quarta-feira, 24 de abril de 2019

Lista de Livros: A ilusão neoliberal (partes I e II) – René Passet







 ' “Tentando fazer-se passar por um pensamento, o que se impõe é uma ideologia. A ortodoxia do sistema exprime-se através do “pensamento único”, para retomar a expressão de Ignacio Ramonet: “Este moderno dogmatismo” constitui “a tradução, em termos ideológicos de pretensão universal, dos interesses de um conjunto de forças econômicas, especialmente as do capital internacional”, servidas por escribas cuja importância provém das forças ante as quais se curvam."




Editora: Record
ISBN: 978-85-0106-107-2
Tradução: Clóvis Marques
Opinião: muito bom
Páginas: 370
  
“Há dez mil anos, quando nossos ancestrais iam progressivamente deixando sua existência nômade de coletores-caçadores-pescadores para se sedentarizar, realizavam um ato de cujo alcance não suspeitavam: inauguravam uma fase da existência humana baseada na domesticação das energias. O terreno que delimitavam para nele cultivar a planta ou alimentar o animal passaria a ser sistematicamente usado como receptor e conversor de energia solar. A partir deste ato fundador, todas as grandes revoluções da humanidade – moinho de vento, moinho d’água, arado, energias fósseis ou nucleares – teriam fundamentos energéticos.2 Até a conquista do carvão, a partir do século XVIII, a radiação solar repetida ao longo dos dias e das estações o fluxo – é que vai regular as atividades humanas.
A passagem para as energias fósseis representa uma primeira ruptura: o deslocamento do fluxo para a estocagem. O carvão continua sendo energia solar, mas estocada nos vegetais das eras geológicas. Está aí, disponível, e podemos usufruir dele em função das necessidades. É uma forma de libertação: as atividades humanas libertam-se dos ritmos da natureza para obedecer apenas a si mesmas. E também uma limitação – que demorará a ser percebida, pois as reservas pareciam imensas –, já que o estoque existe em quantidade finita e não se renova; é, portanto, esgotável. A libertação dos ritmos, por outro lado, cria novos problemas de assimilação dos dejetos, que não existiam na época em que os movimentos da natureza determinavam os das atividades humanas.
A passagem para o nuclear reforça esta ruptura, pondo à disposição dos homens uma fonte de energia ligada à liberação das forças que cimentam a matéria e que não é mais de origem solar.
A virada que estamos enfrentando anuncia-se ainda mais decisiva: com o computador; a informação, a humanidade sai dessa fase de seu desenvolvimento baseada na energia para engajar-se numa outra, dominada pelas forças do imaterial. Não surpreende que o navio sacoleje e sejamos obrigados por vezes a nos agarrar ao mastro.
Estamos exatamente no meio do caminho, como ilustra a anedota contada por Michel Richonnier:3 “Ilha de Terceira, Arquipélago dos Açores. Um encontro inesperado entre Georges Pompidou e Richard Nixon. Este atravessou o Atlântico a bordo do avião presidencial Spirit of 76, modesto quadrimotor subsônico. Georges Pompidou, por sua vez, fretou o protótipo 001 do Concorde. Diante do mundo inteiro, o magnífico pássaro anglo-francês relega ao segundo plano a águia americana… Ao despedir-se de seu interlocutor, no fim do encontro dos Açores, Richard Nixon lançou a Georges Pompidou um lacônico ‘I saw your Concorde!’. E o que foi tomado então como um cumprimento certamente ocultava uma feroz ironia… Meses antes, a empresa Intel desenvolvera o primeiro microprocessador da história, verdadeiro cérebro de computador do tamanho de uma unha, componente mais espetacular de uma nova revolução tecnológica.
Este encontro ilustra a sobreposição de duas fases da evolução humana: de um lado, o apogeu – vale dizer, ao mesmo tempo, o esboço do declínio – de um crescimento de base energética, inaugurado pela máquina a vapor, prolongado pela eletricidade, o petróleo, e hoje simbolizado pela central nuclear; de outro, a emergência de uma fase dominada pelo imaterial.”
2: Em duas ocasiões, contudo, em sociedades dependentes dos fluxos energéticos, a informação revelou seu poder de transformação do mundo: em 700 antes de Jesus Cristo, na Grécia, após três mil anos de tradição oral, o surgimento do primeiro alfabeto efetivamente utilizado dava à linguagem escrita sua autonomia, possibilitando o discurso conceitual graças ao qual o pensamento humano alcançaria, na Grécia antiga, o desabrochar que conhecemos; no século XV, a impressão gráfica facultaria uma difusão do saber que constituiria outra virada da história humana.
