quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

O indivíduo – parte II – A doutrinação religiosa, por Marcio Valley (ou de como a religião formal institucionalizada mata a espiritualidade e a liberdade para adestrar pessoas à aderirem à vontade dos poderosos da Terra)

 

  Espinosa, dissecando o poder existente em seu tempo, o monárquico, compreendeu que o segredo do sucesso do poder consistia em enganar a população “dissimulando, sob o nome de religião, o temor ao qual se quer acorrentá-los; de forma que eles combatem por sua servidão como se fosse sua salvação”3. Dito de modo mais simples: o discurso fraudulento do poder, disseminado pela religião, conduz o povo, não somente a atirar no próprio pé, mas a desejar fazê-lo por supor ser em nome do bem e da salvação de si e dos amados


Do Jornal GGN:


O indivíduo – parte II – A doutrinação religiosa

por Marcio Valley

            No artigo anterior, O indivíduo – Egoísmo, altruísmo e dívida simbólica1, problematizamos o comportamento do principal elemento da sociedade, o indivíduo, a partir da influência sobre ele exercida pelos instintos do egoísmo e do altruísmo, além de argumentar sobre os antecedentes necessários à quitação de sua dívida simbólica com a sociedade. Neste, falaremos sobre o impacto da religião na vida individual.

            A missão, claro, é atravessada por conceitos e isso, por vezes, torna-se um óbice à compreensão, pois significados variam de indivíduo para indivíduo. Conceitos são conjuntos de palavras utilizados para definir a ontologia do objeto da fala; mais precisamente, os conceitos descrevem as características inerentes à coisa examinada. Na definição do historiador alemão Reinhart Koselleck (1923-2006), conceitos são as palavras envolvidas por todas as camadas de suas circunstâncias, ou seja, é o vocábulo enriquecido axiologicamente pelas conjunturas políticas, sociais e empíricas nas quais e para as quais elas são utilizadas2. Disso decorre que a evolução da história social é acompanhada de idêntica evolução na história dos conceitos, produzindo uma dinâmica conceitual que pode se tornar um empecilho a uma correta hermenêutica. Um indivíduo com 80 anos de idade, em geral, interpretará de modo diferente a palavra dita, em relação a um outro, com 15 anos. Essa dissonância semântica tende a se aprofundar com o passar do tempo, exigindo, por exemplo, que um leitor atual leia um livro de autor do século XVII com o cuidado de colocar a obra na devida perspectiva temporal.

            Não bastasse isso, a correta interpretação da palavra transmitida ainda pode encontrar obstáculo na polissemia das palavras, multiplicidade de significações traduzida materialmente como entendimentos distintos sobre o mesmo conceito ou vocábulo. Num exemplo banal, a palavra “laranja” pode assumir o significado de um fruto, uma cor ou de pessoa utilizada por outra, oculta, para a prática de fraudes. Tal confusão semântica é transferida aos conceitos, sendo capaz de provocar ruído entre emissor e receptor, sujeitos que são a historicidades individuais e bagagens culturais distintas, do que resultam interpretações contraditórias sobre a mesma mensagem.

            Em vista de tais possibilidades, ao autor de obra de pensamento cabe buscar mitigar ao máximo o poder dos ruídos, elucidando o significado que deseja imprimir às palavras e aos conceitos utilizados. Dessa forma, independentemente do significado que o leitor/receptor tenha sobre um determinado conceito que surja na mensagem, terá a exata noção do sentido que a ele foi concedido pelo autor.

            Esse é o objetivo do artigo anterior e também o desse. Busca-se conferir um sentido comum, obviamente a partir da ótica do autor, à percepção dada aos conceitos de indivíduo e de sociedade, suas inclinações, objetivos, politica e interpretação da realidade, que serão temas de artigos futuros. Aqueles que me honraram com a leitura de artigos anteriores, poderão sentir uma certa similaridade dos novos textos com alguns já publicados. Não se trata de repetição, mas de uma reescrita necessária para a homogeneidade e fluidez da exposição do pensamento em um formato mais longo e aprofundado.

