sexta-feira, 1 de março de 2019

A Deforma da previdência ao lado da ideia de sacrifício, por Lays Bárbara Vieira Morais, mestre em Ciência Política e em Sociologia pela Universidade Federal de Goiás (UFG)


A reforma da previdência ao lado da ideia de sacrifício



 "O que mais tem se visto é o discurso oficial do governo de “fim de privilégios”. Um discurso que não fala da parcela do orçamento federal que vai para pagamento de juros, dívida pública, isenções e benefícios dados a grandes multinacionais, a necessidade de taxação de grandes fortunas e etc. Mas, tem algo nesse discurso que vem sendo dia-a-dia perpetuado: a ideia de um sacrifício necessário. Todos precisam se sacrificar um pouco para salvar o país. Esse é nosso dever com a pátria. Intuitivamente, até pode fazer sentido, mas quando refletimos melhor e criticamente sobre esse discurso, podemos perceber alguns aspectos interessantes."

Do site Justificando:


Terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

A reforma da previdência ao lado da ideia de sacrifício


Imagem: O sacrifício do patriarca Abraham
Nos últimos dias, desde que foi apresentada a nova proposta para a previdência, esse tema não sai da grande mídia e das redes sociais. Apesar de uma crítica aqui e outra ali, a grande mídia vem, no mínimo, se mantendo neutra (ou não expondo aspectos relevantes). O que mais tem se visto é o discurso oficial do governo de “fim de privilégios”. Um discurso que não fala da parcela do orçamento federal que vai para pagamento de juros, dívida pública, isenções e benefícios dados a grandes multinacionais, a necessidade de taxação de grandes fortunas e etc. Mas, tem algo nesse discurso que vem sendo dia-a-dia perpetuado: a ideia de um sacrifício necessário. Todos precisam se sacrificar um pouco para salvar o país. Esse é nosso dever com a pátria. Intuitivamente, até pode fazer sentido, mas quando refletimos melhor e criticamente sobre esse discurso, podemos perceber alguns aspectos interessantes.
Para isso, vamos ter em mente que não só o cenário político, mas também o econômico deve ser pautado. Afinal, ambos sempre andaram de mãos dadas. O que de fato temos é que o neoliberalismo é um conjunto de suposições políticas que favorecem as corporações, como inseparáveis da globalização e do imperialismo, como uma forma específica de governabilidade e como uma nova forma de Estado. A liberdade, ao invés da justiça ou da igualdade, se tornou o valor político fundamental. O neoliberalismo atribui ao Estado um papel ativo na defesa dos mercados, na produção de sujeitos e condições para os mercados, mesmo que em termos ideais ele pense que o Estado não deve intervir nas atividades do mercado (a famosa lógica da “mão invisível”).
E é por tudo isso que acaba sendo inevitável a associação com a questão da governabilidade. Segundo a professora Jodi Dean[1], tendo como base o pensamento foucaultiano, existiria duas diferenças fundamentais entre aquele velho liberalismo e o nosso neoliberalismo: primeiro, o neoliberalismo inverte o modelo inicial do Estado como um princípio externo limitante que supervisiona o mercado para fazer com que o mercado forme o princípio regulador subjacente ao Estado. Segundo, o neoliberalismo se baseia em uma noção diferente do indivíduo ou sujeito. Para os liberais clássicos, como Thomas Hobbes e John Locke, o indivíduo livre e racional é o próprio fundamento do Estado, aquele que fundamenta e limita o governo legítimo.
Os neoliberais, em vez disso, veem o sujeito como agindo e reagindo de acordo com vários incentivos e desincentivos econômicos. Aqui, o objetivo da governança é construir sujeitos responsáveis ​​cuja qualidade moral é baseada no fato de que eles racionalmente avaliam os custos e benefícios de um certo ato em oposição a outros atos alternativos. Ou seja, o neoliberalismo não confia em condições preexistentes, ele cria novas formas, reformatando a vida social e política em termos de seu ideal de competição mercadologia.
Ao combater a hegemonia predominante anteriormente, o keynesianismo, nos círculos acadêmicos e políticos, os neoliberais lentamente reuniram o apoio das elites. Um elemento crucial desse sucesso foi o estabelecimento de instituições para além do Estado: uma rede internacional de fundações, institutos, centros de pesquisa, publicações, etc; que desenvolveram, empacotaram e impulsionaram a nova doutrina. Posteriormente, no fim da década de 1970 e início de 1980, a ideologia neoliberal passou a dominar a política econômica, após sua experiência bem-sucedida no Chile do ditador Pinochet.
