terça-feira, 30 de abril de 2019

Sete obras para entender golpes de Estado no Brasil, por Caio do Valle Souza



Confira livros e filmes que abordam o conturbado passado político do país, da instauração da República ao golpe de 1964 - e entenda melhor o que está acontecendo agora

do Calle 2

Sete obras para entender golpes de Estado no Brasil

por Caio do Valle Souza 

Fonte: GGN

Um espectro ronda o Brasil: o espectro do golpismo. Neste curto mas já conturbado 2016, o maior país da América Latina, uma nação multicultural de mais de 200 milhões de almas, se vê às voltas com uma de suas facetas menos bem resolvidas. Afinal, somos um gigante continental que nunca soube lidar muito pacificamente com as próprias crises, sejam elas políticas, sociais ou econômicas.

Basta lembrarmos que o nosso atual regime republicano deriva de uma ruptura, de uma quebra constitucional. A República brasileira é fruto de um golpe. Diferentemente de outras nações latino-americanas, cujo advento do republicanismo marcou o corte dos laços de subserviência à realeza ibérica, por aqui um governo imperial, “filhote” da Coroa lusa, presidiu as seis primeiras décadas de um Estado independente (de 1822 a 1889). Nosso tardio sistema republicano, portanto, não precisou “inventar” a soberania de uma nação; apenas se apropriou, pela força, da que fora criada pela monarquia.