A diferença em relação à mutação contemporânea está no fato de a humanidade sair hoje de sua fase de desenvolvimento energético, e de estarmos assistindo a uma autêntica passagem de bastão da energia para a informação como motor da evolução social.
3: Michel Richonnier. Les Métatnorphoses de l’Europe, Flammarion, Paris, 1985. Este livro, escrito para durar, ainda é atual.
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“Tentando fazer-se passar por um pensamento, o que se impõe é uma ideologia. A ortodoxia do sistema exprime-se através do “pensamento único”, para retomar a expressão de Ignacio Ramonet:19 “Este moderno dogmatismo” constitui “a tradução, em termos ideológicos de pretensão universal, dos interesses de um conjunto de forças econômicas, especialmente as do capital internacional20”, servidas por escribas cuja importância provém das forças ante as quais se curvam.
Periodicamente, os quinhentos iniciados da “seita” fundada por Friedrich von Hayek, um dos aiatolás do liberalismo contemporâneo, reúnem-se no monte Peregrino em meio a uma aura de mistério. Em Davos, sacerdotes e fiéis celebram seu ofício, explicam com segurança o porquê dos acontecimentos – como a crise do Sudeste asiático – que não haviam sido capazes de prever no ano anterior e definem as estratégias para os anos vindouros. Por algum estranho decreto da Providência, nenhum deles carece de dinheiro para fazê-lo. Em ambos os casos, a escolha da Suíça como sede do encontro – país das contas numeradas e paraíso dos capitais de todas as procedências – parece altamente simbólica.
O dogma não está inscrito em nenhum código. Não corresponde exatamente a nenhuma escola acadêmica de pensamento, embora se defina por um liberalismo duvidoso. Flutua no espírito do tempo sob a forma de afirmações constantemente reiteradas e marteladas. Esse permanente martelar faz as vezes de demonstração, tão grande é a força de afirmações que se pretendem evidentes. De tudo isto ressaltam certos temas que exprimem a ideologia das forças dominantes: “A economia leva a melhor sobre a política […] a economia situa-se [portanto] no posto de comando, uma economia livre, naturalmente, do obstáculo do social; o mercado, ídolo cuja mão invisível corrige as arestas e as disfunções do capitalismo, e especialmente os mercados financeiros, cujos sinais orientam e determinam o movimento geral da economia; a concorrência e a competitividade que estimulam e dinamizam as empresas, levando-as a uma permanente e benéfica modernização; a livre troca sem limites, fator de desenvolvimento ininterrupto do comércio e, portanto, das sociedades; a globalização tanto da produção manufaturada quanto dos fluxos financeiros; a divisão internacional do trabalho, que modera as reivindicações sindicais e reduz os custos salariais; a moeda forte, fator de estabilização; a desregulamentação; a privatização; a liberalização etc. Cada vez menos Estado, uma arbitragem constante em favor dos rendimentos do capital em detrimento daqueles do trabalho. E uma indiferença em relação ao custo ecológico.21
Livre de qualquer intervenção perturbadora, deixando que as coisas fluam espontaneamente, quaisquer que sejam as consequências – entre elas o esmagamento do fraco pelo forte – esta economia exprimiria espontaneamente as leis da natureza:22 “Não se pode fazer nada, meu amigo, e deves submeter-te.” Os sacrifícios que eles impõem e dos quais se eximem não se devem, portanto, à malícia dos homens nem aos vícios do sistema, mas à natureza das coisas. A evidência de seu “bom senso” é esmagadora: como qualquer dona-de-casa, um país não pode viver por muito tempo além de seus recursos (ninguém os ouviu jamais queixar-se de que ele viva “aquém”, o que no entanto acontece quando seu comércio exterior é superavitário), os encargos sociais e os salários pagos pelas empresas prejudicam a competitividade, e logo, também, o nível de emprego; pois é para seu próprio bem que se pede a cada um que reduza seu padrão de vida e seus “benefícios” – como dizem eles – sociais. Nada disto lhes diz respeito. Não lhes ocorreria, por exemplo, que, reduzindo em apenas 10% sua renda, aqueles dentre eles que ganham mil vezes o salário médio de seus operários financiariam a criação de cem empregos sem aumentar a massa salarial. Assim, simplesmente pelo gesto magnânimo. Em compensação, vejam como exultam quando apertam o torniquete sobre os mais humildes, em geral depois de providenciarem generosos aumentos para si próprios: é tão bom poder exibir tanto poder. “A infelicidade particular”, já dizia Pangloss, o filósofo de Voltaire, no século XVIII, “faz a felicidade geral, de modo que quanto mais infelicidades particulares houver, melhor estarão as coisas.23” Todos os Pangloss de nosso tempo o proclamam: a miséria dos humildes é o preço da prosperidade geral, e isto é muito bom. Não é culpa deles se a infelicidade particular cabe a você e a felicidade geral, a eles. As coisas são assim, e você simplesmente tirou o número errado.
