quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

Do Justificando, artigo do criminalista Juarez Cirino dos Santos: O insustentável dever de comunicar operações suspeitas

 



Imagem: Gazeta do Povo

 

 

Por Juarez Cirino dos Santos

 

A tarefa da Comissão Especial da OAB

A Presidência da OAB Nacional, considerando (a) a existência do PL 442/2019 no Congresso Nacional, que prevê “a punição, por lavagem de dinheiro, de advogado que receber honorários de origem ilícita” e (b) a recomendação do COAF, através de ofício do Ministério da Justiça, estimulando a criação de regras próprias sobre a matéria, decidiu constituir Comissão Especial para analisar a reforma da Lei 9.613/98 e apresentar proposta para enfrentar a criminalização do exercício da advocacia e do legítimo recebimento de honorários por serviços profissionais, ameaçados por medidas de prevenção da lavagem de capitais.

 

A legislação criminalizadora

O relatório da Comissão Especial, assinado pelo Conselheiro Federal Juliano Breda, informa que o projeto legislativo pretende atribuir ao advogado um dever jurídico de comunicação de operações suspeitas diretamente ao COAF, em hipóteses de preparação ou execução das ações descritas no art. 9º, parágrafo único, inc. XIV, da Lei 9.613/98¹, identificadas pelo advogado no exercício da atividade profissional. É no contexto da percepção e eventual comunicação dessas ações pelo advogado no exercício da profissão que se situa o presente estudo.

 

A atribuição de dever jurídico ao advogado

  1. A Comissão Especial da OAB, apesar (a) de destacar o consenso internacional sobre os efeitos danosos da criminalização da omissão do dever jurídico de comunicação de operações suspeitas, (b) de concluir pela inexistência de tipicidade objetiva (lesão do bem jurídico), ou tipicidade subjetiva (dolo e intenções especiais) dos crimes imputáveis aos advogados, e (c) de admitir que recebimento de honorários pela atividade profissional regular seria conduta socialmente adequada, opta pela regulamentação de dever jurídico atribuível ao advogado.
  2. A Comissão Especial descreveu medidas de auto-regulamentação de órgãos de representação de advogados em vários países, por exemplo: a) os EUA admitem que honorários pela defesa do cidadão estão excluídos de criminalização; b) em Portugal, a OAB atribuiu aos advogados deveres de comunicação de operações suspeitas, com exclusão de hipóteses específicas; c) na Itália, a lei determinou obrigações semelhantes aos advogados, também excluindo hipóteses específicas; d) enfim, na Espanha, no Uruguai e no Peru, regras semelhantes atribuíram aos advogados iguais deveres de comunicação.
  3. Assim, a Comissão Especial propôs ao Conselho Federal da OAB a adesão ao sistema de prevenção da lavagem de dinheiro, mediante Provimento com 12 artigos disciplinando honorários advocatícios e deveres relacionados à comunicação de operações suspeitas, enfatizando a necessidade de proteção do exercício da advocacia e o direito do advogado aos honorários profissionais.
  4. O Provimento da Comissão Especial proíbe ao advogado concorrerincitar ou prestar qualquer auxílio em operações ou transações que saiba terem a finalidade de prática dos crimes do art. 1º da Lei 9.613/98 (art. 2º), exclui de concorrênciaauxílio ou participação as hipóteses (i) de prestação legítima de atividades privativas da advocacia e (ii) de recebimento dos honorários correspondentes (art. 2º, parágrafo único), mas atribui ao advogado deveres (i) de identificação do cadastro do cliente, (ii) de registro das operações, (iii) de guarda/conservação de registros e de documentos e (iv) de comunicação de atividades suspeitas ao COAF, relativas à preparação ou execução de operações do art. 9º, XIV, da Lei .613/98 (art. 10)². 

 

Os problemas do dever de comunicação de operações suspeitas

A atribuição de dever jurídico de comunicar operações suspeitas ao COAF é incompatível com os direitos, os deveres e as prerrogativas profissionais do advogado, como demonstram inúmeros argumentos.

 

Primeiro, esse dever jurídico transforma o advogado em agente fiscal do Estado, com a obrigação de examinar a regularidade de operações jurídicas específicas, próprias de funcionários públicos remunerados pelo Estado para ações de fiscalização do sistema econômico-financeiro.

 

Segundo, esse dever jurídico altera a natureza de elevada função pública do advogado (art. 2º, CED), que deixa de agir como elemento indispensável à administração da justiça (art. 133, CF e art. 2º, EAOAB), para cumprir o papel de simples órgão auxiliar da administração pública – em geral, apenas interessada na expropriação dos bens, direitos ou valores objeto das operações identificadas.

