terça-feira, 7 de janeiro de 2020

O clã miliciano ou os “pequenos” grandes ladrões no poder (e seus ministros que os encobrem), por Benedito Tadeu César


Bolsonaro e seus filhos, que constituem um ente uno, são oportunistas que se beneficiaram da descrença na política construída pela grande mídia e, principalmente, por setores do Judiciário e do Ministério Público.


Os “pequenos” grandes ladrões

por Benedito Tadeu César, no GGN

Durante a primeira metade do ano de 2014, diversas vezes afirmei que Bolsonaro não romperia a barreira dos 18% da preferência do eleitorado e que ele poderia até retirar sua candidatura à Presidência da República, pois sem mandato legislativo sua carreira política se encerraria. Errei porque não percebi que a postura antipolítica em construção pela grande mídia e o consequente desalento já estivam tão fortes e tão disseminados na população e no eleitorado brasileiros.
Bolsonaro e seus filhos, que constituem um ente uno, são oportunistas que se beneficiaram da descrença na política construída pela grande mídia e, principalmente, por setores do Judiciário e do Ministério Público. As elites tradicionais brasileiras, agrupadas nos partidos de direita, de centro direita e de centro, na maioria das entidades de representação empresariais, em think tanks e por meio de novas formas de manifestações de rua, criaram o clima de opinião propício à emergência de um outsider que aparentasse se contrapor a “tudo isso que está aí”. Elas não conseguiram antever a dimensão do monstro que criaram e que quase as devorou, mas, frente a seu crescimento eleitoral, rapidamente se uniram a ele para implementar as medidas econômicas de seu interesse.
Da descrença e do desalento construídos emergiu uma família de pequenos ladrões do patrimônio público, inexpressiva politicamente e que sobrevivia havia décadas no baixo clero das casas legislativas nas quais exerciam mandatos, à custa do desvio do salário de suas assessorias por meio de “rachadinhas”, apoiando-se e sendo apoiada, numa relação simbiótica, pelas milícias que dominam as “comunidades” pobres das periferias do estado do Rio de Janeiro. Um apoio mútuo que envolvia (e continua envolvendo) também os remanescentes da ala mais truculenta da ditadura civil, militar e midiática de 1964/85, incluindo alguns de seus mais doentios torturadores.
Ladrões vulgares, em busca unicamente de pequenos ganhos (além das “rachadinhas”, as pescarias ilegais em área de preservação ambiental, a utilização de helicóptero da FAB para o transporte de familiares e as despesas no cartão de crédito da Presidência da República ao menos três vezes superiores à média dos dois últimos presidentes, são outros exemplos emblemáticos), tornaram-se os agentes ideais para executar o projeto das elites econômicas e políticas tradicionais brasileiras.
Ralé da política, com jeito “popular”, simples e grotesco, machista, misógina, racista, preconceituosa, ignorante e esperta, a família Bolsonaro, com seu patriarca à frente, atraiu a simpatia e canalizou a empatia das hordas de desassistidos nas periferias urbanas acolhidas pelas igrejas neopentecostais, dos setores mais arrivistas das classes médias, de amplos setores dos novos “empreendedores” e da quase totalidade do empresariado brasileiro.
Os Bolsonaro e sua trupe, à qual se agregaram integrantes de uma oficialidade militar de visão estreita (cuja concepção de soberania resume-se à defesa do território nacional e que está convencida de sua irrelevância frente aos grandes blocos armados mundiais e, por isso, perfila-se incontinente aos EUA) vieram para ficar no poder – este é seu único e grande objetivo. Servem aos interesses de uma elite cujo único projeto, salvo poucas e honrosas exceções, são os ganhos imediatos, sem projeto de Nação e sem projeto de desenvolvimento de médio e longo prazos.
Adepta da rapinagem, é uma elite também ela formada por “pequenos ladrões”, ávidos por se apropriarem dos “pequenos” ganhos que o capitalismo periférico lhes propicia. Convencidas de sua incapacidade de disputar espaço internacional e acomodadas confortavelmente na posição que historicamente se auto atribuíram de fornecedoras de commodities para os grandes centros de desenvolvimento tecnológico, aos quais elas nunca almejaram se equiparar, as elites brasileiras encontraram em Bolsonaro, Mourão e seu time os escudos necessários para a execução de suas políticas e a manutenção de seus objetivos.
São todos “pequenos ladrões”: bolsonaros, seus agregados e elites nativas tradicionais. Pequenos não nos seus ganhos imorais, no volume daquilo de que se apropriam ou nos prejuízos que provocam. São pequenos como o são os medíocres e os mesquinhos. Pequenos nos seus objetivos e em suas aspirações frente ao mundo e à competição internacional. Pequenos na posição a que se acomodam e à qual submetem o país e sua gente em relação ao mundo e ao desenvolvimento.
Vieram para destruir, como eles mesmos declaram. Seu objetivo é a destruição de qualquer resquício de soberania e de desenvolvimento social e econômico nacional. Por isso o desmonte das políticas sociais, dos direitos e das instituições públicas, das garantias constitucionais, das universidades, da investigação científica, das artes, da cultura e da educação, das indústrias (notadamente as com maior agregação e desenvolvimento de tecnologia, como a Petrobras, a Eletrobrás, a Embraer, a indústria naval e as grandes construtoras). Para que desenvolver conhecimento, que promove ganhos de produtividade e aumentos salariais (além de maior competitividade), se para obter seus “pequenos” ganhos no cenário internacional basta manter a mão de obra inculta e abundante, o desemprego alto e os salários baixos?
