terça-feira, 30 de abril de 2019

DCM: Neoliberalismo e autoritarismo são “uma história de amor”, ou seja, as duas faces de uma mesma realidade obscura, diz o juiz Rubens R.R. Cassara do TJ do Rio





Neoliberalismo e autoritarismo. (Arte Revista CULT/Reprodução)

DCM. - Rubens R.R. Cassara, que é juiz de Direito do TJRJ e escritor, escreve na revista Cult sobre neoliberalismo e autoritarismo. “Há algo de novo na forma como se exerce o poder em todo o mundo. Paradoxalmente, esse ‘novo’ remete ao passado, na medida em que associado tanto a discursos ultraconservadores e xenófobos quanto a práticas inquisitoriais e oligárquicas. A principal característica dessa nova forma de exercício do poder é a ausência de limites, o que pode ser observado com a emergência de experiências autoritárias a partir da chegada ao poder político de pessoas como Trump, Salvini, Orban, Erdogan e Bolsonaro.

Se entendermos a democracia como um horizonte que aponta para uma sociedade autônoma (em que a pessoas não precisam apostar no autoritarismo por medo de exercer a liberdade), com deliberações coletivas (com efetiva participação popular na tomada das decisões políticas) e voltada à concretização dos direitos e garantias fundamentais (o que só é possível com limites rígidos ao exercício do poder), não é possível afastar a hipótese de que essa deriva autoritária é o resultado da estratégia de culpar a democracia pelos efeitos das políticas neoliberais iniciadas no Chile após o golpe de Estado que derrubou Salvador Allende, e que se expandiram para todo o mundo, com especial destaque para a Inglaterra de Thatcher e os Estados Unidos de Reagan”.
O magistrado desenvolve o raciocínio: “Segundo essa hipótese, a destruição do projeto de bem-estar social, bem como a desarticulação dos coletivos que atuavam na vida política (sindicatos, comunidades eclesiais de base etc.), somado ao ressentimento e à cólera produzida pela perda de direitos dos trabalhadores e de prestígio social pela classe média, teria levado à opção por soluções autoritárias.

Da mesma maneira que na década de 1930 o fascismo foi apresentado como uma reação ao liberalismo, o ultra-autoritarismo é vendido ao cidadão como uma resposta à atual crise. Esse autoritarismo, que recorre a soluções que podem ser identificadas como tipicamente fascistas, surge da manipulação de sentimentos compreensíveis e promete o retorno a um passado mítico de paz e segurança.

Tem-se nessa ilusão por modelos autoritários uma manifestação do que Bauman chamou de ‘retrotopia’, a nostalgia por um passado que nunca existiu, mas que permite ‘resgatar’ formas de identidade (nacional, comunitária, raça, classe, gênero etc.) e velhos preconceitos. O que há de novo, e revela a engenhosidade do modelo, é que essa nova forma de governabilidade que surge da crise produzida pelos efeitos do neoliberalismo (desagregação dos laços sociais, demonização da política, potencialização da concorrência/rivalidade, construção de inimigos, desestruturação dos serviços públicos etc.) promete responder a essa crise com medidas que não interferem no projeto neoliberal e, portanto, não alcançam a causa da cólera e do ressentimento da população. Para iludir e mistificar, criam-se inimigos imaginários (os direitos humanos, a democracia representativa, a degradação moral, a depravação sexual, a diversidade, as minorias, Lula, Kirchner, Sócrates, etc.) que são apresentados como os responsáveis pelos problemas concretos suportados pela população”.
Ele pontua qual é o regime hoje: “Disfarçado, o neoliberalismo revela-se plural e plástico. Pode-se, então, falar em um novo neoliberalismo, ‘ultra-autoritário’, que não só se alimenta da crise (e gera crises para esse fim), como também fabrica e persegue ‘culpados’ pelos danos causados pela própria lógica neoliberal. Se, por um lado, o novo neoliberalismo (no Brasil, com Bolsonaro; nos EUA, com Trump) surge como uma “resposta” (populista, que manipula afetos produzidos na fronteira entre ‘nós, os insatisfeitos’ e ‘eles, os causadores da insatisfação’) aos danos perversos gerados pelo neoliberalismo ‘clássico’ (no Brasil de FHC, nos EUA de Clinton), por outro, continua a servir aos mesmos objetivos, mais precisamente: a busca de lucros ilimitados, a ‘financeirização’ do mundo, a destruição dos obstáculos ao poder econômico e o controle dos indesejáveis (pobres e inimigos políticos do neoliberalismo).

Em resumo, com ou sem verniz democrático, o neoliberalismo, que se revela adaptável a qualquer ideologia (inclusive ao fascismo), sustenta e atende à lógica do capitalismo global”.
E completa, abordando o caso no nosso país: “No Brasil, é interessante olhar o exemplo do nacionalismo de Bolsonaro, que não tem qualquer traço de nacionalismo econômico. Se no plano discursivo, o ‘Brasil (estaria) acima de tudo’, no campo econômico o mercado revela-se um Deus acima de todos. Ainda sobre o fake nacionalism típico desse novo neoliberalismo, basta pensar no que se fez com as reservas brasileiras de pré-sal e na retomada dos processos de privatização. Tem-se, nesse campo, uma estranha combinação de apoio irrestrito ao capitalismo global e discurso nacionalista contra inimigos imaginários (comunistas, bolivarianos, turismo gay, etc.). Em apertada síntese, utiliza-se o discurso nacionalista para reforçar o neoliberalismo e melhor atender aos interesses do poder econômico”.

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