As décadas precedentes foram seu auge, onde diversos Estados em todo o mundo adotaram sua política de privatização, desregulamentação e financeirização. No final do século XX, o neoliberalismo havia substituído o keynesianismo como a abordagem reinante na economia, no Estado, no desenvolvimento e até mesmo na subjetividade[2]. Prevalece o senso comum da ideologia neoliberal: não há outra alternativa. E essa ideologia neoliberal baseia-se em um suposto livre comércio. Tal fantasia promete que um mercado sem restrições beneficia a todos. Isso se daria porque os mercados são as formas mais eficientes de garantir que todos façam o que lhes for mais adequado e consigam tudo o que desejam. A fantasia prega que todos vão ganhar. De acordo com os estudos de Jodi Dean, para garantir que todos venham a ganhar, o mercado tem que ser liberado, livre de restrições, liberado para realizar o seu e todo o nosso potencial. Como agentes racionais livres armados com toda a informação, as pessoas farão as escolhas certas, mas, novamente, somente enquanto nada influenciar ou restringir essas escolhas, desde que nada atrapalhe a liberdade do mercado.
Como base nessas colocações, e nos estudos desenvolvidos pelo também professor Slavoj Zizek, Dean analisa de forma mais profunda essa tal fantasia. O primeiro ponto a ser colocado é que a ela não está escondida simplesmente sob declarações e políticas oficiais. Não é como algum tipo de truque ou ilusão enganando as massas, pobres e ingênuas. Pelo contrário, a fantasia é manifesta em nossas práticas reais (o que fazemos diariamente); e essas práticas são a localização das crenças ideológicas.
A ideologia neoliberal se concentra no comércio, isto é, nas práticas de troca. As trocas comuns de pessoas comuns, tomadas e entendidas como decisões racionais e sob condições ideais. Segundo a autora supracitada, quando os neoliberais falam em livre comércio, a maioria de nós tende a imaginar essas trocas individuais. Podemos pensar em pequenos agricultores e empresas locais ou em como é bom escolher o que queremos ou não levar do supermercado. Apenas raramente, e com grande esforço, se foca em bancos, cartões de crédito, dívidas, troca de moeda, seguradoras, etc. O fantástico apelo do neoliberalismo deriva, em parte, do modo como as trocas individuais substituem os fluxos globais do capital.
O segundo aspecto é que a fantasia responde à pergunta “O que sou do outro?”. Nos Estados Unidos, por exemplo, a resposta típica é “livre”, uma nação livre. O neoliberalismo afirma e amplia essa auto compreensão em termos de liberdade. Caminhando lado-a-lado a isso temos a ideia de que nós (pelo menos em termos de Ocidente) somos aqueles conectados uns aos outros através da troca, livre para fazermos como quisermos, e com a internet somos ainda mais livres para comprar qualquer coisa de qualquer lugar a qualquer hora.
Em terceiro lugar, existiria um impasse original que essa fantasia oculta: ela abrange a persistência do fracasso do mercado, das desigualdades estruturais, da proeminência dos monopólios, do privilégio dos contratos sem licitação, da violência da privatização e a redistribuição nada justa da riqueza. O livre comércio sustenta, portanto, no nível da fantasia, o que procura evitar no nível da realidade; ou seja, livre comércio entre iguais, participantes iguais com oportunidades iguais para estabelecer as regras do jogo, informações de acesso, distribuição e assim por diante.
Mas, paradoxalmente, o livre comércio é invocado como um mantra. Por um lado, o pensamento neoliberal enfatiza a necessidade de competição. Por outro lado, ele se apega à noção de que todos são vencedores, mas essa é uma noção que está em desacordo com a concorrência, porque nesta sempre existe vencedores, de um lado, e perdedores, do outro. É o que a gente vê, em termos de economia global, na relação entre os chamados “países do Terceiro Mundo”, ou “em desenvolvimento”, e os países do chamado “Primeiro Mundo”.
Em quarto lugar: a fantasia constrói uma cena em que o gozo, a realização do que queremos (do que queremos comprar, por exemplo), mas do qual somos privados muitas das vezes, se concentra no outro que a roubou de nós. O insight trazido por Zizek aqui é que uma das maneiras pelas quais a fantasia mantém nosso desejo intacto como desejo é nos dizer por que não o cumprimos: o livre comércio encena a cena do gozo roubado como uma promessa de cumprimento deferido quando realizamos nossas trocas no mercado, nossas necessidades e desejos serão atendidos.