Eles se dizem liberais, pois precisam de uma bandeira e de uma razão social, mas continuam nos enganando. Que “liberalismo” é este no qual uma centena de novos “senhores do mundo”, grandes capitães de transnacionais, dominam o planeta?24 Que concepção é esta segundo a qual os Estados25 devem entregar às empresas as chaves do setor público e da proteção social, acompanhadas – certamente em nome do risco inerente a toda concorrência – de garantias de lucros, sob pena de serem levados aos tribunais? Não é o liberalismo dos pais da pátria: em 1776, Adam Smith denunciava sem meias palavras a exploração do fraco pelo poderoso: “Os rendimentos e o lucro devoram os salários, e as classes superiores da nação oprimem a inferior26”; não parece Marx?”
19: Ignacio Ramonet, “La pensée unique”, Le Monde diplomatique, janeiro de 1995.
20: Suas fontes principais”, acrescenta Ignacio Ramonet. “são as grandes instituições econômicas e monetárias – Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional, Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico, Acordo Geral de Tarifas e Comércio, Comissão Europeia, Banco da França etc. – que através de seu financiamento, arregimentam a serviço de suas ideias em todo o planeta numerosos centros de pesquisa, universidades, fundações, que por sua vez apuram e disseminam a boa palavra. Esse discurso anônimo é retomado e reproduzido pelos principais órgãos de informação econômica – The Wall Street JornalFinancial TimesThe Economist, Far Eastern Economic ReviewLes Échos, Agência Reuters etc. – não raro de propriedade de grandes grupos industriais ou financeiros. Por toda parte, faculdades de ciências econômicas, jornalistas, articulistas e políticos reiteram os principais mandamentos dessas novas tábuas da lei”.]
21: Ignacio Ramonet, “La pensée unique”, art. cit.
22: Cette nouvelle loi de la gravitation, le marché”: Alain Minc, La Mondialisation heureuse, Plon, Paris, 1997.
23: Voltaire, Candide ou I’optimisme, cap. IV.
24: Ver o relatório sobre investimentos internacionais em 1998 publicado pela Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (CNUCED), 27 de setembro de 1999.
25: Era o que constava do projeto de Acordo Multilateral de Investimentos (AMI) sorrateiramente negociado à sombra da OCDE, e também o que se tramava nos bastidores da “rodada do milênio” que naufragou em Seattle.
26: Adam Smith, Richesse des nations, 1776.
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“Toda interpretação da economia repousa necessariamente numa concepção do mundo, do homem e da sociedade. A ciência econômica nunca foi tão grande quanto no momento em que soube associar em um mesmo pensamento uma filosofia do mundo, uma sociologia e – naturalmente – um olhar sobre as coisas que lhe são próprias. É o caso dos fisiocratas do século XVIII, com sua concepção da ordem natural, dos primeiros clássicos – Smith, Stuart Mill, como se sabe, eram tanto filósofos quanto economistas, e o primeiro chegou a escrever uma obra de astronomia –, de Marx, cuja economia repousa inteira sobre uma filosofia dialética associada a uma permanente atenção aos avanços científicos de sua época; é também o caso dos maiores neoclássicos – um Walras, por exemplo, que claramente baseia sua concepção da economia “pura” na mecânica newtoniana. Só os ruminadores medíocres são capazes de considerar suficientes os pequenos mecanismos cujas engrenagens empenham-se incansavelmente em descrever.”
