"O general Tomás, novo comandante do Exército, precisará fechar as portas para a politização e coibir a indisciplina", diz Aldo Fornazieri
Se é verdade que o Exército (e as Forças Armadas) não aderiu aos movimentos golpistas de Bolsonaro e à tentativa de golpe de 8 de janeiro, não deixa de ser verdade que o golpismo de militares da ativa e da reserva contaminou o Exército como instituição e o mergulhou numa crise. As Forças Armadas como um todo vinham elevando sua reputação e prestígio no período pós redemocratização pela sua conduta institucional e legalista. No entanto, o governo Bolsonaro provocou graves danos e avarias à imagem positiva do Exército. Isto não ocorreu sem o concurso de militares impatriotas, sem honra e sem moral que se enredaram na ideologia extremista e golpista do bolsonarismo, investindo contra a Constituição e contra o Estado de Direito.
A crise do Exército se expressa por duas linhas divergentes no seu interior: uma linha legalista e, outra, golpista/intervencionista. A rigor, a linha golpista começou a se evidenciar antes do governo Bolsonaro. O golpe contra Dilma, que teve Michel Temer como eminência parda, ocorreu com o aval de generais da ativa e da reserva. Alguns historiadores indicam que ao menos os generais Villas Boas, Mourão e Etchegoyen, participaram de articulações visando o golpe-impeachment. Se essas articulações ocorreram nas sombras, o famoso tuíte de Villas Boas contra o habeas corpus a Lula foi explícito.
Paradoxalmente, a linha legalista do Exército voltou ao seu comando com o general Edson Pujol, primeiro comandante no governo Bolsonaro. Com a sua demissão, os comandantes seguintes se vergaram às exigências do presidente e, se não apoiaram abertamente, a sua omissão permitiu que o golpismo e a politização arrombassem as portas dos quarteis.
Outros episódios, contudo, permitiram aguda perda de reputação do Exército: a desastrada gestão de Pazuello na Saúde, o envolvimento de militares em esquemas de corrupção, a ignorância demonstrada por militares que participaram na comissão de fiscalização das urnas, os episódios de fabricação de cloroquina e compra de próteses penianas e Viagra. Bolsonaro, junto com outros militares, apresentaram uma imagem de grosseria e de incompetência.
Agressão mais profunda à imagem do Exército ocorreu com os acampamentos bolsonaristas nas áreas de segurança dos quarteis, particularmente aquele acampamento no QG de Brasília. A violência praticada pelos acampados no dia 12 de dezembro, a tentativa de explosão de bombas nas proximidades ou no próprio Aeroporto e a informação de que as bombas circularam no acampamento protegido no QG, somados aos violentos ataques de depredação e destruição dos prédios dos três poderes da República associaram o Exército à desordem, ao caos e ao terrorismo.
A demissão do general Arruda do comando do Exército, pelas fraturas e desconfianças disciplinares, foi necessária, mas não suficiente. Não basta que os órgãos policiais e a Justiça investiguem e punam os militares da ativa que se envolveram nos atos golpistas. Esses militares violaram códigos disciplinares militares. O Exército precisa ser proativo na investigação e na punição desses militares. O general Tomás, novo comandante do Exército, precisará agir com urgência e eficácia para reconstruir níveis de confiança, fechar as portas para a politização e coibir a indisciplina. Somente resultados positivos nessas demandas poderão restabelecer a reputação do Exército.
Mas o problema do golpismo vai além desse freio de rearrumação do Exército. É necessário reformular o Artigo 142 da Constituição. Ele se tornou o cavalo de Tróia para as hordas golpistas adentrem as muralhas da democracia brasileira, visando destruí-la. Tornou-se o principal estandarte dos furiosos e enlouquecidos “soldados” marchando em nome de “Deus, da pátria e da família” para reduzir a nossa débil e adoentada democracia a escombros.
A reforma implica em extirpar do Artigo 142 a função tutelar das Forças Armadas definida na garantia dos poderes constitucionais e da lei e da ordem. Na mesma linha, é necessário reformar o parágrafo 6º do Artigo 144 da Constituição que estabelece que as políticas militares e os corpos de bombeiros militares são “forças auxiliares e reserva do Exército”. As forças policiais têm funções de natureza substancialmente distintas das funções do Exército e não tem sentido doutrinário e funcional que sejam forças auxiliares e reserva do mesmo.
Um dos grandes acertos do governo Lula na tentativa de golpe de 8 de janeiro consistiu em não decretar a GLO (Decreto de Garantia da Lei e da Ordem), optando pela intervenção na Segurança Pública de Brasília. O descarte da GLO foi um acerto não só porque enfraqueceria Lula e fortaleceria o Exército. O acerto se deveu também por uma questão doutrinária. A democracia não pode comportar o uso das Forças Amadas para dirimir conflitos de natureza política ou para resolver questões de segurança pública. Nesse sentido, torna-se necessário regulamentar e restringir o alcance da GLO, por exemplo, para desastres ambientais ou para grandes eventos.
Torna-se necessário, ainda, adotar medidas democratizadoras em outras frentes para prevenir golpe. O Ministério da Defesa precisa de uma regulamentação no mesmo sentido do Secretário de Defesa dos Estados Unidos. O ministro deve ser civil. Militares de alta patente só poderiam ocupar essa função após um longo período de quarentena. No caso dos Estados Unidos são dez anos após a passagem para a reserva.
A quarentena é necessária ainda para que miliares, policiais, juízes, procuradores possam ser candidatos. A quarentena não deveria ser menos do que três anos. Viu-se o dano que a politização e a partidarização de militares e policiais da ativa, visando candidaturas, produzem. Viu-se o dano que o juiz e procuradores da Lava Jato produziram visando promover suas ambições políticas.
Por fim, é necessário que se abra um amplo debate envolvendo os militares, os três poderes, as universidades, os especialistas, os empresários e os movimentos sociais visando a elaboração de uma Política Nacional de Defesa. O desfecho final desse debate deve consistir na aprovação, pelo Congresso Nacional, da Política Nacional de Defesa.
Os objetivos estratégicos e geopolíticos, a organização das Forças Armadas, a indústria e a pesquisa militar, assim como seus aspectos formativos e instrumentais, devem derivar dessa Política Nacional de Defesa. Nas democracias é prorrogativa do poder Legislativo, do Congresso Nacional, definir a política de Defesa. Sem essa definição não há uma efetiva República na qual, por princípio, o poder militar se subordina ao poder civil, que deve ser expressão da soberania do povo.
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