Peça 1 – o país dos arrivistas

Não é a pandemia nem Bolsonaro que mostram o país dos arrivistas,  nesse universo rocambolesco cinzelado pelos chamados formadores de opinião, com seus deuses e semideuses, políticos, celebridades, intelectuais.
O personagem central da alma nacional sempre foi o arrivista, o sujeito capaz de cavalgar todas as ondas e jamais ser cobrado pela incoerência porque a métrica de julgamento público é o sucesso. A coerência que conta é a de saber performar – termo de mercado para definir o bom desempenho do investidor -, mudar de posição na hora certa para não morrer com o mico preto. A métrica é o sucesso, não a coerência.
Os personagens centrais desses tempos de libação política ilustrariam qualquer obra de Lima Barreto, Machado de Assis.
É o Ministro do STF dono de uma banca humilde, que atendia principalmente sindicatos, e que de repente, à medida que mudava o discurso e a prática jurídica, passou a atender grandes clientes. E nada lhe foi cobrado.
É o jornalista que inaugurou o discurso de ódio e que se tornou, depois, campeão da democracia. É a família inteira que surfou na onda da Lava Jato e que se tornou, depois, baluarte dos direitos individuais. E nada lhes foi cobrado.
É o constitucionalista que passou a defender a ideia de que a Constituição é uma instituição movediça, que deve ser alterada de acordo com o clamor das ruas.
Não importa a falta de coerência, o desapego a valores. Desde que a nova postura atenda aos interesses de grupos, toda incoerência anterior será perdoada. Vale para a esquerda, vale para a direita.

Peça 2 – a importância da coerência

Não de trate o respeito à coerência como mero moralismo. Em uma sociedade, é requisito fundamental para a consolidação de valores.
Sem essa cobrança, o sujeito pode abusar da incoerência hoje porque, amanhã, todos os pecados serão perdoados, desde que tenha senso de oportunidade para mudar de posição e cavalgar as novas ondas. Isto é, saber performar.
O princípio da Justiça de Transição para punir crimes da ditadura – “para que não se esqueça, para que não se repita” – é justamente a ideia de punir os erros do passado, para impedir a repetição no futuro.
É a coerência que permite a consolidação de valores e sua não repetição. Quem quiser enveredar pela incoerência sempre fica com a espada de Dâmocles da condenação da opinião pública pairando sobre seu pescoço.
Uma sociedade que abdica da coerência está sujeita a qualquer movimento das ondas. O defensor da política de ódio de ontem, torna-se defensor da democracia de hoje, e voltará à defesa do direito penal do inimigo amanhã, se a cobrança de coerência não for a métrica adotada.

Peça 3 – o arrivismo na história

O arrivismo é uma tradição ancestral brasileira, um fenômeno profundamente incrustado na própria formação política e cultural do país. Uma análise das grandes figuras da nacionalidade comprova a tese.
Não houve personagem mais execrável que Rui Barbosa. Como Ministro da Fazenda foi capaz de jogar a jovem República em uma crise quase terminal – o Encilhamento – para enriquecer jovens financistas arrivistas, de quem se tornaria sócio. Como advogado, traiu sua cliente – sinha Junqueira -, mudou de lado e espalhou o Fake News de que ela encomendava assassinatos ao jagunço Dioguinho. Todas as baixarias de Rui foram varridas para debaixo do tapete da história, para permitir a consolidação da imagem do “águia de Haia”,  o “civilista”, o homem que “ foi para a Inglaterra ensinar inglês”.
José Bonifácio, o patriarca da Independência, para mim era o Benjamin Franklin brasileiro, o sábio iluminista que conduziu o jovem imperador rumo ao seu destino manifesto. Agora, a biografia do patriarca, por Mary Del Priore revela o mesmo destino manifesto dos grandes construtores da nacionalidade: o arrivismo, a busca da boquinha.
Onde estão as raízes desse arrivismo? Provavelmente no modelo de estado português, na origem das grandes fortunas tradicionais, a partir das sesmarias. É o país em que os posseiros do século 19 se tornaram quatrocentões de hoje, sempre submetidos à única medida de julgamento: o sucesso pessoal.
Qual a diferença deles do velho da Havan ou do dono do Madero? Apenas o lustro social trazido pelas gerações posteriores.

Peça 3 – mídia e coerência

Não se atribua a incoerência ao público. Mesmo o homem comum cobra coerência das pessoas. É essa cobrança que inibe o arrivismo, que causa vergonha e, assim, dificulta as mudanças de posição e garante um mínimo de comportamento ético dos entes públicos.
Mas, para cobrar coerência, há a necessidade da informação isenta. E esse produto não é oferecido pela mídia.
Analisem-se políticos que se tornaram referência na redemocratização, especialmente José Serra, Fernando Henrique Cardoso e Aloysio Nunes.
Ser contra o PT faz parte do jogo político. Já abdicar de princípios é uma questão de caráter, é a marca do arrivista.
Quando os ventos mudaram, a social democracia de José Serra cedeu lugar ao candidato raivoso, que acusava a adversária de “matar criancinhas” e que aparecia na campanha eleitoral entrando na casa humilde, abrindo um exemplar da Bíblia e rezando com a família.
Como chanceler, tornou-se o Ministro que tentou comprar votos de países, para interferir na escolha da presidência do Mercosul, alimentando a guerra fria contra a Venezuela Só parou quando a Lava Jato chegou nas contas da família, provocando problemas de coluna.
O mesmo fez Aloysio Nunes, assumindo o Ministério das Relações Exteriores e atropelando regras históricas de não-intervenção em problemas internos de outros países. Antes disso, participou da vergonhosa pantomima de ir com o ínclito Aécio Neves à Venezuela, para cobrar democracia.
Agora, Aloysio é convidado a assinar um manifesto de ex-chanceleres ao lado de pessoas sérias, como Celso Lafer, Rubens Recupero, Celso Amorim
No entanto, ambos – Serra e Aloysio – alimentaram a guerra fria que, depois, veio resultar em Ernesto, o idiota. Mas qual a diferença? Apenas o fato de Ernesto ser idiota.