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“Existem apenas, portanto, percepções subjetivas do mundo; tantas percepções quantos são os indivíduos. E a ciência consiste em fazer com que tudo isto dialogue. Para isto, ela se dota de regras, ou, se preferirem, de precauções, permitindo definir o campo de um discurso no qual é possível entrar em acordo sobre determinadas coisas, ou então opor-se… falando a mesma língua. Neste sentido, o principal critério – proposto em 1959 pelo filósofo austríaco Karl Popper2 – é o do discurso exposto à refutação. Refutação, e não verificação, pois uma afirmação como “Sendo todas as condições iguais, as mesmas causas produzem os mesmos efeitos” não pode ser verificada (seria necessária uma infinidade de experiências), mas se for falsa, é possível criar um protocolo que a conteste; em compensação, a declaração de que o vermelho é mais (ou menos) belo que o azul, assim como tudo mais que é afeto a valores socioculturais, depende do julgamento de cada um, escapando portanto a este critério. Este é apenas, diz-nos Popper, um “critério de demarcação” – e nada mais: significa que a hipótese não verificada não é verdade científica, mas pertence ao campo do discurso científico, pois é refutável.
Munidos, portanto, de nossos pífios instrumentos, partimos à conquista de um mundo que em todos os sentidos ultrapassa nossas pobres capacidades mentais. Para interpretá-lo, criamos convenções simplificadoras que em grande parte determinam as conclusões a que chegaremos; elaboramos conceitos que são apenas representações, e não as coisas em si mesmas (“o conceito de cão não late…”). Reivindicar o monopólio da ciência significa ignorar isto, e transformar uma busca que se nutre da diversidade num confronto de verdades definitivas que se anulam reciprocamente; significa situar-se fora do campo científico.
É natural, portanto, que o olhar lançado à economia dependa de nossa concepção do mundo. Nossas convenções, nossas representações apoiam-se necessariamente na experiência vivida quotidianamente de nossa relação com o universo que nos cerca; elas expressam a representação que temos dele e nossa visão dos diferentes campos que o constituem. A teoria econômica, como qualquer outra, é o reflexo de uma época e de um meio cujo conhecimento permite compreender e ao mesmo tempo relativizar o alcance das construções intelectuais deles derivados. E é sem dúvida isto que incomoda os arautos de um dogma universalmente e atemporalmente verdadeiro. Adotando este ponto de vista, eles teriam de reconhecer que sua economia permanece aferrada a uma concepção mecanicista do mundo, hoje amplamente superada.
Para avaliar o desempenho, eles observam a máquina – o equilíbrio orçamentário, a estabilidade dos preços, a taxa de crescimento do PIB, o saldo da balança comercial, tudo aquilo que chamam de “fundamentos essenciais” – e não o grau de realização dos objetivos humanos para os quais ela deveria funcionar. Quando o sábio aponta o dedo para o céu, o néscio olha para o dedo, diz o provérbio chinês. (…)
Atividade calculada de transformação da natureza, tendo como objetivo a satisfação das necessidades humanas, (a economia) significa antes de mais nada ação. Constituem-na três esferas: uma esfera natural que transformamos, uma esfera econômica na qual se efetua esta transformação e uma esfera humana para a qual ela se efetua.
A natureza não se apresenta nas formas que permitiriam satisfazer diretamente as necessidades dos homens. Seus recursos, dizia Henri Guitton, “são demasiadamente numerosos ou insuficientemente numerosos; não se encontram no lugar ideal nem no tempo ideal, no momento desejado; não têm a forma desejada [ …l. A atividade econômica é, assim, a forma da atividade humana através da qual os homens lutam para reduzir a inadaptação da natureza a suas necessidades4.” Mais lacônico, Henri Laborit5 gostava de observar que não basta, para nos alimentarmos, abrir a boca na direção dos fótons solares, dos quais entretanto nos vêm, em última análise, todo alimento. “Só podemos mandar na natureza obedecendo a ela”, dizia Francis Bacon em 1620.6Entretanto, em sentido inverso, obedecendo a ela é que podemos adaptá-la a nossas finalidades: é usando as leis da gravidade e da resistência do ar que conseguimos voar; da obediência às leis naturais à resignação social que nos pretendem impingir há todo um mundo.”
2: Karl Popper. The Logic of Scientific Discovery, Hutchinson, Londres, 1959; tradução francesa,La Logique de la découverte, Payot, Paris, 1973, prefácio de Jacques Monod. Este critério não está muito distante do que foi preconizado por Descartes, segundo quem só são aceitáveis as hipóteses que, tendo superado o teste da dúvida sistemática, podem ser consideradas indubitáveis.