Nossas elites tradicionais têm vocação subalterna. A elas bastam seus “pequenos” grandes ganhos. Pouco lhes importam o país e sua gente. Pouco lhes importa o futuro coletivo. Bastam-lhes os ganhos imediatos. Temos uma elite extrativista, que promove e mantém há séculos algo que se pode definir como um tipo de colonialismo interno. Somos uma nação historicamente colonizada e espoliada por sua própria elite. Uma nação mantida conscientemente “subdesenvolvida” e “atrasada”, porque essa condição é suficiente para que nossas elites obtenham os ganhos imediatos que lhes asseguram riqueza e bem-estar.
Sempre exportamos muitas das commodities mais valiosas do comércio mundial: pau brasil, açúcar, ouro e diamantes, borracha, café, soja e, agora, petróleo bruto. Enquanto nossas elites se enriqueceram e continuam se enriquecendo, a grande maioria do nosso povo se manteve e se mantém paupérrima. Sempre estivemos entre as nações com os maiores PIBs mundiais, mas sempre nos mantivemos entre aquelas com as maiores concentrações de riqueza no mundo – hoje somos o segundo país em desigualdade social e a miséria retomou o processo histórico de crescimento, que fora momentaneamente rompido nas duas décadas iniciais dos anos 2000.
Bonifácio de Andrade, Vargas, Jango, Lula e Dilma, lideranças que tentaram por caminhos diversos e não sem erros romper com essa tradição histórica, foram submetidos a provações semelhantes. Bonifácio, não obstante tenha sido cognominado como o Patriarca da Independência, caiu logo em desgraça por idealizar e lutar por um país desenvolvido e soberano, tendo sido perseguido e exilado pelo imperador Pedro I.
Vargas, que iniciou o salto de industrialização e a legislação social do país, foi deposto e depois induzido ao suicídio, logo após ter criado a Petrobras e o monopólio estatal do petróleo. Jango, deposto por ter ousado propor “reformas de base” que modernizariam o capitalismo nacional, promoveriam desenvolvimento, competitividade e melhor distribuição de riquezas, morreu no exílio em situação até hoje não suficientemente esclarecida.
Lula, que promoveu a saída da miséria absoluta de 28 milhões de pessoas e a ascensão social de outras 40 milhões, que iniciou um novo projeto de integração do hemisfério sul e em cujo governo o país retomou o processo de crescimento econômico interrompido desde os anos de 1980, não obstante tenha terminado seu mandato com mais de 80% de aprovação da opinião pública, foi condenado e preso por mais de um ano sob a acusação de corrupção, foi impedido de se candidatar a novo mandato presidencial e hoje ainda responde a dezenas de processos e corre risco de ser novamente preso. Dilma, mesmo que tenha governado durante o período de menor desemprego já registrado na história do Brasil e tentado, ainda que sem sucesso, a retomada do processo de industrialização do país, teve seu mandato cassado e foi alvo de chacotas da grande mídia e do empresariado que ela pretendeu incentivar e induzir ao crescimento.
Os “pequenos” grandes ladrões que nos governam há séculos e que, nas poucas e rápidas vezes em que estiveram fora do poder por terem sido derrotados nas urnas, não hesitaram em empregar métodos fundados na violência e na fraude para retomar ao mando, só poderão ser afastados do poder por um intenso e difícil esforço coletivo de articulação de amplos e diversificados segmentos sociais prejudicados com o modelo concentrador, os quais se encontram fragmentados e não organizados.
Hoje, os ovos das serpentes de um novo e ainda mais nefasto tipo de fascismo, que sequer defende as riquezas nacionais, já eclodiram. Os seus ataques, que começaram na grande imprensa e tomaram as redes sociais, as conversas e reuniões de amigos e familiares, além de se incrustarem em grande parte das instituições públicas constitucionalmente destinadas a garantir a democracia, os direitos e os deveres dos cidadãos e dos governantes, já se espalharam pelas ruas e começam a espocar em bombas e atentados.
No último ano, aumentou exponencialmente a violência contra as mulheres, os negros e os pobres, o assassinato de lideranças rurais e indígenas e o esbulho de suas terras, bem como a truculência policial e sua impunidade. Espalharam-se por diferentes estados do país as milícias formadas por policiais e marginais e seu controle sobre as áreas desassistidas da população. A valer as revelações da história universal, a escalada do terror depois de iniciada tende sempre a aumentar.
Interromper o avanço desse novo fascismo só será possível com a união das organizações da sociedade civil comprometidas com a defesa da democracia e a reconstrução nacional, sejam elas partidos políticos da esquerda, do centro e da direita não adepta da barbárie, sejam sindicatos, associações, comitês e agrupamentos de cidadãos. Para isso, precisarão se refazer internamente e se reagrupar, minimizando suas diferenças e valorizando suas semelhanças e, ainda mais importante, buscando conquistar as amplas parcelas da população ainda hoje encantadas pelos brados nazifascistas dos “pequenos” grandes ladrões que nos governam.
Terão que fazer tudo isso construindo um novo projeto de Nação, capaz de atrair e abrigar as mais amplas camadas da população e, ao mesmo tempo, despertar uma identidade nacional brasileira (não xenófoba) hoje inexistente nas nossas classes médias e altas. A “revolução” que nos cabe lutar e vencer no Brasil (e no mundo) é a da reafirmação da democracia e da sua radicalização, cujo caminho é longo e exige capacidade de mobilização, diálogo e negociação. *Cientista político, professor da UFRGS (aposentado), integrante das coordenações do Comitê em Defesa da Democracia e do Estado Democrático de Direito e do M3D – Movimento Democracia, Diálogo e Diversidade.
btcesar@gmail.com

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