 

Terceiro, esse dever jurídico perverte o papel do advogado, que abdica da defesa de direitos e garantias fundamentais do cidadão (art. 2º, CED) para assumir o papel mesquinho de delator do cidadão, em inadmissível ação de espionagem profissional da regularidade de operações jurídicas alheias. 

 

Quarto, esse dever jurídico viola a relação de confiança recíproca entre o advogado e o cidadão (art. 10, CED), que procura o advogado para defesa, assessoria, consultoria, auditoria, aconselhamento ou assistência jurídica, mas é traído na confiança ao advogado, constrangido a subordinar o interesse do cidadão ao interesse do Estado expropriador.

 

Quinto, esse dever jurídico infringe a grandeza da defesa criminal, definida como direito dever do advogado, independente da opinião sobre a culpa do acusado (art. 23, CED), existente como fator de poder à disposição do cidadão necessitado de proteção contra o poder punitivo do Estado – que constitui dever da sociedade e do Estado, mas também um poder contra a sociedade e o Estado³, ameaçado pela delação imposta ao advogado pela sanha de locupletamento do Estado.

 

Sexto, esse dever jurídico de delação do cidadão, protegido pela relação de confiança inerente à advocacia, é incompatível com o dever de sigilo do advogado em relação a fatos conhecidos no exercício da atividade privativa da advocacia (art. 35, CED), maculando o serviço público e a função social do ministério privado do advogado (art. 2º, §1º, EAOAB).

 

Sétimo, esse dever jurídico de comunicação de operações suspeitas ao COAF é indeterminado no objeto e idiossincrático no juízo psíquico, porque não define o nível de suspeição necessário para comunicar a operação – ou seja, do ponto de vista do injusto, não se sabe (i) se é necessária a consumação do fato, (ii) se são suficientes atos executivos ou (iii) se bastam atos preparatórios das referidas operações suspeitas.

 

Oitavo, esse dever jurídico de comunicação de operações suspeitas ao COAF, ainda que eventualmente imposto por lei, seria excluído por situar-se nos limites do risco permitido ao exercício da profissão – aliás, como reconhece Rodrigo Sanches Rios, citado no relatório da Comissão Especial – e, assim, também constituiria ação socialmente adequada em sociedades capitalistas, em que é impossível distinguir entre capital legal e capital ilegal no sistema econômico-financeiro, segundo a pesquisa criminológica. 

 

Nono, esse dever jurídico imposto por lei teria problemas de configuração típica, porque a omissão do dever jurídico de comunicação de operações suspeitas ao COAF não tem o poder de criar o risco de lesão do bem jurídico (no caso, o discutível bem jurídico da administração da justiça), no âmbito da imputação do tipo objetivo, porque seria risco criado por ações anteriores de outros autores, configuradas em cenários representados pelo advogado na ação profissional – como também afirma o Procurador da República Rodrigo de Grandis, citado no relatório da Comissão Especial. 

 

Décimo, a atribuição desse dever jurídico não poderia jamais impedir o legítimo recebimento de honorários por serviços profissionais prestados nas hipóteses referidas, com emissão de Notas Fiscais ou recibos específicos, que não constituiriam conduta típica pela óbvia inexistência da intenção especial de encobrir a existência de bens, direitos ou valores, que não seriam objeto de ações de ocultação ou de dissimulação pelo advogado ou sociedade de advogados – conforme também refere Pierpaolo Bottini, citado no relatório da Comissão Especial.

 

Décimo-primeiro, esse dever jurídico de comunicação de operações suspeitas afeta os deveres de destemor, de independência e de dignidade da atuação do advogado (art. 2º, parágrafo único, CED), prejudicando também o exercício da ampla defesa em processo judicial ou administrativo, porque o incontrolável medo de punição criminal do advogado, determinado pelo conhecimento do injusto de fato no exercício da atividade profissional, pode reduzir a energia na investigação ou na defesa da causa, ou mesmo determinar o desinteresse na causa pelo defensor, em prejuízo do princípio constitucional definido no art. 5º, LV, da CF – segundo a tese de Isidoro Cordero, também citado no relatório da Comissão Especial.

 

Décimo-segundo, uma questão de ordem prática não desprezível: a natureza indeterminada e idiossincrática desse dever jurídico de comunicação de operações suspeitas pode sujeitar o advogado a ações criminais por denunciação caluniosa, ou ações civis de indenização por danos morais e materiais, nas hipóteses frequentes de precipitada, indevida ou equivocada execução desse insustentável dever jurídico contra o constituinte.

 

As alternativas possíveis para a OAB

Em resumo, estariam definidas duas atitudes possíveis para enfrentamento da questão pelo Conselho Federal da OAB.