A queda do Império pouco mais de um ano após a abolição definitiva da escravatura no país – o último das Américas a extingui-la, em 1888! – ajuda a compreendermos o caráter elitista da conjuração que depôs dom Pedro II e sua sucessora, a princesa Isabel. Embora o governo estivesse em frangalhos em função de uma série de problemas políticos e financeiros, a popularidade do velho monarca não deixava de vicejar entre os mais pobres, muitos dos quais ex-escravizados.
Mas setores poderosos, descontentes com os rumos da corte, souberam aproveitar a crise para dar a cartada que alteraria as regras do jogo em seu favor. Uma parte do Exército, apoiada por grandes cafeicultores paulistas (que agora cobravam a fatura pelo fim da escravidão, base do acúmulo de sua riqueza ao longo do século 19), se apropriou do movimento em prol do republicanismo, que defendia mais prerrogativas para as províncias, e, numa rebelião sem o apoio do povo, decretou o fim do regime monárquico – que não ofereceu resistência. Desta forma, o Brasil embarcava na sua aventura republicana em novembro de 1889.
Foi o primeiro de uma série de golpes e tentativas de golpes que o país experimentaria desde então, destacando-se os de 1930 e 1964. Um traço comum a todos eles é a calculadíssima distância do povo com a qual foram urdidos. Quem sabe se pela própria natureza da gênese das instituições federalistas, a recorrência às rupturas drásticas transformou-se num expediente quase rotineiro da vida pública do país, e que parece ainda não ter sido superado. Alguém já disse que o Brasil não é para amadores. Entender os processos que desembocaram nas transformações abruptas da política nacional requer estudos exaustivos a respeito das estruturas e conjunturas por trás dos movimentos da nossa sociedade. Isso não impede que algumas obras, entre livros e filmes, ficcionais ou não, colaborem no sentido de tentarmos compreender esses momentos com um pouco mais de profundidade, seja porque foram criadas por quem os vivenciou seja porque resultados de pesquisas minuciosas. A lista a seguir tem a intenção de fornecer algum subsídio nesse sentido.
SOBRE O GOLPE DE 1889 E SUAS CONSEQUÊNCIAS
1. Livro “Esaú e Jacó” (Machado de Assis)
Joaquim Maria Machado de Assis tinha 50 anos quando a República foi instaurada “na marra” no país. Já gozava de imenso prestígio como escritor – as Memórias póstumas de Brás Cubas haviam ganhado o público no início da década de 1880 –, além de permanecer um observador arguto da sociedade ao seu redor. Em 1904, publicou Esaú e Jacó, o penúltimo de seus oito romances.
A obra é permeada de referências à transição do regime monárquico para o republicano, bem como ao período falimentar e final do Império (cujo estopim, para alguns, se dá com a promulgação da Lei do Ventre Livre, em 1871), sem deixar de ilustrar aspectos da escravidão e da Abolição. Pardo, neto de escravos alforriados, o autor registrou da seguinte forma o que os protagonistas, os belicosos gêmeos Pedro e Paulo – um, monarquista, o outro, republicano –, ponderavam a respeito da emancipação: “Estavam então longe um do outro, mas a opinião uniu-os. A diferença única entre eles dizia respeito à significação da reforma, que para Pedro era um ato de justiça, e para Paulo era o início da revolução.”
2. Livro “Triste fim de Policarpo Quaresma” (Lima Barreto)
Assim como Machado de Assis, o exímio escritor Afonso Henriques de Lima Barreto, que publicou nas duas primeiras décadas do século 20, era pardo. Ao contrário do Bruxo do Cosme Velho, não obteve o devido reconhecimento em vida, embora hoje seja considerado um dos maiores nomes de toda a literatura brasileira.
Em Triste fim de Policarpo Quaresma, saído do prelo em 1915, Lima Barreto narra a história de um nacionalista que, excitado com as possibilidades do novo governo republicano (a história se passa no início dos anos 1890), idealiza diversos e mirabolantes planos para que o Brasil enfim alce à sua merecida “grandeza”. Sonhador e bem-intencionado, o major Quaresma, um pequeno funcionário do Arsenal de Guerra, busca em vão fazer seus projetos chegarem às altas instâncias do poder central. O mote serve de pretexto para escancarar a hipocrisia da sociedade da época (em especial, a elite carioca). Os militares republicanos, mentores do golpe de 1889, são retratados como sanguessugas burocráticas e pouquíssimo interessados no progresso da pátria.
Na obra, vemos o marechal Floriano Peixoto – o segundo presidente do Brasil, elevado a essa condição após ter colaborado no complô para a renúncia de Deodoro em 1891, num golpe dentro do golpe – como um ditador apático e cruel, capaz de tudo, inclusive de ordenar a morte de inocentes, para a decepção e o horror de Quaresma.
Sobre a instalação da República, Lima Barreto escreveria mais tarde: “No fundo, o que se deu em 15 de novembro foi a queda do partido liberal e a subida do conservador, sobretudo da parte mais retrógrada dele, os escravocratas de quatro costados.” Impossível um relato mais contundente sobre a violência, a impopularidade e as intenções dos golpistas de 1889.
DO GOLPE DE 1930 AO ‘QUASE GOLPE’ DE 1954
‎‎
3. Filme “Revolução de 1930” (Sylvio Back)