            Ao final do texto anterior, dissemos que a religião foi a primeira forma de adestramento dos impulsos naturais, concretizando-se através da imposição do medo da divindade. Constitui-se em instituição humana que se notabiliza por afirmar-se portadora da imutável palavra divina, o que a torna possivelmente uma das estruturas humanas mais resistente às mudanças. Afinal, se os deuses são perfeitos, produziram um mundo perfeito e nada deve ser mudado, salvo para a radicalização da fé. Espinosa, dissecando o poder existente em seu tempo, o monárquico, compreendeu que o segredo do sucesso do poder consistia em enganar a população “dissimulando, sob o nome de religião, o temor ao qual se quer acorrentá-los; de forma que eles combatem por sua servidão como se fosse sua salvação”3. Dito de modo mais simples: o discurso fraudulento do poder, disseminado pela religião, conduz o povo, não somente a atirar no próprio pé, mas a desejar fazê-lo por supor ser em nome do bem e da salvação de si e dos amados. Ou seja, ação equivocada promovida pela ilusão. Segundo Freud4, o erro é um juízo enganoso sobre a realidade, enquanto a ilusão é esse mesmo erro preenchido pela esperança de concretização. Por conta disso, pontifica, dada a sua natureza mista de erro atravessado pelo desejo, a religião é uma ilusão.

            No início, o propósito religioso era cosmogônico: explicar a criação e os fenômenos da natureza, assustadores e incompreensíveis, conferindo-lhes sentido. Não por outra razão, coisas naturais como Sol, Lua, relâmpagos e trovões foram alçados à posição de deuses ou de eventos por eles criados. Num segundo momento, a religiosidade já absorvida pela cultura laica passa a ser manipulada para o controle da sociedade. No livro Mitologia: deuses, lendas, heróis5, assim são descritos os fins políticos desejados por Zeus:

O título de rei dos deuses não é fortuito. Zeus é a mais política de todas as divindades. Ele exige dos homens o respeito às leis divinas: a devoção à família, à vida pública, à confederação de cidades-Estado gregas, a ajuda aos suplicantes e aos estrangeiros, os juramentos. Em resumo, tudo o que garante o funcionamento de um Estado bem gerido: suas leis, sua polícia, sua hierarquia e suas Forças Armadas. Zeus é a fonte de todas as leis e de todo o poder que um homem tem sobre outros. Dele emana a legitimidade com a qual os indivíduos criam e executam as leis (da mesma forma como, muito mais tarde, reis cristãos receberão de Deus a sua própria legitimidade).

            Embora se refiram ao principal deus da extinta crença grega, os autores não se furtam a apontar, na parte final do trecho destacado, que a influência política da religião não se limita aos gregos clássicos. Menciona-se o cristianismo, mas de fato ocorrem em diversas outras religiões, por vezes pesadamente.

            No islamismo, os livros santos não somente determinam a teocracia (governo religioso), mas regulam a totalidade do comportamento individual, ou seja, alcançam toda a ação sociopolítica da pessoa, o que se traduz em totalitarismo, pois prega uma ideologia de controle que abrange a vida total. Desse modo, considerado apenas o islamismo, a palavra sagrada é diretamente responsável pela orientação política de 23,4% da população mundial, ou seja, cerca de 1,6 bilhão de pessoas em 20106. Trata-se de pessoas obrigadas a orientar toda a vida pessoal e política segundo os ditames dos sacerdotes religiosos, únicos intérpretes autorizados da palavra sagrada. Dependendo do país e do intérprete do Corão, mulheres são obrigadas a cobrir certas partes do corpo, desde um simples véu para cobrir os cabelos até o exagero de uma burca; as esposas devem obediência aos maridos; não podem sair sozinhas ou dirigir veículos; não possuem liberdade para escolher certas profissões; devem aceitar a poligamia dos homens; sujeitam-se ao horror indizível de serem mutiladas na infância para a retirada do clitóris (circuncisão feminina). Quanto à atuação política feminina, embora garantido o direito ao voto feminino em grande parte dos governos islâmicos, o gradiente se estende de papel reduzido a nenhum, porém sempre inferior ao masculino, seguindo a linha traçada por Maomé ao ponderar que “nunca terá sucesso uma Nação que faz de uma mulher sua Rainha”7. A homossexualidade, mais pesadamente a masculina, é definida como crime em grande parte dos países muçulmanos, nos quais é punível com penas que se estendem desde uma simples multa ou prisão comum, até barbaridades como flagelamento, prisão com trabalhos forçados, prisão perpétua e o extremo da pena de morte por enforcamento, decapitação, apedrejamento ou fuzilamento, dependendo do país e do crime; o adultério e outras relações sexuais consideradas ilícitas, em certos casos, também pode resultar em morte; países muçulmanos não possuem legislação antidiscriminatória favorável aos homossexuais, não aceitam casamentos gays e muito menos a adoção de crianças por eles; o aborto pode ser penalizado com apedrejamento público.