Essa é a própria definição de um mercado perfeito. Ele atenderá às necessidades e desejos de todos. Em um sentido bruto, os mercados financeiros, de ações, títulos e commodities são apostas nesse futuro. Poderíamos também incluir aqui hipotecas, empréstimos, cartões de crédito, todos os tipos de instrumentos financeiros que dependem de uma presunção de satisfação futura. A fantasia do livre comércio nos diz que todos ganham e, se alguém perde, isso ocorreu por que alguém trapaceou, não jogou pelas regras. Dentro do quadro da fantasia, a solução para essa falha é a supervisão.
Ou seja, o governo pode e deve garantir que os outros não estejam lá fora, roubando nosso prazer, os frutos de nosso trabalho, através de seus negócios desonestos e injustos. Assim, novamente, temos outro paradoxo: o governo pode se envolver excessivamente, pode ultrapassar seus limites e impedir o “livre comércio”. Embora pareça estar em tensão com a fantasia de manter o comércio livre, a noção de supervisão sustenta o prazer roubado de uma maneira que reforça a influência da fantasia. Isso gera um deslocamento de ansiedades para longe das brutalidades e incertezas do mercado neoliberal e do Estado como instituição.
Muito mais do que interligar um conjunto de promessas conflitantes e contraditórias de prazer e de explicações para a falta desse prazer, as formações ideológicas funcionam para proibir, permitir, dirigir e obter prazer. Consequentemente, a categoria de desfrute é um acréscimo importante à teoria da ideologia na medida em que acentua a maneira como uma formação ideológica é mais do que um conjunto de significados, imagens e os efeitos acumulados de práticas dispersas. Ou seja, a ideologia toma conta do sujeito até mesmo no aspecto do prazer. Isso vincula os sujeitos a certos conjuntos de relações, estruturando e confinando seus pensamentos e ações, de modo a ligá-los a padrões aparentemente inescapáveis de dominação, padrões que eles bem podem reconhecer como dominação, mas que continuam seguindo.
Assim, para ter sucesso, o neoliberalismo depende da ocupação política organizada e da direção dos governos, do uso dos aparatos burocráticos, legais e de segurança do Estado de forma a beneficiar os interesses corporativos e financeiros. Ao mesmo tempo, para manter sua posição dominante, o neoliberalismo, como uma formação ideológica, tem de oferecer algo às pessoas cujas vidas são moldadas. Tem que estruturar suas expectativas e desejos para que pareça certo e permaneça tudo como está.
Tal conjuntura amplifica as pressões sobre e para o indivíduo. Essas pressões são, por um lado, políticas: o indivíduo é chamado a expressar sua opinião, falar por si próprio, envolver-se. Ele é informado de que ele, sozinho, pode fazer a diferença. E essas pressões também são econômicas: mesmo na ausência de mobilidade social significativa, o indivíduo é colocado como o determinante mais significativo de sucesso ou fracasso (a velha lógica da meritocracia). As pressões também são psicológicas: a intensificação informacional e a aceleração temporal saturam nossa atenção aos níveis patológicos, a exemplo dos cada vez mais comuns casos de depressão, que acabam por funcionar como uma espécie de defesa, já que a patologia real seria a própria forma individual.
O indivíduo é patológico no sentido de ser incompatível com seu ambiente, incapaz de responder às pressões que encontra sem dor, sacrifício ou violência. Vivemos em uma época em que se sobrecarrega o indivíduo de responsabilidades e expectativas, isentando o Estado de suas funções sociais. Sacrificamos conquistas e bem-estar em prol de uma suposta ideia de nação, de uma suposta moral e lógica religiosa onde o sacrifício de todos resulta em uma benção, um prêmio. Mas, esse sacrifício é realmente necessário? A melhor solução é realmente essa? E, o mais importante: o sacrifício é realmente coletivo? Ele é realmente igual para todas as partes envolvidas?
Lays Bárbara Vieira Morais é mestre em Ciência Política e em Sociologia pela Universidade Federal de Goiás (UFG), especialista em Comunicação e Multimídia pela PUC-GO, Jornalista pela PUC-GO, professora de Sociologia no Instituto Federal de Goiás (câmpus Anápolis) e integrante do coletivo de mídia independente Jornal Metamorfose.

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