O presidente da República deve esclarecer a população sobre os graves crimes perpetrados por inúmeros agentes das Forças Armadas
Denunciar e punir os crimes militares são questões estratégicas para o país
por Roberto Bitencourt da Silva
É imprescindível para a sociedade brasileira a severa punição dos militares envolvidos em diversas práticas abomináveis e criminosas, que ganharam os holofotes desde o governo Bolsonaro. Um governo de feições verde oliva e defensor de projetos propriamente ultraliberais, neocoloniais, burgueses e antinacionais.
Com milhares de oficiais da ativa e reserva espalhados em diferentes ministérios e agências do governo federal – tais como a Saúde, a Funai etc. –, via de regra dotados de formação incompatível com as atribuições dos cargos que exerceram, tais servidores públicos deixaram um devastador legado para a nação. Esse legado não foi obra do acaso. Tratou-se de uma escolha deliberada do então chefe de Estado e do seu padrinho mais próximo, a saber, a alta hierarquia militar.
O aludido legado veio à luz durante a pandemia do coronavírus, com o atraso nas aquisições de vacinas e com a prescrição de soluções medicamentosas pretensamente mágicas e sem respaldo científico. Almejava-se desmerecer as preocupações dos profissionais da área médica com o contágio e forjar um ambiente de suposta normalidade, que empurrasse o conjunto dos trabalhadores o mais rápido possível ao retorno das atividades (“lucros empresariais acima de tudo!”). Mais recentemente, a opinião pública deparou-se com a estarrecedora desproteção dos grupos indígenas ianomâmis, submetidos à violência de garimpeiros em suas próprias terras e à subnutrição decorrente da contaminação dos seus rios.
Os terríveis resultados de ambas as situações atrozes podem ser tipificados como fatos decorrentes de um verdadeiro genocídio, na medida em que, por ação ou omissão das autoridades, diferentes segmentos da sociedade brasileira (distribuídos por etnia, idade ou condição socioeconômica) foram levados à vulnerabilidade maior a doenças, ao desamparo e a ameaças à integridade física dos seus integrantes. Metodicamente abandonados ao definhamento e à morte. O Estatuto de Roma, que normatiza penalidades em torno de diversas violações dos direitos humanos, é claro a esse respeito.
Há poucas semanas, a depredação das sedes dos três poderes da República, em Brasília, foi fomentada, acolhida e endossada pela cúpula militar. Esta abrigou em seus quintais, por dois meses ou mais, uma horda de civis e militares, vagabundos e empresários, fanáticos, pseudorreligiosos e policiais, reacionários e entreguistas, toda espécie de gente disposta a desrespeitar a soberania do voto e a cumprir com os reais desígnios dos seus patrocinadores, especialmente verdes-olivas: ajustar os “termos da rendição” (da saída do governo), de sorte a demonstrar força para o mundo civil e, sobretudo, para o governo Lula, exibir capacidade de pressão e intimidação contra qualquer ato que fira as aspirações da caserna.
Nesse sentido, é estratégico que o governo do presidente Lula se proponha a denunciar a série de crimes e abusos cometidos pelos militares, especialmente pela cadeia de comando. Lula já manifestou aqui e acolá reticências sobre as Forças Armadas. Como chefe do Poder Executivo não é investido de maiores poderes de punição sobre os militares, cabendo ao Judiciário e à esfera corporativa judicial dos militares adoção de investigações e sanções.
Mas, o presidente da República deve esclarecer a população sobre os graves crimes perpetrados por inúmeros agentes das Forças Armadas. Usar o sistema de rádio e televisão a que tem a prerrogativa de acesso. Expor a perversidade e o caráter lesa pátria e antidemocrático das ações da cúpula militar.
Lula precisa contribuir para que a questão militar seja enquadrada na agenda pública sob ângulos radicalmente distintos da panaceia “pacificadora”, preconizada pelos reacionários conglomerados de mídia. Isto é, a velha e requentada fórmula da transação por cima, anistiando barbaridades criminosas. A única alternativa a isso é a politização e a convocação do povo, especialmente dos trabalhadores, estudantes e estratos das classes médias.