            Perceba-se que não são meras exigências da religião dirigidas a pessoas que professam uma determinada fé, como ocorre com muitas religiões, cujo máximo em termos de malignidade é o de permear a sociedade com um falso moralismo hipócrita. Estabelecida uma teocracia, qualquer que seja a religião, prevalecem os ditames dos livros sagrados; situações medievais, como as antes elencadas, são alçadas à condição de política de Estado, independentemente da fé pessoal. No caso muçulmano, trata-se da sharia, lei islâmica ancorada diretamente nos ensinamentos do Corão. Aliás, como exemplo de que qualquer teocracia é daninha, a blasfêmia (insulto à religião), a heresia (interpretação da religião considerada falsa pelos sacerdotes) e a apostasia (renegação da religião da qual se era fiel, trocando por outra ou se tornando ateu), assim como a bruxaria, podiam resultar no passado, nos assim chamados “julgamentos” realizados pela inquisição cristã, em penas de tortura, esquartejamento e morte. Atualmente, em muitas teocracias islâmicas, ainda resultam. Uma fatwa pode tornar-se um mandado geral de morte, dirigido a todo e qualquer muçulmano, como bem sabe o escritor inglês Salman Rushdie, que vive há trinta anos escondido por conta de uma condenação islâmica que sofreu no ano de 1989, em virtude do lançamento de seu livro Os versos Satânicos, caracterizado como blasfêmia pelo aiatolá Khomeini, então dirigente espiritual do Irã.

            No judaísmo e no cristianismo, este último estabelecendo regras comportamentais para mais de 2,3 bilhões de pessoas, a Bíblia (Antigo Testamento dos cristãos), livro sagrado de ambas as religiões, assegura que a legitimidade dos reis provém diretamente de Deus, afirmação expressamente corroborada no livro de Provérbios (8:15-16), estabelece-se o domínio de Deus sobre o poder, a política e a justiça: “Por meu intermédio os reis governam e as autoridades exercem a justiça; também por meu intermédio governam os nobres e todos os juízes da terra”. Em Êxodo (22:28) reforça-se o dever de respeito à autoridade: “Não blasfemem contra Deus e não amaldiçoem uma autoridade do seu povo”.

            O Novo Testamento dos cristãos igualmente determina a submissão do povo ao poder estabelecido. O livro de Pedro (2:17, ou seja, capítulo 2, versículo 17) impõe aos crentes a seguinte norma: “Tratem a todos com o devido respeito: amem os irmãos, temam a Deus e honrem o rei”. Já o livro de Timóteo (2:1-2), assim professa: “Antes de tudo, recomendo que se façam súplicas, orações, intercessões e ações de graças por todos os homens; pelos reis e por todos os que exercem autoridade, para que tenhamos uma vida tranquila e pacífica, com toda a piedade e dignidade”. O próprio Jesus, segundo Mateus (22:17-21), conclamou seus seguidores a respeitar o poder estabelecido, para o que utilizou a figura do correto pagamento dos impostos, ao proferir o famoso dito “deem a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. Em Tito (3:1-2), a apologia à obediência ao governo prossegue: “Lembre a todos que se sujeitem aos governantes e às autoridades, sejam obedientes”.

