sexta-feira, 5 de abril de 2019

A pedagogia espírita e os massacres pelo Brasil e pelo mundo, por Dora Incontri





O processo civilizatório é justamente aquele que trabalha, transforma, educa e sublima essas pulsões, sejam elas de outras vidas ou não

Do Jornal GGN e Espíritas Progressistas


Minha mais engajada militância na vida tem sida a ideia de uma pedagogia espírita, que não é uma proposta de pedagogia doutrinante e sectária do espiritismo (ao invés trabalhamos com a inter-religiosidade e o pluralismo). Essa corrente é herdeira de grandes educadores como Comenius, Roussseau, Pestalozzi e do próprio Rivail/Kardec, que foi discípulo de Pestalozzi e pedagogo durante 30 anos na França. É prima irmã de pedagogias como a de Montessori, Freinet, Paulo Freire e outros; é uma proposta emancipatória, que pretende renovar a educação pelo mais fundo de si mesma, levando em conta seu contexto e sua interação social.
Qualquer um, desses grandes educadores citados acima, poderia dar boas respostas para questões pedagógicas, sociais e existenciais que enfrentamos no mundo contemporâneo. Um mundo esvaziado de sentido, violento e desumanizado.
Quando nos defrontamos com as tragédias ocorridas nessa semana, no Brasil e na Nova Zelândia, precisamos recorrer à filosofia, à psicanálise, à espiritualidade, para acharmos algumas causas, que são muitas, complexas e entrelaçadas, e pensarmos possibilidades de prevenção, e não nos desesperarmos totalmente da humanidade.
Sim, na superfície aqui no Brasil, temos o presidente eleito, apontando arminhas com crianças e estimulando a violência e propondo o armamento da população. Isso é grave e agrava a situação. Mas está longe de ser a causa profunda. Aliás, justamente devemos nos perguntar porque uma tal pessoa, que tanta apologia faz da violência e da tortura, atraiu tantos jovens e adolescentes, que aderiram ao seu discurso. As mesmas obscuridades profundas do inconsciente das massas que levam a se identificar com tais personagens (não só a do presidente eleito, mas de seu guru e de seu entorno familiar e político) são as que levam um menino a sair atirando contra crianças e professores.
Todos temos o nosso lado sombrio. Para a visão reencarnacionista, certamente já participamos de crimes, guerras, massacres – basta ver a história humana. Se nós somos os que fizemos essa história milênios, séculos, décadas atrás, então trazemos toda essa violência em nós. Mas mesmo que não aceitemos a ideia da reencarnação, nosso inconsciente, formado pelo atavismo da espécie e pelos recalques da infância, também tem pulsões destrutivas, como bem percebeu Freud e que se não forem sublimadas, podem estourar a qualquer momento, seja no indivíduo, seja nas massas.
O processo civilizatório é justamente aquele que trabalha, transforma, educa e sublima essas pulsões, sejam elas de outras vidas ou não.
O que se dá é que de tempos em tempos na história humana, esgarçamos o verniz da cultura e há um estímulo geral para os monstros virem à tona.
Quem recebeu uma educação amorosa, quem teve condições sociais de se firmar como um sujeito autônomo, com boa autoestima, quem teve acesso ao melhor que há da cultura humana, terá mais recursos para se manter no nível da humanidade e não escorregar para a brutalidade.
Mas, sabemos que mesmo uma nação educada, culta e supostamente civilizada, como a alemã, que teve um Bach e um Beethoven, um Goethe e um Bertold Brecht, resvalou para a mais funda barbárie, com vasta participação popular, trucidando milhões de pessoas, com um discurso totalmente sem nexo. Eu que vivi na Alemanha, por três vezes, sempre tive essa perplexidade diante do nazismo e agora sou obrigada a enxergar a barbárie ressurgir entre o meu próprio povo.
Aí é que entram minhas reflexões pedagógicas, aliás, iluminadas pelos estudos que tenho do assunto, mas também pela própria experiência de ter vivido e ido a escola, na Alemanha.
A educação teria de ser um processo de desenvolvimento pleno, acolhedor. Todos precisariam de amor inteiro na infância. Winnicott já estudou o quanto a privação afetiva nos primeiros anos da criança causa buracos internos, que levam à loucura e à delinquência. Esse amor necessário não é algo abstrato – é comida, teto, roupa, ambiente saudável. Mas também é toque, colo, carinho, aconchego, escuta, presença protetora e confiável do adulto.
Mais adiante, a criança deveria ser educada não apenas considerando-se seu desenvolvimento cognitivo. E já isso é muito mal feito mesmo nas melhores escolas, imagine-se na sucateada escola pública brasileira. Por que mal feito? Porque a escola deveria ser estimulante, criativa, verde, afetiva, sem muros, com diálogo e democracia e não com regras impostas e chatice extrema. Mas além dessa parte intelectiva, a criança precisaria ter uma educação terapêutica. Aprender a analisar, expressar e trabalhar as próprias emoções. Não se sentir sozinha, rejeitada, cheia de medos e frustrações, sem possibilidade de diálogo e socorro. E nesse caso, ainda pior, na constituição do menino, que é chamado a ser o forte, o herói, o violento, o macho predador… muitas vezes pelo pai ou pelas referências masculinas que tem em torno de si ou pela ausência delas.
Mesmo quando a educação atinge parâmetros de civilização e cultura refinadas, como foi o caso da Alemanha e como é o caso de nossas elites brasileiras (será mesmo?), a ausência de um trabalho com as emoções e com a afetividade, pode deflagrar a abertura para o sombrio que há em nós.
Obviamente que todas essas condições ideais de uma educação integral, formadora do ser e transformadora do mundo, dependem de concretas condições econômicas e sociais. Os pais dessas crianças, os professores desses alunos também precisariam ter sido cuidados, amados, e terem condições dignas de trabalho, alimentação e moradia.
Então, tudo se conecta nas causas dessas tragédias: a estrutura capitalista desigual e injusta; a falta de perspectivas, de sentido existencial; a sociedade que só oferece a possibilidade de consumo como compensação do vazio, mas essa possibilidade não chega às periferias do mundo; a falta de tempo e espaço para cuidar do outro, da criança, do velho, do amigo, porque o trabalho é extenuante, a sobrevivência indigna… E não mencionei aqui a indústria de armas, que se alimenta da morte, lucra com isso e não tem nenhum interesse em promover a paz.
Então… para tudo! Precisamos mudar todas as coisas. E talvez, essas grandes e terríveis tragédias em toda a parte, em que vemos a Deep Web alimentar os instintos mais ferozes e primitivos, em que há crianças e adolescentes matando, se matando e sendo mortos… nos mostrem o quanto esse planeta está torto, o quanto está tudo errado e o quanto precisamos correr para mudar o que está posto.
Nessa reflexão, a perspectiva da eternidade e das múltiplas vidas conforta um pouco, mas não nos deve desacelerar na luta por uma sociedade mais humana. Mesmo porque, mais à frente, reencontraremos a própria história que tivermos ajudado a fazer.

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