O governo precisa politizar, esclarecer e se apoiar na maioria do povo brasileiro a respeito do assunto, tendo em vista a implementação de necessárias reformas nas instituições militares, tais como: gestar um novo perfil de formação de oficiais, que sejam comprometidos com os postulados democráticos e dos direitos humanos, com uma doutrina estratégica anti-imperialista etc.
Trata-se de um imperativo da época, de modo a fazer com que o país abandone a tutela de uma alta hierarquia militar que detesta o povo e a nossa cultura, que denota uma visão elitista da sociedade e é francamente submissa aos interesses espoliativos do grande capital e do imperialismo ianque. Igualmente visando a reconfiguração das Forças Armadas, de maneira que elas deixem de ser exclusivos instrumentos das burguesias internas e gringas e sirvam, isto sim, aos interesses maiores do país. Esse debate precisa ser enfrentado e incentivado.
Os militares têm convivido com um considerável desgaste público da imagem. Fenômeno que se intensificou, em particular, nas últimas semanas. Importa ponderar que a credibilidade é um artigo muito importante nas relações de força e poder. Ela projeta respeito e reconhecimento, neutralizando a voz das críticas e dos críticos circunstanciais.
Quando a credibilidade se encontra em erosão, os sujeitos políticos coletivos e individuais que pretendam imprimir mudanças institucionais, sociais e econômicas significativas, não podem abdicar da iniciativa de colocar em evidência a ilegitimidade de atos, ações e comportamentos daqueles que são considerados sujeitos antagônicos ao seu projeto de mudança. Portanto, em muitas décadas, esse é o momento mais favorável para que a sociedade brasileira (notadamente os de baixo) discuta o papel das instituições militares e as coloque sob o rígido império da lei e do atendimento da soberania nacional.
A questão militar é estratégica a longo prazo, para que a sociedade brasileira tenha a possibilidade de definir os seus projetos e caminhos, sem a constante sombra ameaçadora de Forças Armadas encapsuladas em interesses corporativos e antinacionais. Porém, o tema é estratégico também no curto prazo e para o atual governo. Não custa lembrar que Lula foi eleito sob o signo da expectativa de um Brasil menos desumano e desigual, dotado de menor subserviência na arena das relações internacionais, especialmente aos ditames do Tio Sam. Objetivos modestos, mas que deram contornos à campanha do atual presidente.
Sem atacar de frente o problema militar, desconsiderando o apoio da mobilização popular, restará ao governo Lula a dependência do amparo das organizações Globo, dos governos de países imperialistas (França, EUA etc.), dos bancos, dos fundos de investimentos, das oligarquias políticas tradicionais etc. No momento, não sem ruídos e pequenas tensões, são esses os aliados táticos de ocasião. Aliados que repudiaram ou não apoiaram, ao menos ostensivamente, o vandalismo golpista instigado pela cúpula militar.
Contudo, questões como a geração de emprego, a reforma tributária progressiva, os aumentos do salário mínimo e dos investimentos públicos para aquecimento do consumo, assim como a temática da recuperação estatizante e nacionalizante da Petrobras, tenderão a ser deixadas de lado. Outros temas, como a contribuição brasileira para a moldagem de um mundo multipolar (menos sujeito ao império do dólar), não terão fôlego para seguir adiante. Isso porque todos esses alvos afetam frontalmente os interesses de poder e lucratividade dos atores em que Lula ora está a escorar o seu governo.
O problema militar é estratégico, requer respostas contundentes e inadiáveis, também para abrir a senda do equacionamento de outros grandes desafios nacionais. Para isso forçoso é que o governo aja em prol da mudança na correlação de forças sociais e no desenho do debate público, como também na ressignificação das perspectivas que prevalecem no país sobre economia, direitos coletivos e cenário global. Interferir na (re)construção do ambiente político e não apenas a ele se adaptar.
Roberto Bitencourt da Silva – historiador e cientista político.
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