"É sabido por todos nós que o meio espírita brasileiro tem uma parcela de si anestesiada para as questões sociais em profundidade política, econômica e até mesmo humanitária, pois este percentual de espíritas segue o presidente denunciado em tribunais internacionais por genocídio, como se este ato não significasse nada nos patamares do amor à vida humana."
"Desse modo, um governo que prioriza a vitória (da vida) dos mais ricos e exploradores, não é representativo da causa espírita!"
Diálogo sobre o Dia Nacional do Espiritismo e Bolsonaro, por Ana Cláudia Laurindo
Do site Repórter Nordeste
Instigada pela necessidade de reflexão constante, nestes caminhos repletos de armadilhas e obstáculos intencionalmente postos, abro o coração e a mente para dialogar com organizadores e articulistas do livro “Espiritismo, Sociedade e Política – Projetos de Transformação”, da Editora Comenius, sobre a Lei 14354/22, que sob assinatura de Jair Messias Bolsonaro institui o Dia Nacional do Espiritismo no Brasil.
O primeiro gesto de esgar tentei conter, pois já não é aconselhável afetar o emocional com ocorrências sequenciais de escárnios administradas por este presidente.
É sabido por todos nós que o meio espírita brasileiro tem uma parcela de si anestesiada para as questões sociais em profundidade política, econômica e até mesmo humanitária, pois este percentual de espíritas segue o presidente denunciado em tribunais internacionais por genocídio, como se este ato não significasse nada nos patamares do amor à vida humana.
Imaginamos que estes consigam celebrar o ato presidencial como um prêmio. Contudo, rompendo as questões de guetos, não podemos felicitar ninguém por tal feito quando a coletividade sofre inúmeros males evitáveis oprimida por crises fabricadas e políticas de extermínio dos empobrecidos e vulneráveis.
O espírita de visão liberal que encontra representação em Bolsonaro, não agrega valores societários a esta escolha, pois “o liberalismo fundamenta a visão individual do ser humano em todos os aspectos da vida”, diz Ademar Arthur Chioro dos Reis, na página 12.
O atual contexto brasileiro expõe a ferida comum provocada pelas políticas de Jair Bolsonaro, desde o período de campanha eleitoral, quando sua sanha de poder confundiu verdade e mentira, dificultando o discernimento de um povo semialfabetizado em questões históricas e sociais, para com a manipulação das crenças, alcançar os objetivos predatórios do ultraliberalismo nacional e internacional.
Em seu artigo no livro acima citado, Alessandro Cesar Bigheto na página 35, reflete sobre alguns malefícios correspondentes ao ato de fazer política para quem possui poderes, dizendo que “a sociedade organizada pelos liberais e capitalistas não era apenas injusta, mas parecia funcionar mal, pois na medida em que funcionava, produzia resultados ruins, distantes do bem-estar pregado pelos seus defensores. O fato de os ricos ficarem cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres, não era um acidente, mas um problema estrutural da sociedade organizada pelos ideais liberais capitalistas.”
Desse modo, um governo que prioriza a vitória (da vida) dos mais ricos e exploradores, não é representativo da causa espírita!
Conhecedores de teorias sociais e econômicas, não poderemos fazer escolhas de caráter político e histórico, sem assumirmos as responsabilidades do que fazemos. Os inconvenientes de apoiar ou aprovar as ações de Bolsonaro movimentam debates, estudos, reflexões internas e explanações externas, gravando divisões necessárias no meio espírita brasileiro, pois não aceitamos a omissão diante da morte coletiva dos marginalizados, por serem trabalhadores, desempregados, ou apenas livres pensadores de suas histórias de vida.
No artigo denominado “Existência humana: fenômeno espiritual e político”, a autora afirma que “o controle do sofrimento de agrupamentos humanos e categorias societárias, através da criação e manutenção de sistemas sociais excludentes, não é resultado de determinações do além, portanto, é temática dos saberes humanos. Tal violência histórica é consequência de concepções ainda atrasadas, a reproduzir sofreres planejados sobre a vida das coletividades que rumam.”
Se o presidente do Brasil é responsável pelo acúmulo de sofrimento da população através da execução de políticas geradoras de morte, com acentuada evolução da violência e agudização da miséria humana, não corresponde sob hipótese alguma aos objetivos do Espiritismo em nosso meio.
A miserabilidade é entrave a qualquer expectativa justa de evolução, pois nega respostas às necessidades primárias do ser encarnado. Retirar postos de trabalho e direitos trabalhistas, é ação trevosa.
Concordamos com Carlos Gaba, que na página 63 do livro com o qual dialogamos aqui, afirma que “é por meio do trabalho que o ser humano desenvolve suas habilidades, experimenta novos aprendizados, aumenta seus conhecimentos e relaciona-se com os seus semelhantes, exercitando e aplicando os ensinamentos deixados por Jesus e por vários outros espíritos evoluídos que estiveram conosco na Terra.”