            Honrem o rei e as autoridades, orem por eles, sujeitem-se ao seu poder, não falem mal deles, sejam obedientes e paguem seus impostos; tudo isso é ensinamento sagrado para os que assim acreditam, ou seja, para cerca de 4 bilhões de pessoas, mais de metade da população mundial. Todavia, independentemente da fé professada por cada um, inclusive fé nenhuma, se tornariam comportamentos mandatórios para todas as pessoas na hipótese da instituição de teocracias judaico-cristãs. Alguns desses “ensinamentos” estipulam punições terríveis para comportamentos que podem ser classificados como banais, como apedrejamento até a morte da mulher que praticar sexo antes do casamento (Deuteronômio 22:20-21); corte da mão da mulher que, em defesa do próprio marido, pegar os testículos do agressor (Deuteronômio, 25:11-12); e morte para os homens homossexuais (Levítico 20:13). No passado, como já dito, foram eles o sustentáculo normativo utilizado para a prática de tortura e morte de milhares de pessoas, principalmente mulheres, pelo Santo Ofício.

            A Bíblia, vinda diretamente da “sabedoria” de Deus, contém algumas proibições absolutamente ridículas: coito interrompido (Gênesis, 38:9-10); sexo antes do casamento (Deuteronômio 22:20-21); homem entrar na igreja se não tiver pênis ou testículos e tampouco o bastardo, até a décima geração (Deuteronômio, 23:1-2); comer carne malpassada, ou seja, com gordura ou sangue (Levítico 3:17); comer animais aquáticos que não tenham barbatanas ou escamas (Levítico, 11:12); comer carne de porco ou mesmo tocar no animal morto (Levítico 11:7-8); criar tipos diferentes de animais em casa, semear sementes de plantes diferentes e vestir roupas feitas de materiais distintos (Levítico, 19:19); cortar o cabelo e aparar a barba (Levítico, 19:27); ter tatuagens (Levítico, 19:28); ler horóscopos (Levítico, 19:31); divorciar-se ou separar-se e casar novamente (Coríntios, 7:10-11, e Marcos, 10:7-12); adornar-se a mulher com tranças nos cabelos, roupas caras e acessórios elegantes (Timóteo 1, 2:9-12); praticar a mulher o ato de ensinar, não se manter em silêncio e não se sujeitar ao marido ou ter sobre ele alguma autoridade (Timóteo 1, 2:9-12).

            Além disso, a Bíblia aquiesce com comportamentos atualmente classificados como desumanos, como a expressa permissão nela contida para o comércio e trabalho de escravos, inclusive para a transmissão hereditária dos escravos (Levítico, 25:44-46).

            Vale destacar ser indefensável o argumento de que “os tempos eram outros”. A interpretação segundo o espírito da época é condição indispensável para a compreensão da cultura laica, mas não se aplica à religião. Isso porque, nessa hipótese, trata-se da voz de Deus, infalível e jamais revogada. Atualmente é comum invocar o sentido figurado da palavra bíblica, mas, no passado recente, um número incalculável de pessoas morreram sob a acusação de ofensa à literalidade do texto bíblico. O que nos ensina a própria Bíblia é que, num passado longínquo, a sacralidade foi transmitida diretamente para os eleitos, como Abraão ou Moisés, com sonoridade audível e muitas vezes com visões e aromas, sem intermediações. Desse modo, não se concebe a possibilidade de que seres humanos possam, ao longo do tempo, modificar a interpretação da literalidade da palavra sacra, mesmo invocando uma suposta orientação do “Espírito Santo”. A possibilidade de fraude praticada por supostos profetas é tão gritante que torna impossível crer que Deus, com tamanha inteligência e sabedoria, tomaria tal caminho. Haveria a própria divindade, novamente de voz viva, sensível aos ouvidos, com testemunhas, de informar alguma mudança na legislação divina, o que, até o momento, aparentemente não ocorreu.

