver em atos de violência, cuidando  de uma criança necessitada depois da guerra. Uma inofensiva senhorinha quites com a justiça. É mesmo um mundo em que vivemos perigosamente.

MARCIO SOTELO FELIPPE é advogado e foi procurador-geral do Estado de São Paulo. É mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP


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