Lançado em 1980, ainda sob a égide da última ditadura civil-militar que governou o Brasil, o documentário de Sylvio Back busca desconstruir a ideia de que o movimento que culminou no golpe de 1930 tenha tido um caráter popular. Havia muito a presidência já estava nas mãos de civis, mas o acesso ao posto era restritíssimo, assim como o direito de votar, culminando numa política de sucessão que alternava líderes políticos de São Paulo e Minas Gerais.
Por meio do depoimento dos historiadores Edgard Carone e Boris Fausto, Revolução de 1930 reproduz a tensão social vivida no país nas décadas de 1910 e, principalmente, 1920, decênios pontilhados de insurgências operárias e tenentistas. A repressão governamental às rebeliões dos operários, que lutavam por melhores condições materiais de sobrevivência, foi uma das características mais marcantes dos anos derradeiros da Primeira República.
A crise política, porém, se originou bem longe do chão da fábrica, na cúpula do poder. Já antes da derrocada econômica de 1929, que encetou a queda dos preços do café, o então presidente Washington Luís, que havia sido candidato por São Paulo, lançara um sucessor paulista ao cargo, Júlio Prestes, vencedor das eleições no início de 1930. Essa iniciativa quebrou o pacto com a oligarquia mineira, que se uniu às elites gaúchas e paraibanas para formarem uma chapa própria, com Getúlio Vargas na dianteira. Uma sucessão de fatores levaria à eclosão de uma revolta militar no Rio Grande do Sul, em Minas e na Paraíba, que se estendeu rapidamente pelo território brasileiro. Washington Luís, a poucos dias do término de seu mandato, foi forçado a depor. Ascendeu um Governo Provisório, tendo à frente Getúlio Vargas.
O golpe foi orquestrado para suplantar uma oligarquia por outra, sem formulações populares. “Não há nenhuma alteração no tratamento dos militantes operários que atuavam nos anos 1920. Quer dizer, eles continuam a ser perseguidos [pelo Governo Provisório]”, avalia, em depoimento exibido no documentário, o cientista político Paulo Sérgio Pinheiro. “A Revolução de 1930 é um dos momentos da constituição do capitalismo no Brasil, sobretudo do capitalismo industrial”, pondera Fausto.
4. Livro “Agosto” (Rubem Fonseca)
Getúlio Vargas, indica o senso comum, é das figuras políticas mais controvertidas da história brasileira. Revolucionário? Ditador? Fascista? Pai dos pobres? A dificuldade de posicioná-lo objetivamente no espectro das ideologias decorre, entre outros fatores, não só da enorme quantidade de tempo que o gaúcho de São Borja ocupou o poder central, mas da própria qualidade desse tempo. Subindo à presidência em 1930, no contexto da crise provocada pelo crack da bolsa de Nova York, Vargas atravessou, enquanto presidente, circunstâncias trágicas como a ascensão do nazismo na Alemanha, a Segunda Guerra Mundial e o estabelecimento de uma nova ordem mundial bipolar, já em marcha avançada quando de sua “entrada na história”, em 1954.
No Brasil, a situação não era mais tranquila, com o crescimento das populações urbanas e a rápida industrialização da economia. De certo modo, Getúlio jogou o jogo político para manter-se a todo o custo no poder, aplicando inclusive um golpe dentro do golpe (já vimos isso, não é?), com a instalação do seu ditatorial Estado Novo em 1937, o que o faria manter-se presidente por mais oito anos. Aparelhou a polícia, reprimiu partidos políticos, perseguiu estrangeiros, mas estendeu o voto às mulheres, tornou-o secreto e criou e ampliou direitos trabalhistas.
O Getúlio que encontramos de relance em Agosto, ficção de Rubem Fonseca publicada em 1990, é o Getúlio eleito presidente, numa volta triunfal ao topo da política do Brasil – desta vez, entretanto, conduzido pelo voto direto, democrático. É válido lembrarmos que um golpe militar (sim, outro!) destituíra Vargas em 1945. Esse Getúlio, ausente do Palácio do Catete entre 1945 e 1951, está filiado a um partido, o PTB, segue abraçado ao nacional-desenvolvimentismo e, diferentemente da sua experiência pregressa, passa a enfrentar uma oposição feroz no parlamento e uma mais incisiva ainda na imprensa.
O conservadorismo reacionário dos principais órgãos de comunicação não deu trégua para Vargas, tentando solapar as suas bases de apoio e, assim, alijá-lo do poder, o que se acentuou de maneira vertiginosa nos dias e semanas seguintes ao atentado sofrido pelo jornalista Carlos Lacerda na rua Tonelero, em Copacabana, em 5 de agosto de 1954. Dono da Tribuna da Imprensa, Lacerda era uma das principais e mais aguerridas vozes da oposição midiática. O ataque, atribuído a uma ordem de Gregório Fortunato, chefe da guarda presidencial, resultou no ferimento de Lacerda e na morte de um major da Aeronáutica, desencadeando uma grave ofensiva política contra o governo Vargas.
Forçado a renunciar ou a licenciar-se – embora contra si não pesassem acusações relacionadas ao assassinato – e já sem o apoio do Exército, que vinha ameaçando o governo com sinais sérios de insubordinação, Getúlio optou pelo suicídio, na manhã de 24 de agosto. Sua morte, acompanhada de uma carta-testamento em que acusava ser vítima de conspiradores, provocou gigantesca comoção nacional, um fato também incorporado na trama de Agosto, romance que mistura a realidade da política suja com uma ficção de gênero policial.
O GOLPE DE 1964
5. Livro “1964: A conquista do Estado – Ação política, poder e golpe de classe” (René Armand Dreifuss)