            No aspecto de uma análise hermenêutica fundada estritamente numa perspectiva religiosa, tudo faz sentido: Deus é onipotente e tudo é criação Dele, de modo que os reis também o são, o que obriga os fiéis, por deferência ao divino, a respeitar a autoridade instituída. Isso é dito claramente em Provérbios (8:15-16), como visto acima, segundo o qual os governantes (reis, nobres, autoridades, juízes e o guarda da esquina) governam e fazem justiça por intermédio de Deus. O silogismo é o seguinte: (a) Deus é onipotente e criou tudo o que existe, ou seja, todas as criaturas; (b) os governantes existem e, portanto, são criaturas; (c) logo, Deus criou os governantes. Trata-se de um tipo de explicação que claramente esbarra na possibilidade de uma outra conclusão silogística a partir de premissas similares: (a) Deus é onipotente e criou tudo o que existe; (b) o mal existe, inclusive e talvez principalmente, nas relações de poder, portanto, é uma criatura; (c) logo, Deus criou o mal. Embora o primeiro silogismo seja aceito sem grande contestação pelos sacerdotes, o segundo não encontrará ressonância em nenhum deles e possivelmente será respondido pela solução padrão dada às inconsistências religiosas: o indefectível “milagre da fé”. Em resumo: Deus tudo cria, menos o mal, que é obra do Diabo. Ocorre que o Diabo é criatura de Deus, mais especificamente, Lúcifer, um arcanjo. Deus, sendo onisciente, desde sempre soube que Lúcifer se tornaria o Diabo, de modo que, dado o seu caráter onipotente, tinha o poder de evitar. Não tendo evitado, aquiesceu com o surgimento do mal, sendo seu criador por consequência.

            Seja como for, é inegável a enorme influência da religião no comportamento individual e, por consequência lógica, no direcionamento político da sociedade, o que ocorre pesadamente em teocracias religiosas totalitaristas, mas, de modo mais brando, em todas as demais formas e práticas de governo. Por isso mesmo, torna-se paradoxal compreender, através de Freud, que, em geral, a busca pela religião se traduz em modo encontrado pelo indivíduo para escapar ao mal-estar causado pela inserção numa civilização cujo poder hierárquico se escora na própria religião, tal como um cachorro perseguindo o próprio rabo. Guardadas as devidas proporções, a busca pelo contato com a religião assemelha-se ao que ocorre com a que persegue outras ferramentas de fuga da realidade, como jogos, álcool ou droga.

            E o paradoxo, claro, decorre da circunstância de ser o próprio conservadorismo religioso uma das principais causas do mal-estar civilizatório, representando, talvez, o mais sério entrave ao incremento das liberdades individuais e, consequentemente, à conquista da utopia social no modelo permissivo ao florescimento individual desenhado pelo economista britânico Tim Jackson8. Além disso, segundo Max Weber (1864-1920)9, do útero do conservadorismo religioso, a partir da ética cristã protestante, nasce o sistema econômico que degenerou no formato vicioso moderno, o capitalismo desmesurado ou neoliberal. Sem embargo das agudas conclusões alcançadas por Weber, o fato é que praticamente todos os sistemas econômicos tiveram como fâmulos os dogmas religiosos aliados à força das armas. Esse modelo prevalece até os dias atuais, como se observa dos discursos de chefes de nações que, lançando mão de artifícios retóricos fundados nos escritos sagrados, clamam ao povo que suporte estoicamente as imposições da miséria, da fome e da guerra que eles mesmos causaram e de cujos males não padecem, nem seus entes queridos.

            Ao lado das espadas da ganância pelo lucro (rectius: egoísmo profundo), a religião institucionalizada é, sem dúvida, a principal responsável pela manutenção do conhecimento em guetos obscuros, inacessível à maioria das pessoas. Além disso, inviabiliza programas sérios de controle da natalidade ao (a) inscrever a procriação descontrolada na categoria de meta divina; (b) sacralizar ridiculamente um mero zigoto humano (ou mesmo o próprio esperma, na visão bem-humorada do grupo Monty Python10); (c) pecadizar inclusive o uso de anticoncepcionais e preservativos; e (d) conduzir os crentes a se oporem ferozmente ao aborto, principalmente o pretendido por mulheres que não professam a mesma religião ou religião alguma, missão na qual alguns fanáticos religiosos não hesitam em lançar mão da vandalização de clínicas e mesmo do assassinato de médicos. Tudo isso, claro, movidos por amor, o imenso amor que Deus reserva aos seus filhos, mesmo quando pratica atos genocidas como o dilúvio ou a destruição de Sodoma, Gomorra e outras cidades, episódios bíblicos nos quais todos foram considerados culpados pelos pecados de alguns, inclusive crianças, animais e plantas. Segundo a Bíblia, Deus ficou tão horrorizado com as consequências do dilúvio por ele criado que prometeu nunca mais fazer coisa semelhante com a humanidade, narrativa absolutamente contraditória com a crença na onisciência. Como seria possível surpreender-se com um resultado já há muito sabido? Milagre da fé.