Empobrecer um povo materialmente, culturalmente e espiritualmente, tem sido consequência visível do tempo presente, sob a batuta de Jair Bolsonaro, aquele que tripudia da enfermidade e da morte, desonra a faixa presidencial em exibições grotescas de insensibilidade diante de calamidades públicas e/ou naturais, sem temer divulgação de gestos e falas profanas mesmo em instantes de consternação.
Nossas análises não surgem do vácuo, e as palavras podem ser confrontadas em registros. Nosso sentimento de repulsa por uma ação instituída por um governo genocida não é indicativo de busca purista, mas de grito de alerta, para que o meio espírita afinado com Jair Bolsonaro ainda possa repensar. Ecoando Dora Incontri, na página 89 do livro, “se o ser humano é um ser em evolução, com potencial infinito para desabrochar seu senso de justiça e fraternidade, então oprimido e opressor devem ser estimulados à maturação espiritual e convertidos ao amor recíproco”, mas este píncaro não se alcança com omissões, medos e silenciamentos.
Nos diz Isabel Guimarães, na página 95, que “a moral que sustenta o espiritismo é a moral cristã, a base é a ética proposta por Jesus, que foi profundamente revolucionário, na época em que ele esteve encarnado na Terra e ainda o é até os dias de hoje”. Portanto, não seremos induzidos a nenhum tipo de silêncio conivente, e os brados do livre pensamento haverão de incomodar os acomodados, mas fortalecerão os dispostos a maturar.
Já não nos basta falar baixo como proposta piedosa, assim como a fome da nação não será saciada apenas com doações de cestas básicas. Joana Angélica Guimarães da Luz nos diz na página 113, que “no caso do espiritismo , essa visão assistencialista é também uma questão predominante, pois muitos grupos espíritas trabalham na perspectiva de que o assistencialismo lhes garante uma elevação espiritual”. Mas a omissão quanto à percepção das estruturas geradoras de fome e miséria não lhes aliviará as lacunas do desamor que tal prática alimenta e mantém.
Negar a purulência da mentalidade individualista, liberal, que o capitalismo predatório exposto nos caminhos do governo brasileiro apenas escancara a dose alta de ignorância, que parte significativa do meio espírita ainda não admitiu possuir. Juliana Paula Magalhães, na página 121 explica que “a lógica do capitalismo é a da acumulação e isso se faz à custa do suor e sangue dos trabalhadores”, por essa razão, não existe maneira de negar a importância de escolher o fortalecimento de práticas progressistas, humanitárias, com alcance mais espiritualizado sobre os efeitos das leis sociais e econômicas nas vidas reais de todos nós.
Espiritismo sem valores espíritas, não pode existir.
Associar apoio de pessoas espíritas a governos ditatoriais, homofóbicos, beligerantes e misóginos não pode ser normalizado; Jair Bolsonaro destrata a mulher de maneira pública, e seu governo conseguiu fazer proliferar o feminicídio de maneira assustadora. Segundo Litza Amorim, na página 134, “os movimentos sociais militantes pela emancipação da mulher foram notados por Allan Kardec e destacados na Revista Espírita.” Como podemos na contemporaneidade aceitar o retrocesso?
A história espírita pode até mesmo ser desgarrada da religião, e isso tem acontecido de modo interessante, mas não poderá ser desgarrada do amor! Como apoiar ao mesmo tempo amor e destruição?
Pausamos para pensar profundamente este diálogo com o texto de Luiz Signates, na página 147, que diz: “Um século depois, em 2018, o país assistiu a ascensão de um governo de extrema direita, que, segundo as pesquisas eleitorais, contou com o voto de 58% dos espíritas no primeiro turno (candidaturas de direita) e 48% no segundo turno (votos em Bolsonaro). Político controverso, original do baixo clero da Câmara dos Deputados, onde cumpriu 28 anos de vida parlamentar sem qualquer realização digna de nota, exceto a prática do nepotismo possível diante das restrições legais (contratação cruzada de parentes em gabinetes de parlamentos diversos, inserção de praticamente todos os filhos na vida política etc.) e o alinhamento acrítico aos setores retrógrados e autoritários do Exército, Bolsonaro é a cara de um Brasil ignorante e paternalista, patriarcal e autoritário, profundamente preconceituoso e pernóstico, que saiu da escravidão sem que a escravidão saísse de sua mentalidade.”
Assim sendo, não há motivo real para nenhum tipo de celebração por causa da instituição do Dia Nacional do Espiritismo pelas mãos espúrias do atual presidente do Brasil.
Optamos em seguir com aqueles e aquelas que fazem de cada dia uma nova oportunidade de resistência ao mal institucionalizado e reverberam amor na prática cotidiana, dando mais do que água a quem tem sede e pão a quem tem fome, por acrescentar instrumental de pensamentos políticos libertadores, canais de evolução.
Fonte bibliográfica: Incontri, Dora. Pinto, Sergio Maurício. (Org.)
Espiritismo, Sociedade e Política – Projetos de Transformação
Bragança Paulista, Editora Comenius, novembro de 2021.
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