4: Henri Guitton, Économie politique, t. I, Dalloz. Paris, 1961.
5: Henri Laborit, La Nouvelle Grille, Laffont, Paris, 1974.
6: Francis Bacon, Novum Organum, 1620.
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“A eficácia, por definição, é “o que produz o efeito esperado” (Larousse)? O desempenho de um sistema só pode ser definido, portanto, pelo grau de realização da finalidade a que deve servir. Que pode significar então a medida do desempenho econômico independentemente de suas finalidades humanas?”
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“Thomas Kuhn32 tinha razão: a ciência não avança por acúmulo de conhecimentos, mas por transformação do olhar que se lança às coisas; os mesmos cientistas, observando o mesmo céu com os mesmos instrumentos, não veem os mesmos fenômenos antes e depois de Copérnico. Desgraçados aqueles que não sabem questionar-se.”
32: Thomas Kuhn, La structure des révolutions scientifiques, Flammarion, col. “Champs”, Paris, 1983.
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“Os especialistas encontram dificuldade para definir o critério a partir do qual poderíamos afirmar que surgiu o primeiro homem. A linguagem? Mas várias espécies animais trocam informações às vezes bastante diversificadas. A ferramenta? Mas numerosos animais utilizam – e às vezes fabricam – instrumentos para alcançar, remexer, quebrar, superar obstáculos. Em compensação, todos os cientistas reconhecem que a criatura que enterra seus mortos, homenageia-os, cercando-os de alimentos e objetos familiares e ornamentando as paredes das grutas com representações, aquela mesma que busca em sua vida algo que esteja além de si mesma, esta é uma criatura autenticamente humana. Sem dúvida alguma, em meio a tudo que vive e respira neste planeta, o homem caracteriza-se pela necessidade de sentido.”
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“Na dialética marxista, o que é inelutável é que do conflito entre o capitalismo e sua contradição – que ele próprio produz – surgirá a síntese, que não será a simples vitória do proletariado sobre o capitalismo que o engendra, mas a superação de ambos na sociedade comunista. Submetido ao sentido da história, o homem nem por isto deixa de ser um ator dela. É certo que não pode tudo: “Os homens fazem sua própria história, mas sobre a base de condições dadas”; mas “a doutrina materialista segundo a qual os homens são produtos das circunstâncias e da educação esquece que são precisamente os homens que transformam as circunstâncias.57” Sem esta importante margem de liberdade individual, as teorias marxistas da “praxis” (atividade em vista de um resultado) e da luta de classes seriam incompreensíveis. Este homem não é talvez um atorda história, mas certamente é um ator na história. Paradoxalmente, Marx e Engels são nitidamente menos materialistas e deterministas que os “liberais” que lhes aplicam estes dois qualificativos.”
57: Karl Marx, Thèses sur Feuerbach, 1845.
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“Quando surge nos anos 50 o fenômeno da automação, a questão da evolução do computador para o gigantismo ou a miniaturização logo é colocada, com as consequências socioeconômicas decorrentes: de um lado, Big Brother e a concentração; de outro, milhares de centros de decisão e a sobrevivência das pequenas ou médias estruturas. Os argumentos técnicos a favor de uma ou outra evolução são igualmente convincentes. Pelo fim dos anos 60, a empresa IBM, que domina o mercado e parece ter as chaves do futuro, dá preferência aos equipamentos mais portentosos. Ninguém podia então prever que quatro engenheiros dissidentes da ATT se associariam para criar uma pequena empresa de onze pessoas, Intel, da qual sairia o microprocessador, que revolucionaria o mundo.
Chamamos de ponto crítico o ponto de equilíbrio de forças a partir do qual um fenômeno menor e rigorosamente imprevisível mudará o rumo da história em direção a um ramo da bifurcação dos possíveis, e não em direção a outro. “Só existe ciência do geral”, dizia Aristóteles; mas eis que com o ponto crítico o singular entra no campo científico.