            Os discursos apologéticos à ambição socialmente perniciosa, garantidores da apropriação individual infinita da riqueza e consequente dominação do mundo pelos poderosos, encontram substrato ideológico legitimador na religião, como o que decorre da teologia da prosperidade. São os cânones religiosos que conferem salvaguardas divinas ao “fardo do homem branco”11 cristão, a ser entendido numa bitola conceitual mais larga para alcançar a defesa do patriarcado machista, além de racismo, xenofobia, hierarquização injusta dos indivíduos na sociedade, mitigação dos direitos das mulheres e discriminação de todas as orientações e desejos sexuais que transbordem do estereótipo “papai homem cis e mamãe mulher cis12”, a ser sempre praticado na posição do missionário (homem por cima da mulher) e preferencialmente de olhos fechados para que não enxerguem as vergonhas recíprocas.

            Dadas as possibilidades hermenêuticas de todo e qualquer escrito, os textos sagrados – submetidos a inúmeras modificações levadas a efeito por incontáveis tradutores ao longo dos séculos – são fontes inesgotáveis de interpretações beligerantes e apologéticas do preconceito e da discriminação. É claro que o mesmo se poderia dizer de vários outros textos; contudo, os escritos laicos não possuem a pretensão de serem mensagens diretas dos deuses, de modo que são desprovidos da intensidade de convencimento causada pelo temor reverencial e, por conta disso mesmo, tampouco possuem o poder de emudecer a crítica, sendo exemplo a voz acanhada que se testemunhou nos jornais do mundo após o massacre promovido em Paris por conta das charges satíricas a Maomé. Todos temeram passar por experiência idêntica. E é justamente esse temor público difuso que caracteriza um ato terrorista, tenha ele objetivo político ou religioso.

            De todo modo, seja porque percebe a importância da coexistência social, seja em virtude da fé no poder punitivo da divindade, o fato é que, juntos, os mecanismos culturais oriundos da religião e da normatividade secular impuseram o seu domínio sobre o registro instintual do indivíduo. Com exigência de renúncia bem acima do que seria necessário, a ele resta submeter-se ao poder estabelecido e padecer das neuroses decorrentes da restrição da liberdade em níveis quase intoleráveis. À sociedade, cabe categorizar como loucos os que, armados de fuzil, ocasionalmente matam dezenas de pessoas em escolas e outros estabelecimentos.

            Quanto às instituições religiosas, a fé impede a implementação de modificações estruturais pela via da indução ao terror de uma punição atroz e eterna, principalmente as de fora para dentro (iniciadas por fiéis, atingindo o clero). Porém, mesmo as que ocorrem no sentido inverso, de dentro para fora, são tão raras que se tornam marcos históricos, como a Reforma Protestante realizada pelo monge agostiniano Martinho Lutero. Além disso, segundo Freud, a religião exerce um papel significativo no registro psíquico do ser humano, eliminando ou mitigando a angústia provocada pela perda da proteção do pai humano, substituído pelo pai celestial onipotente, bem como a que advém da percepção da morte, superada pelo conforto da continuidade espiritual. São forças poderosas, de modo que a relação religiosa é marcada por uma disparidade de poderes tão gigantesca entre opressores (supostamente) divinos e oprimidos mortais que há pouca ou nenhuma liberdade individual para implementação de modificações importantes. Todavia, mesmo nesse caso a pessoa possui plena liberdade para unilateralmente pôr fim à relação religiosa que entender prejudicial.

            Segundo Sartre13, o ser humano está condenado a ser livre. Condenado porque não opta nem por nascer nem por ser livre, sendo lançado ao mundo independentemente de sua vontade. Após estar no mundo sem ter escolhido isso, percebe-se absolutamente livre para decidir realizar toda e qualquer ação ou omissão ao alcance de suas possibilidades físicas e mentais, encontrando limites apenas na própria consciência. O peso das consequências sociais previsíveis influencia a opção volitiva, mas não a determina; há plena liberdade na escolha entre a coragem ou o medo de enfrentá-las. Para Sartre, a perspectiva de suportar os efeitos da escolha provoca no ser humano uma profunda angústia por se saber livre. Por conta disso, opta por se refugiar na má-fé, entendida como a recusa da própria liberdade e a busca por valores exteriores, sociais. Para ele, a pessoa séria, conformista, que aceita como seus os valores impostos pela tradição social, age de má-fé.