 

  1. primeira atitude, segundo o Provimento proposto pela Comissão Especial da OAB, seria a regulamentação do dever jurídico de comunicação de operações suspeitas pelo advogado.
  2. segunda atitude assume que o dever jurídico de comunicação de operações suspeitas atribuído ao advogado no exercício das funções privativas da advocacia é inconstitucional – e a providência do Conselho Federal da OAB seria a ação direta de inconstitucionalidade, na forma do art. 102, I, a, da Constituição Federal, na hipótese de conversão em lei do PL 442/2019.

 

Conclusão

A conclusão, de grande significado pessoal e profissional para o advogado, se baseia nos argumentos apresentados.

 

  1. O advogado, no exercício de prerrogativas profissionais privativas da advocacia, não pode (i) aceitar a posição de agente fiscal do Estado, (ii) permutar a função de órgão indispensável à administração da justiça pelo papel de órgão auxiliar da administração pública, (iii) admitir o deplorável papel de delator do cidadão que procura orientação jurídica, (iv) violar o princípio da confiança na relação cliente/advogado, (v) abdicar da defesa penal como direito/dever à disposição do cidadão necessitado de proteção jurídica, (vi) sacrificar o dever de sigilo profissional ao indefinível dever jurídico de comunicação de operações suspeitas ao Estado, (vii) assumir um dever jurídico de comunicação de operações suspeitas indeterminável e idiossincrático, (viii) ser compelido a demonstrar ações nos limites do risco permitido ou socialmente adequadas para excluir imputações de práticas criminosas, (ix) depender da prova de ausência de risco de lesão do bem jurídico para excluir eventuais imputações típicas, (x) obrigar-se a comprovar a legitimidade dos honorários profissionais por ausência da intenção especial de encobrir a existência de bens, direitos e valores, (xi) tolerar danos às atitudes de destemor, de independência ou de dignidade do exercício profissional, ou fragilizar o princípio da ampla defesa sob influência do medo de incriminação pessoal e (xii) correr o risco de ações criminais ou civis de reparação de danos pelo antigo cliente, por precipitada, indevida ou equivocada comunicação de operações suspeitas ao COAF.
  2. A alternativa de Regulamentação do dever jurídico proposta pela Comissão Especial, apesar da coerência argumentativa e da estrutura lógica entre premissas e conclusões, apresenta os inconvenientes descritos nos doze argumentos referidos, mais o inconveniente grave de legitimar o dever jurídico de comunicação de operações suspeitas, com consequências desastrosas para a advocacia brasileira, além de não garantir os honorários por serviços profissionais, cuja legitimidade é ameaçada pela natureza suspeita das operações, comunicadas ou não pelo advogado ao COAF.
  3. Logo, se o PL 442/2019 for convertido em lei, a propositura de ação direta de inconstitucionalidade, na forma do art. 102, I, a, da CF, pelo Conselho Federal da OAB, parece ser a medida adequada.

 

 

Juarez Cirino dos Santos é professor de Direito Penal da UFPR, presidente do Instituto de Criminologia e Política Criminal – ICPC e advogado criminal


 

Notas:

[1] Lei 9.613/98, art. 9º, parágrafo único, inc. XIV: as pessoas físicas ou jurídicas que prestem, mesmo que eventualmente, serviços de assessoria, consultoria, contadoria, auditoria, aconselhamento ou assistência, de qualquer natureza, em operações (a) de compra e venda de imóveis, estabelecimentos comerciais ou industriais ou participações societárias de qualquer natureza, (b) de gestão de fundos, valores mobiliários ou outros ativos, (c) de abertura ou gestão de contas bancárias, de poupança, investimento ou de valore mobiliários, (d) de criação, exploração ou gestão de sociedades de qualquer natureza, fundações, fundos fiduciários ou estruturas análogas, (e) financeiras, societárias ou imobiliárias, e (f) alienação ou aquisição de direitos sobre contratos relacionados a atividades desportivas ou artísticas profissionais.

[2] O Provimento exclui do dever de comunicação as hipóteses (a) de mera consulta jurídica ou parecer de orientação ou determinação da posição do cliente, se não configurarem preparação ou execução das operações do artigo 10, (b) de representação em processos judiciais, administrativos, fiscais, arbitrais, de conciliação ou mediação, inclusive consultoria, aconselhamento ou assessoria para iniciar ou evitar litígio ou procedimento (art. 11) e, (c) enfim, protege pelo sigilo e pela inviolabilidade profissionais as informações, dados e documentos do cliente ou de terceiro, nas condições especificadas (art. 11, parágrafo único).

[3] ALBRECHT, Peter-Alexy. Criminologia: uma fundamentação para o Direito Penal. Tradução de Juarez Cirino dos Santos e Helena Schiessl Cardoso. Curitiba – Rio de Janeiro: ICPC/Lumen Juris, 2010, p. 349.

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