Esta concepção está carregada de consequências. Para começar, a todo momento, o futuro é feito de vários possíveis, sendo impossível dizer a priori qual prevalecerá. Quando uma situação se realiza, é em seguida a uma série de acontecimentos nos quais imprevisto e inelutável se combinam: a virada da história em cada ponto crítico se faz de maneira aleatória, mas cada orientação abre um encadeamento de consequências que se desenrolam necessariamente; Braudel, por exemplo, mostra como a adoção – provavelmente por um pequeno número de homens – do arroz no Extremo Oriente e do trigo no Ocidente teve consequências enormes e duradouras para a utilização dos solos, a possibilidade de praticar a criação de gado e portanto para o desenvolvimento dessas duas regiões. Nesses encadeamentos, o tempo é irreversível, pois o acaso não desfaz em sentido inverso o que fez. A história factual não está em absoluto fadada a desaparecer: só podemos nos dar conta do surgimento de uma situação analisando a sucessão de acontecimentos aleatórios e de consequências necessárias que a ela conduziram.
Esta articulação de indeterminismos e determinismos constitui a própria condição de toda liberdade humana. Os primeiros condicionam a possibilidade de escolha, e os segundos, a existência de um objeto da escolha: como dizia ironicamente Henri Laborit, para saltar livremente de paraquedas, é preciso primeiro ser capaz de optar por não saltar; mas também é necessário que existam leis da queda dos corpos e da resistência do ar, caso contrário a aventura só pode acabar mal.
Nesta concepção, o homem é plenamente ator da história, e em dois níveis:
– no ponto crítico, para começar, onde a ação de alguns, e às vezes de um só, pode mudar o curso dos acontecimentos; é este o papel das minorias que estão na origem das revoluções, dos profetas, dos grandes cientistas, de alguns políticos (para o melhor e para o pior…); os economistas reconhecerão aqui o empreendedor de Schumpeter, cuja inovação, tendo rompido o circuito da repetição rotineira, desencadeia um fenômeno de imitação em blocos agregados do qual surgirá um novo equilíbrio, até que uma nova ordem inovadora… Encarada neste nível, a possibilidade de uma ação do homem sobre a história tem algo de estimulante, mas também de desesperador, na medida em que afeta apenas um número muito restrito de atores; nem todo mundo, com efeito, está em condições de candidatar-se ao papel do herói de Carlyle…
– em compensação, todos têm a possibilidade – logo, a responsabilidade – de agir sobre o meio de propagação sem o qual a ruptura no ponto crítico não surtiria efeito; sem um meio transmissor, a invenção mais genial não se torna inovação: existem no palácio dos doges em Veneza antepassados de nossas metralhadoras modernas, ainda reluzentes embora fabricadas no Renascimento, pois nunca chegaram a ser usadas num meio mais receptivo ao veneno individual (encantos do “pequeno artesanato”) do que aos massacres em série dos quais não se privaria o futuro; e de dois indivíduos efetuando tentativas comparáveis: um, Krutchev, enfrentando ausência de resposta do meio, logo se vê descartado, absorvido, digerido, sem conseguir alterar duradouramente o curso das coisas, ao passo que o outro, Gorbachev, desencadeia – sem dúvida muito além de suas expectativas – um movimento irreversível que varre o sistema e também a ele próprio; acontece que a ação sobre o meio de propagação está ao alcance de todos, são a ação quotidiana, a repetição, a defesa incansável dos valores que transformam o meio; neste sentido, “os pequenos, os obscuros, os sem graduação” identificados por Edmond Rostand são autênticos atores da história; qual a importância, face a esta, do vistoso cavaleiro medieval, em comparação com o mongezinho anônimo que, na penumbra de sua cela, arranhando incansavelmente seu pergaminho, transmitia a mensagem antiga?
Somos todos, portanto, atores da história; atores, entretanto, como nos ensinam os sistemas sensíveis a suas condições iniciais, de uma história suscetível de ganhar impulso e escapar a todo controle: “Os homens”, dizia ainda Braudel, “fazem a história e a história os arrasta.” E com efeito, no mundo contemporâneo, no qual o desenvolvimento dos meios de comunicação apaga o tempo e a distância, o menor acontecimento é vivido em tempo real em todos os pontos do planeta. Este mundo torna-se uma gigantesca caixa de ressonância. À possibilidade de agir associa-se um imperativo de vigilância.”
50: Albert Jacquard, Inventer l’homme, Complexe, Bruxelas, 1985.


A ilusão neoliberal (Parte II) – René Passet

Editora: Record
ISBN: 978-85-0106-107-2
Tradução: Clóvis Marques
Opinião★★★★☆
Páginas: 370

““Nunca somos completamente contemporâneos de nosso presente”, frisa Régis Debray, “a história avança mascarada, entra em cena com a máscara da cena anterior e nós já não entendemos mais nada na peça”.”


