sexta-feira, 12 de abril de 2019

Nos 80 tiros disparados contra o carro de um inocente, não nos esqueçamos que os soldados apenas cumpriram sua vocação histórica desde Canudos: atirar para matar os "inimigos" e "indesejados" das elites. Por Fábio de Oliveira Ribeiro


Uma distopia judiciária maquiavélico-erasmiana tropical, por Fabio de Oliveira Ribeiro

Nos 80 tiros disparados contra o carro de um inocente, não nos esqueçamos que os soldados apenas cumpriram sua vocação histórica

Do GGN:


Erasmo de Roterdã
Por Fabio de Oliveira Ribeiro
Os jornalistas e comentaristas ficaram horrorizados com o fato de uma guarnição do Exército ter disparado 80 tiros contra o carro de um inocente desarmado. Entretanto, não podemos esquecer que os soldados apenas cumpriram sua vocação histórica. O incidente no Rio de Janeiro é uma repetição em escala microscópica do que ocorreu em Canudos. Isso pode acontecer… disse o Ministro da Justiça de Bolsonaro. A frase de Sérgio Moro serviria como uma luva para descrever o emprego de um canhão Withworth 32 para dizimar civis numa cidade nordestina que não passava de um amontoado de taperas de pau-a-pique.
Quando entrei em contato pela primeira vez com a obra de Erasmo de Rotterdam eu era estudante de Direito e fiquei irritado e fascinado ao ler o fragmento que reproduzo abaixo:
“Pretendem os advogados levar a palma sobre todos os eruditos e fazem um grande conceito da sua arte. Ora, para vos ser franco, a sua profissão é, em última análise, um trabalho de Sísifo. Com efeito, eles fazem uma porção de leis que não chegam a conclusão alguma. Que são o digesto, as pandectas, o código? Um amontoado de comentários, de glosas, de citações. Com toda essa mixórdia, fazem crer ao vulgo que, de todas as ciências, a sua é a que requer o mais sublime e laborioso engenho. E, como sempre se acha mais belo o que é difícil, resulta que os tolos têm em alto conceito essa ciência.” (Erasmo de Rotterdam, Elogio da Loucura, págs. 92 e 93)
O estudo da obra de Maquiavel me ajudou a apreciar a ironia refinada e cheia de profundidade histórica contida nas palavras Erasmo de Rotterdam.
“Muitos exemplos demostram, a quem consulta as memórias da Antiguidade, como é difícil a um povo habituado a viver sob as leis de um príncipe conservar a liberdade, quando algum acidente feliz lhe permite ganhá-la.” (Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio, editora UNB, 3ª edição, Brasília, 1994, p. 69)
“Afirmo, portanto, que os Estados que, depois de conquistados, são anexados a um antigo Estado de quem os conquistou ou são da mesma província e língua deste ou não o são. Se forem, será fácil conservá-los, principalmente se não estiverem habituados a ser livres. Para possuí-los com segurança, basta, extinguir a linhagem do príncipe que os dominava, porque, quanto às demais coisas, mantendo-se as antigas condições e não havendo disparidade de costumes, podem os homens viver tranquilamente, como fizeram de fato a Borgonha, a Bretanha, a Gasconha e a Normandia, que há tanto tempo pertencem à França e, tendo costumes semelhantes, conquanto have alguma diferença de língua, podem facilmente ajustar-se. Quem deseja conservar suas conquistas deve ter em mente duas precauções: uma é extinguir a família do antigo príncipe; outra é não alterar suas leis e impostos. Desse modo, em tempo muito breve elas se integrarão ao principado antigo, formando um único corpo.” (O príncipe, Maquiavel, Martins Fontes, São Paulo, 2004, p. 8/9)
No fundo, Maquiavel e Erasmo dissertaram sobre o mesmo assunto: a inércia das instituições políticas/jurídicas. O diplomata florentino trata o tema sob a perspectiva de quem pretende conquistar ou conquistou o poder. O escritor nascido em Rotterdam aborda a mesma questão da perspectiva daqueles que estão sob o jugo de um poder cuja natureza imutável ou quase imutável compromete sua atividade quer ele tenha ou não mudado de mãos.
É mais fácil compreender ambos olhando para a história recente do Brasil. Qualquer jurista sério é capaz de perceber que o Impeachment de Dilma Rousseff foi uma fraude jurídica. Todos os presidentes antes dela deram pedaladas fiscais e nenhum deles foi molestado pelo Congresso Nacional.
Após remover a presidenta petista do poder, os congressistas autorizaram Michel Temer a fazer exatamente aquilo que justificou a deposição dela. A Justiça inocentou Dilma Rousseff da acusação criminal, mas isso só ocorreu depois que o golpe de estado havia sido consumado. Em menos de 100 dias Jair Bolsonaro deu uma pedalada fiscal de 606 bilhões de reais da Previdência.
O Impeachment sem crime de responsabilidade configura uma grave e evidente violação da Constituição Federal. Todavia, nem mesmo o Judiciário foi capaz de fazer cumprir e fazer cumprir o princípio constitucional para preservar o mandato popular outorgado à Dilma Rousseff.
As pedaladas fiscais obviamente não explicam a queda de Dilma Rousseff. O que faz isso é o fato dela ter se recusado a dar aumento salarial aos juízes. Inconformados, eles passaram a conspirar contra a soberania popular junto com os parlamentares que queriam remover Dilma do poder em virtude dela ter contingenciado verbas orçamentárias que seriam usadas para realizar as obras que eles desejavam para ampliar ou conservar seus currais eleitorais. A melhor descrição do golpe foi dada pelo senador Romero Jucá que se referiu ao Impeachment como fruto de um acordo “com o Supremo com tudo”.
A única norma que realmente tem valor é a Lei da Inércia Institucional referida por Maquiavel e ironizada por Erasmo de Rotterdam. Criado para preservar a hierarquia colonial em troca de privilégios senhoriais para os juízes, o Judiciário brasileiro não existe para distribuir Justiça. Isso ficou bem claro durante o golpe de 2016, episódio que se caracterizou tanto pela conivência ativa do STF (que se recusou a interromper os trabalhos do Congresso Nacional e depois simplesmente não julgou o Mandado de Segurança interposto contra o Impeachment pelo advogado da presidenta deposta) quanto pela militância de vários juízes na internet e nas ruas em favor da deposição da presidenta da república.
Não foi por acaso que os mesmos juízes que acusaram Dilma Rousseff de ser corrupta se aninharam carinhosamente no colo de Michel Temer. Apesar de ser comprovadamente corrupto, a primeira coisa que o vice-presidente fez foi justamente aumentar os salários dos juízes. Ao cumprir se submeter à Lei da Inércia Institucional, Michel Temer foi discretamente autorizado pelos juízes a destruir todas as instituições que possibilitavam o combate à corrupção.
Enquanto as instituições brasileiras voltavam a ser o que sempre foram, os juristas ficaram debatendo a legitimidade ou não do golpe, ou seja, realizando um trabalho de Sísifo que apenas comprova como é difícil a um povo habituado a viver sob as leis de um príncipe [a corrupção] conservar a liberdade. Os 80 tiros disparados num inocente desarmado completam a distopia brasileira. Quantos tiros serão disparados pelos soldados na próxima vez? 180 ou 280?


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