segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

Qual é a vida que tanto se defende? (Sobre a proteção incondicional da vida já existente), por Marcelo Henrique

 


A gestão de Bolsonaro legou mais este tétrico episódio – sistemático – calcado na retirada dos elementos relativos à proteção e salvaguarda das comunidades, bem como dos mínimos direitos de saúde, saneamento, educação, alimentação suplementar, moradia e dignidade.


Do Jornal GGN:



Qual é a vida que tanto se defende?  (Sobre a proteção incondicional da vida já existente)

por Marcelo Henrique

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“O forte deve trabalhar para o fraco”

(Resposta parcial ao item 685-a, de “O livro dos Espíritos”, de Allan Kardec).

Atônitos. Estarrecidos. Indignados. Eis como nos sentimos desde que a mídia local (e internacional) noticiou, ontem, o descaso para com os índios Yanomamis em território da Amazônia brasileira. As cenas são fortes, lamentáveis, entristecedoras. Obviamente, qualquer cidadão brasileiro, de todos os cantos do país, recebeu em choque as imagens dos povos indígenas Yanomami de Roraima.

É inconcebível que, no Século XXI, agrupamentos populacionais estejam relegados ao descaso, ao abandono, à iniciativa sistemática de dizimação de pessoas e suas culturas. E, mais ainda, que isto seja patrocinado por um governo, cujas missões e responsabilidades se acham delimitadas na Constituição Federal e nas leis pertinentes. A gestão de Bolsonaro legou mais este tétrico episódio – sistemático – calcado na retirada dos elementos relativos à proteção e salvaguarda das comunidades, bem como dos mínimos direitos de saúde, saneamento, educação, alimentação suplementar, moradia e dignidade.

O “mote” para tal política (tanto ativa como comissiva, porque ações e omissões governamentais foram registradas e estão sendo apuradas). Já se constatou que a gestão Bolsonaro utilizou o Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República (GSI) para a liberação de garimpos ilegais, o que ocasionou a contaminação das terras e das águas por mercúrio e isto ocasiona diretamente na disponibilidade de alimento nas comunidades. Vale relembrar que, em 2022, O Ministério Público Federal (MPF), em 2022, já havia pedido a retomada das ações de proteção assim como as  operações policiais de desmonte do garimpo ilegal no local.

Em paralelo, Bolsonaro também desmontou ações do Ministério da Saúde, tanto as preventivas quanto as corretivas, bem como às associadas ao saneamento básico. Em novembro do ano passado, o mesmo MPF apresentou solicitação de intervenção, ao Ministério da Saúde, em um dos distritos sanitários locais, tendo em vista a má gestão e a suspeita de desvios de recursos públicos.

Resultado: uma crise sanitária sem precedentes com os indígenas vítimas de desnutrição e outras doenças, como malária e pneumonia. O quadro já ocasionou a morte de 570 crianças nos últimos anos, das quais 505 com idade inferior a um ano e foram documentados 11.530 casos de malária na terra Yanomami, em Roraima, considerada a maior área de terras indígenas do país. A desassistência é tanta que foram suspensos os veículos de transporte dos indígenas de suas aldeias para os postos de saúde e locais de assistência, inclusive alimentar.

As autoridades governamentais, em especial o Ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, já determinou a abertura de inquérito para a apuração de supostos crimes ambientais e de genocídio, na premissa de que o tratamento dado pelas autoridades públicas é distante daquilo que se considera necessário e fundamental aos seres humanos, e inexistem dúvidas de que o povo indígena estava em completo abandono, diante do descaso e da indiferença do mandatário e suas equipes de governo.

Numa ação conjunta com a Ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, está sendo construído um hospital de campanha, em parceria com as Forças Armadas, objetivando a melhora das condições de atendimento aos povos indígenas.

QUAL vida?

O descaso para as comunidades indígenas não é um “privilégio” do (des)governo Bolsonaro. Também os negros, os pardos, os lgbts, os pobres, os socialmente marginalizados também foram desprezados pela gestão federal e, especialmente, pelo então presidente, inclusive com suas piadinhas e declarações preconceituosas e infames. Felizmente, esta página já foi virada e é hora de retomar a proteção e o cuidado, sobretudo com os mais carentes. É o que se depreende, inclusive, do excerto de “O livro dos Espíritos” que abre este nosso Editorial: o fraco sendo assistido e atendido pelo forte, independente de sua etnia, escolaridade, faixa etária e condição social.

A partir desta premissa, nos perguntamos: onde está o meio espírita, institucionalizado, figurativamente nas grandes instituições locais e nacionais, para se manifestar diante deste horrendo e hediondo quadro envolvendo nossos irmãos indígenas? Em especial, todo aquele “vigor” demonstrado por entidades e lideranças espíritas ao falar da temática do aborto, com a costumeira “bandeira” do “não ao aborto” e da “proteção incondicional ao direito à vida”, onde foi parar?

Nos parece que a cruzada dos espíritas pela defesa do viver está limitada, infelizmente, a dois quadrantes da existência corporal, humana: a da concepção e a da fase terminal da vida. Ou seja, aos espíritas “em geral” importa a defesa (militante) da vida contra o aborto e a eutanásia. Dizem, eles: “a vida é dom divino”. Sim, de fato, é uma prerrogativa divina ou universal a existência corporal, que tem a finalidade de propiciar o progresso aos Espíritos, como prescrevem as obras de Allan Kardec, em vários títulos e capítulos.