““Uma economia global", diz com elegância Manuel Castells, "é uma economia capaz de funcionar como unidade, em tempo real, em escala planetária.22" Todos os produtos estão no mundo: em qualquer época do ano, as produções agrícolas e industriais são encontradas no conjunto dos mercados; e o mundo está em todos os produtos: o Ford Escort montado na Europa é constituído de peças provenientes de quinze países diferentes;23 os Ford Probe fabricados pela empresa japonesa Mazda em sua fábrica de Michigan são parcialmente vendidos no Japão com a marca Ford, enquanto um veículo utilitário Mazda fabricado na fábrica Ford de Kentucky é em seguida vendido nas lojas Mazda nos Estados Unidos, ao passo que a Nissan lança um novo caminhão leve na Califórnia, montado numa fábrica Ford de Ohio com peças fabricadas no Tennessee, para ser em seguida comercializado pela Ford e a Nissan nos Estados Unidos e no Japão.24 E o mais modesto tomate doméstico foi produzido com pesticidas, adubos e equipamentos vindos do mundo inteiro.
A eliminação das fronteiras aduaneiras, o reforço das interdependências, a mobilidade dos indivíduos, dos capitais, dos conhecimentos e das mercadorias, a informação em tempo real parecem efetivamente indícios de uma unificação. E se a fluidez da mão-de-obra continua sendo inferior à dos outros fatores, as empresas é que vão ao seu encontro, transferindo internacionalmente suas unidades de produção ou terceirizando suas atividades.”
22: Manuel Castells, La Société em réseaux, op. cit-
23: Michel Beaud, L’Éonomie mondiale dans les années 80, La Découverte, Paris, 1989.
24: Este exemplo é de Robert Reich, secretário do Trabalho no primeiro governo Clinton, citado por Ignacio Ramonet, Géopolitique du chaos, Galilée, Paris, 1997.


“O investimento intelectual33, que desempenha um papel determinante nos sistemas produtivos da era da informática, é fruto de um patrimônio universal nascido do esforço de gerações passadas e presentes: “O saber”, dizia Louis Pasteur, “é um patrimônio da humanidade.” Este saber apresenta uma característica que o torna um autêntico bem coletivo: todo indivíduo pode desfrutar dele sem dele privar os outros; melhor ainda, ele se multiplica através das trocas: se a troca de uma pêra por uma maçã traduz-se numa simples mudança de proprietários, deixando inalterada a quantidade de peras e maçãs em circulação no planeta, a troca de informações entre dois indivíduos permite que cada um detenha uma informação nova sem ver-se privado daquela que possuía inicialmente; a troca teve um efeito multiplicador. Quanto mais a informação circula, mais se transforma num bem comum.”
33: Cabe consultar, de Patrick Épingard, L’Investissement immatériel, coeur d’une économie fondée sur le savoir, prefácio de Jacques de Bandt, CNRS Éditions, Paris, 1999.


“Mas os mercadores de fórmulas pré-fabricadas ainda não entenderam: “A partir do momento”, diz-nos um deles, “em que aceitamos modificar o que resulta das atividades individuais, estamos atentando contra o que é sua própria fonte, ou seja, os direitos individuais. Uma política de transferências forçadas, a pretexto de equalizar os resultados da atividade humana, consiste em tomar recursos pela força aos que os criaram para dá-los aos que não os criaram [...] e para tomar um exemplo simples, quem ousaria sustentar que é moralmente justificado tomar a um homem que trabalha corajosamente para dar a um preguiçoso? [...] Numa sociedade baseada na livre troca, o que possui é o que criou mais valor para outrem.” Pretendendo reformar esta ordem idílica das coisas, estaríamos entrando “numa sociedade baseada na violência” que “desembocaria naturalmente no totalitarismo”.35 A opção, portanto é simples: de um lado, uma sociedade em que cada um só recebe o que criou... “para outrem”, naturalmente, uma sociedade na qual a renda não passa da justa retribuição daquele “que trabalha corajosamente” e o pobre é necessariamente “um preguiçoso”; do outro, a tirania da violência. Escolham.