            Disso decorre que a extinção da opressão religiosa depende apenas do indivíduo, no plano do acúmulo de conhecimento e consequente desencantamento, ou seja, no âmbito da liberdade de agir e de pensar.

            Se a quebra do contrato com a instituição religiosa é acentuadamente complicada, por envolver o medo da punição eterna incutido no indivíduo pelo sacerdote, o mesmo não se pode afirmar das instituições seculares que condicionam o formato de sociedade a que são submetidos os membros do agrupamento humano.

            Esse será o assunto do próximo artigo, a saber, analisar o indivíduo e sua relação com a tirania e a servidão voluntária.

1– Disponível no site do portal de notícias GGN, em: https://jornalggn.com.br/artigos/o-individuo-egoismo-altruismo-e-sua-divida-simbolica-por-marcio-valley/?__cf_chl_jschl_tk__=7792de3cc5deec67c94471f62b9fd999808d886e-1614040544-0-AZfdwAhwUEH2PB6wBf1RK5EnPhRH_SsIFQOd-b5VVx0rqSqlEJRtKVvAPsha8CjjViYbs4TUROfjVfxGnMfKl4bEHajD2N3ElOg0b9IkYN9Ser2ksYInhJIQoRi0CwLqRDtIda6q48_YF78F7zwXZyeeHyCJxijOqpxxqmsWZ_MteEDIzfH9lnw0a8hikfzjjrm-9rxsCyr7mTDAIYWY0IP5W6_tn6RHZ2LImT278qEdt8iGBDB_Q33FQtM6Scb6KuAcHu4UwE9T6dquIc8cEj5umGBVXOiDz7TLjjaBBA2CvcSrDCozn8hjptjThVqeU2bf7zaKJCb-SaPGfuInsdss3-JKikvZSF7pw46-b9sGVAxviEW6CiVYXhZ-_mZIxmlvqiXybLXgi5Lay-cU-ZunCvzA_j7ry2Ij1ZoIun37

2– KOSELLECK, Reinhart (2012), apud SOUZA, Giane Maria. A história do conselho nacional de política cultural (CNPC) e seus múltiplos desenhos institucionais, in Simpósio “Estado, Democracia e Movimentos Sociais no Mundo Contemporâneo”, Universidade de Brasília, 2017, conforme obtido no site http://docplayer.com.br/57101558-A-historia-do-conselho-nacional-de-politica-cultural-cnpc-e-seus-multiplos-desenhos-institucionais.html, em 05/12/2017.

3– ESPÍNOSA, Baruch de. Tratado teológico-político, 1670.

4– FREUD, Sigmund (1856-1939). O futuro de uma ilusão. In: Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

5– NOGUEIRA, Salvador. Mitologia: deuses, lendas, heróis / Salvador Nogueira, Maurício Horta, José Francisco Botelho. São Paulo: Editora Abril, 2012.

6– Extraído do site Wikipedia, disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Mundo_isl%C3%A2mico. Acesso em 20/12/2020.

7– Extraído do site Wikipedia, disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Mulheres_no_Isl%C3%A3#cite_note-58. Acesso em 20/12/2020.

8– Economista ecológico britânico, professor de desenvolvimento sustentável na Universidade de Surrey, Inglaterra, e diretor do Centro para a Compreensão da Prosperidade Sustentável, consórcio de pesquisa internacional multidisciplinar cujo objetivo é a compreensão das dimensões econômicas, sociais e políticas da prosperidade sustentável.

9– Jurista e economista alemão considerado um dos fundadores da Sociologia, autor do livro A ética protestante e o “espírito” do capitalismo.

10– No filme “O sentido da vida”, filme satírico do Monty Python realizado em 1983.

11– Poema de autoria do poeta inglês Rudyard Kipling, originalmente publicado em 1898 na revista McClure’s.

12– Cisgênero é o oposto de transgênero e diz-se da pessoa que se identifica física e psicologicamente com o gênero que lhe foi atribuído no nascimento.

13– SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. São Paulo: Editora Abril, 1973.

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