Mas, senhoras e senhores, QUAL vida? E a vida com dignidade? E a vida dos Yanomamis? E as dos demais povos indígenas? E a dos negros, pardos, cafuzos, mamelucos, amarelos, brancos? Sobretudo os que estão na marginalidade, os que vivem nas ruas, ou em favelas e regiões desprovidas de qualquer estrutura? E as populações lgbts? E os transexuais? E os portadores de deficiência? E os pobres, miseráveis, de qualquer etnia?

Estes não possuem, igualmente o tal “direito à vida”, incondicionalmente? Eles não merecem políticas protetivas e de salvaguarda? Não carecem de que os “fortes” provenham suas necessidades e, principalmente, do alto das tribunas ou no âmbito de portais, sítios eletrônicos e periódicos espíritas, se levantem vozes e tintas para a DEFESA INCONDICIONAL DA VIDA dos marginalizados?

Alguém viu uma linha sequer de tais “palestrantes renomados”, “dirigentes aclamados”, “médiuns reconhecidos”, “instituições relevantes” acerca do dantesco episódio vivenciado pelos nossos irmãos Yanomamis? Não! E, talvez, a partir deste nosso Editorial, resolvam se manifestar… Ou não! Podem continuar preferindo tratar de temas mais convenientes, ou, então, como vimos há pouco, tratar estas questões apenas do ponto de vista religioso e, nas entrelinhas, combater a gestão do governo entrante e a já demonizada política – tratando-a como “assunto irritante e polêmico”. Políticas sociais, políticas públicas, políticas inclusivas, políticas governamentais devem ser, sempre, objeto de análise e posicionamento dos espíritas. Isto é da vida em sociedade (“O livro dos Espíritos”, parte terceira, capítulo VII) e do progresso dos indivíduos e povos (idem, capítulo VIII) e, ainda mais, de solidariedade, fraternidade, justiça, amor e caridade (ibidem, capítulo XI).

Espírita que não se indigna, na verve e na escrita, contra as malfadadas ações do recém-findo governo Bolsonaro, ou, pior, que se manifesta, ainda, em “apoio” ao que o mesmo representou e representa, certamente não aprendeu as lições da Espiritualidade Superior, transcritas nas diversas obras do Professor francês.

Veja-se, algumas.

No item 54, de “O livro dos Espíritos” tem-se que as diversas etnias que caracterizam a espécie humana, em várias partes da Terra são, entre si, irmãs, “porque são animados pelo espírito e tendem para o mesmo alvo”. É de se perguntar: os espíritas em geral consideram, na verve e, sobretudo, na prática, como irmãos aqueles que descrevemos linhas atrás?

Em “O evangelho segundo o Espiritismo”, no Capítulo III, “Há muitas moradas na casa de meu Pai”, itens 13 a 15 ao enfocar os Mundos de Expiações e Provas, como a Terra, Agostinho menciona a existência de raças selvagens, formadas, segundo ele, em sua maioria, de “Espíritos que apenas saíram da infância”, cujo objetivo é se desenvolverem a partir do contato com os mais adiantados.  É de se perguntar: os espíritas em geral se consideram mais adiantado, com os que foram mencionados antes, a ponto de contribuírem efetivamente com o aperfeiçoamento deles?

Já em “A Gênese”, Capítulo XI, “Gênese espiritual. Raça adâmica”, novamente é mencionada a condição de certos agrupamentos humanos que estão, ainda, na “infância espiritual”, e que necessitam do amparo daqueles que já se encontram em melhores condições de civilização e progresso. É de se perguntar: os espíritas em geral, por suas instituições e lideranças, quando e o que fizeram em benefício das coletividades antes referidas?

É preciso, então, que, na vanguarda destes novos dias, em pleno terceiro milênio e no curso, já, da terceira década do Século XXI, outros espíritas assumam o protagonismo de orientações e práticas. O período religioso, calcado na ideia exclusiva da adoração e veneração aos Espíritos Superiores e da premente preocupação com o porvir (pós-morte, vida espiritual) precisa ser substituído por outras ações e discursos, implementando a fase intermediária que nos levará ao período de regeneração social. Note-se, bem: regeneração, que importa a modificação dos atuais parâmetros de vida em sociedade, substituindo um conjunto de práticas sociais para permitir avanços individuais e coletivos.

No que concerne ao tema deste Editorial, os indígenas de nosso território, em especial os da Amazônia brasileira, é preciso salientar que o bioma Amazônia não existe sem gente, sem humanidade, que é marcante nos indígenas, quilombolas e nos brancos que escolheram residir em tais agrupamentos humanos. E que este contexto requer a mais ampla proteção, para resistir às explorações extrativistas: especulação imobiliária, mineradoras, grileiros, latifundiários, monocultores e, também, o crime organizado, como para permitir que a existência (humana) dos Espíritos que ali se encontram, permita-lhes o alcance do progresso (intelecto-moral), para o natural avanço proporcionado pela encarnação.

Por isso, que o silêncio e a omissão dos espíritas diante de tais questões possa ser substituído pela indignação escrita e pela efetiva ação social espírita, seja nos ambientes mais próximos de nós como na Amazônia. A vida que se defende não pode ser somente nem a intrauterina nem a terminal, mas ela em todos os quadrantes e contextos: vida, e vida com qualidade!

Marcelo Henrique é graduado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (1993), e em Administração Pública (2021), pela Universidade Federal de Santa Catarina(UFSC). Especialista em Administração Pública e Auditoria, pela Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC (1994). Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí – Univali (2002). Está cursando Doutorado em Administração, na Universidade Federal de Santa Catarina(UFSC).
Coordenador do Grupo Espiritismo COM Kardec
https://www.comkardec.net.br/

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