Coube a um uruguaio, o cientista político René Armand Dreifuss, ser o primeiro a investigar, numa pesquisa acadêmica desenvolvida na Grã-Bretanha, as origens e a composição administrativa das entidades civis que fomentaram o golpe de 1964, responsável pela derrubada do governo constitucional do presidente João Goulart. O resultado é o livro 1964: A conquista do Estado – Ação política, poder e golpe de classe.
Se o título, tal como o texto de sua orelha, não é tão enfático quanto poderia ser, temos de apelar para a condescendência, lembrando que a primeira edição da obra data de 1981, quando o país vivia sob a mirada translúcida do ditador João Baptista Figueiredo e seu aparato censório. O conteúdo da obra, por sua vez, redime a embalagem.
Dreifuss escarafuncha dezenas de organogramas, tabelas e correspondências para mostrar ao leitor, por A mais B, que poderosas organizações ligadas ao empresariado nacional e ao capital estrangeiro articularam forças com o propósito de desequilibrar e derrubar a gestão Goulart, o principal herdeiro político do trabalhismo de Vargas.
Na ponta da lança estavam associações sinistras como o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad). O primeiro produziu filmes, peças publicitárias e folhetos para defender os valores da “democracia”, contra o perigo iminente do “comunismo”, que estaria tomando conta do governo. Em meio aos contribuintes do Ipes encontramos grandes bancos e empresas do ramo financeiro, algumas das quais ativas até hoje. O setor industrial se mostrava igualmente bem representado, como revela a presença de Rafael Noschese, então presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), um dos quadros de destaque da entidade. O escritor Rubem Fonseca, autor do já mencionado Agosto, trabalhou como supervisor do grupo de publicações editoriais do Ipes.
6. Documentário “Jango” (Silvio Tendler)
Com narração de José Wilker e entrevistas a personalidades políticas que testemunharam de perto o golpe de 1964, entre as quais Leonel Brizola (cunhado de Jango), Afonso Arinos e Frei Betto, o documentário Jango, de Silvio Tendler, se inscreve em um momento de esperança para o Brasil, a luta pela retomada da democracia.
Lançado duas décadas após a deposição de Goulart (e oito anos depois da sua melancólica morte no exílio argentino), em plena campanha das Diretas Já, a obra retraça as jogadas no tabuleiro político que permitiram ao vice de Jânio Quadros se tornar o presidente da República, sobrevivendo a algumas tentativas de golpe anteriores à derradeira. A começar pela que tentou impedi-lo de assumir o comando do país – Jango estava em viagem oficial à República Popular da China de Mao Tsé-Tung, em agosto de 1961, quando tomou ciência da renúncia de Quadros.
Embora a Constituição assegurasse a sua posse imediata, Jango enfrentou cerrada resistência dos ministros militares, que o ameaçavam de prisão em caso de regresso ao Brasil. Temiam a proximidade de Goulart com socialistas e comunistas. A solução encontrada para apaziguar os ânimos foi, de certo modo, um golpe de “médio alcance”: a adoção do parlamentarismo, reduzindo os poderes do presidente. Um plebiscito em 1963 derrubaria, enfim, o modelo parlamentarista.
João Goulart liderou um governo que propugnava alterações estruturais de base, voltadas para o benefício da maioria menos favorecida: as reformas agrária, urbana, bancária, eleitoral, universitária e do estatuto do capital estrangeiro. Falava de desigualdade social em seus discursos, o que deixava os conservadores de cabelo em pé.
Agressivas mobilizações da direita – na imprensa, entre o empresariado, na Igreja, no Congresso –, sempre com a bênção de um Exército desafeto dos trabalhistas havia décadas, colocaram milhares de cidadãos da classe média nas ruas, em manifestações que ajudaram a minar a legitimidade do governo. Uma quartelada no último dia de março de 1964 conferiu o tiro de misericórdia no moribundo governo Jango, que terminou deportado. A República brasileira, vítima de mais um golpe, entrava na sua fase mais obscura.
 ‎‎
7. Livro “Dois irmãos” (Milton Hatoum)
Ambientado numa Manaus cosmopolita, que vibrava com sotaques, costumes e hábitos dos quatro cantos do mundo, o romance de Milton Hatoum acompanha a trajetória minguante de uma família de origem libanesa nos meados do século 20.
Se no machadiano Esaú e Jacó acompanhamos a birra de Pedro e Paulo, alegorias do Império e da República, a temática fratricida (tão antiga quanto a Bíblia) ressurge aqui atualizada nas personagens complexas de Yaqub e Omar. Gêmeos, logo na infância os dois começam a emitir sinais de uma irreconciliável divergência de personalidades.
A desavença, que culmina em xingamentos e socos, vai lentamente movendo toda a família rumo à beirada do abismo. Já em sua fase adulta, as opções políticas dos univitelinos os põem em polos opostos justo num momento de traumática inflexão da história brasileira, o golpe de 1964.
Omar, mimado e festeiro, cultiva amizade com um poeta que, no enredo, assume a posição arquetípica de perseguido do regime civil-militar que ascendia ao poder. Yaqub, metódico e estudioso, engenheiro formado em São Paulo, orgulha-se de ter sido militar durante a sua formação. Torna-se impassível diante da tomada das ruas manauares pelos tanques, ao passo que o irmão enfrenta o choque da perda do amigo.
Hatoum, que publicou Dois irmãos em 2000, demonstra que a analogia da cisão profunda entre dois irmãos segue emblemática para a representação dos períodos de intensa divergência ideológica.




Nenhum comentário:

Postar um comentário