Peça 4 – o caso Sérgio Moro

Dou essa volta toda para chegar ao tema central, o fenômeno midiático Sérgio Moro e o e os receios de uma volta da mídia na tarefa de incensar Moro, conforme preocupação de  Flávia Lima, ombudsman da Folha, “A imprensa e seu ídolo”, que mantém a boa tradição do trabalho de ombdusman.
Em uma análise isenta, poucas pessoas públicas sintetizam tão amplamente os defeitos de caráter – imaginando o caráter moldado por valores éticos – quanto Moro. E ninguém pode alegar ignorância em relação ao tema, depois da série sobre a #Vazajato.

Desleal com a profissão e com Bolsonaro

  • Divulgou delação (não aceita) de Antônio Palocci na véspera das eleições, para beneficiar o candidato que o convidou para ser Ministro da Justiça.
  • 02.2019 – Quando sai a reportagem do The Intercept, Bolsonaro leva Moro a estádio de futebol para expressar sua solidariedade a ele.
  • 02.2020 – 68 dias antes do pedido de demissão, esposa, e mentora política, Rosângela Moro, deu entrevista afirmando que “Moro e Bolsonaro são uma coisa só”.
  • 02.2020 – Vai a um jogo do Flamengo com Bolsonaro, para sinalizar a boa relação entre ambos.
  • 04.2020 – 22 dias antes do pedido de demissão, publica um Twitter elogiando comportamento “conciliador” de Bolsonaro.
  • 04.2020 — Pede demissão, para “preservar a biografia”, depois que Bolsonaro praticamente o induziu à demissão, ao ordenar a saída do diretor geral da PF.
  • 04.2020 — Provoca um diálogo por WhatsApp com uma afilhada de casamento e a expõe em pleno Jornal Nacional.
  • 05.2020 — Entrega à PF e ao MPF 15 meses de gravações de conversas pessoais com Bolsonaro. Mesmo sabendo quem é Bolsonaro, poucas vezes viu-se um episódio tão explícito de deslealdade. Se Bolsonaro não tivesse pressionado, as gravações continuariam guardadas e a amizade preservada.

Irregularidades no comando da PF

  • 03.2019 — Sai informação de que filho de Bolsonaro teria namorado filha de Ronnie Lessa, o assassino de Marielle Franco. Logo depois, um delegado da PF é enviado ao Rio Grande do Norte para interrogar Ronnie Lessa. O contato de Bolsonaro com a PF era através de Moro. Bolsonaro afirma que o delegado produziu um relatório pessoal para ele. Obviamente não era sobre namoricos dos filhos.
  • 11.2019 – enviou a PF para pressionar porteiro a mudar depoimento que envolvia Bolsonaro com o assassino de Marielle Franco
  • 02.20 Moro determina que PF investigue Lula, com base na Lei de Segurança Nacional, por críticas a Bolsonaro. Recua após críticas generalizadas.

Abuso de autoridade

Genocídio

Segundo informações da imprensa, Moro só entregou à PF as mensagens trocadas com Bolsonaro nos últimos 15 dias.

Peça 5 – o exercício da hipocrisia

E aí se chega no xeque mate.
Nos últimos tempos, desde que o fator Bolsonaro se tornou um risco para o país, a mídia iniciou um penoso processo de recuperação da legitimidade. Passou a defender direitos humanos, direitos sociais, a pluralidade de opiniões, até o SUS (Sistema Único de Saúde). Saudou a solidariedade, o humanismo, a liberdade de imprensa, tentando se reabilitar de tempos obscuros, em que todos os arbítrios foram tolerados, especialmente os da Lava Jato.
Na época, repórteres festejaram as vitórias da Lava Jato, em um dos episódios mais vergonhosos da história do jornalismo, assim como “Cidinho bola-nossa”, o bandeirinha mineiro que torcia pelo Atlético. Não se importaram com a figura do “juiz ladrão” (no sentido futebolístico), com os atropelos óbvios dos códigos e da constituição. Mais que isso, surfaram no sucesso da Lava Jato, sendo valorizados em suas redações, alguns escrevendo livros, palestrando, tornando-se conhecidos nacionalmente.
E agora? Aliás, e depois da #Vazajato? Alguns deles se tornaram democratas de nascimento. Mas como ficará a avaliação sobre Moro? Ele representa, hoje em dia, o oposto da democracia, dos direitos, do cumprimento da lei, valores que a imprensa pretende recuperar.
É cristalino como água que Moro prevaricou, foi cúmplice de Bolsonaro em vários abusos cometidos – e denunciados hoje em dia pela mídia -, é adepto da necropolítica, impôs um genocídio nos presídios. Sua personalidade manipuladora, vingativa, já foi suficientemente exposta pela #Vazajato e pelos últimos episódios.
Como é que ficamos? Os temores da ombudsman da Folha têm razão de ser? Vai se aceitar o arrivismo da família Moro, o deslumbramento de novos-ricos no Olimpo das celebridades?
Não vão conseguir. O país já descobriu a face macilenta, o lado mais tenebroso do fenômeno Moro. Agora aguarda a autocrítica desses arautos do lavajatismo, que virá no mesmo dia em que houver a autocrítica que cobram do PT.