Se efetivamente é assim, devemos concluir que entre as grandes fortunas do mundo, anualmente compiladas por Fortune, e o trabalhador que ganha salário mínimo, é a livre iniciativa que realiza a igualdade de direitos e a intervenção que falseia as regras (em detrimento dos mais “merecedores”, é claro); que cada um, herdeiro rico ou filho de pobre, aborda a vida com igualdade de oportunidades; que quando um homem, como frisa o CNUCED, ganha treze mil vezes o salário médio de um operário, é porque é treze mil vezes mais produtivo (por que não trabalha sozinho, por si mesmo e para si mesmo?); que os lucros especulativos têm como contrapartida a criação de riquezas reais, e que todos os pobres são inúteis e ociosos. Pois não é fato que cada um tem o destino que merece? George Gilder, um dos gurus americanos da escola da oferta, não hesita em diagnosticar: “Os pobres sabem [...] que em grande medida escolheram sua situação, e só podem responsabilizar a si mesmos.”36Em que planeta vivem essas pessoas?”
35: Pascal Salin, “Vive l’inégalité!”, Le Monde, 10 de julho de 1990.
36: George Gilder, Richesse et pauvreté, op. cit.


“Para dizer a verdade, o mercado tem duas virtudes essenciais de que nenhuma sociedade pode privar-se impunemente.
Liberador e catalisador extraordinário de iniciativas individuais, de inovação e energias, ele confere à economia um dinamismo e uma inventividade de que nenhuma outra forma de organização jamais se aproximou; assim se explica o notável desempenho do sistema capitalista em matéria de inovação e produção; em sentido inverso, embora o sistema centralizado soviético tenha conseguido resultados espetaculares (a conquista espacial...) concentrando seus esforços em alguns setores-chave (em geral submetidos a uma organização de tipo militar), passou totalmente à margem da revolução da informática38, e sua lentidão burocrática e seu peso acabaram por levar a melhor.
Favorecendo a infinita proliferação dos centros decisórios, ele confere ao sistema uma flexibilidade e uma capacidade de adaptação às quais deve sua longa sobrevivência: sem voltarmos às origens, o capitalismo do início do século XIX – empreendedores capitalistas individuais, concorrência entre microunidades – ... não tem muita coisa a ver com o sistema concentrado do último quarto do século, tal como descrito por Marx, e menos ainda com o capitalismo financeiro, mundializado e em rede de hoje; ao longo das mudanças tecnológicas e das crises, o sistema adaptou-se, transformou-se, já não é o mesmo, e no entanto, em sua essência – a busca do lucro, a acumulação... –, continua a ser ele mesmo; a razão disto é evidente: quando se manifestam a mudança, a crise ou o obstáculo, inúmeros centros de decisão reagem, cada um por sua conta; o obstáculo é contornado, superado, digerido... O sistema sai – às vezes a altíssimo custo – modificado, mas adaptado, vivo e definitivamente enriquecido; o que é preciso entender é que este sistema não se desenvolve “apesar dos obstáculos”, mas “pelos obstáculos”, que vive deles e deles tira a substância de seu dinamismo; em sentido inverso, os sistemas monolíticos centralizados, como o gigante, progridem derrubando tudo a sua passagem; só sabem esmagar os obstáculos, mas quando se veem defrontados com uma dificuldade mais grave não encontram neles próprios qualquer capacidade de adaptação e desmoronam maciçamente, de um só golpe; a teoria do caos ilustra bem este fenômeno: um sistema policêntrico compensa as defasagens; um sistema monocêntrico as agrava e revela-se muito mais “sensível a suas condições iniciais”; é aparentemente esta a razão profunda pela qual o sistema capitalista decididamente triunfou sobre seu adversário centralizado.
Este dinamismo, esta capacidade de adaptação são armas preciosas das quais seria absurdo privar-se.”
38: Por motivos essencialmente doutrinários, pois, segundo a evolução descrita por Marx no século XIX, imbecilmente transformada em dogma por seus “herdeiros”, o desenvolvimento deveria efetuar-se prioritariamente nas indústrias pesadas.


“É preciso muito fôlego para invocar a própria liberdade para justificar uma política de absorções e fusões que destrói o próprio princípio dessa liberdade, no momento em que algumas empresas transnacionais exercem sobre a economia mundial uma pressão que verga os mercados e os Estados. A tal ponto, por exemplo, que cinco empresas de biotecnologia controlam 95% das patentes no mundo. Numa situação como esta, os propagandistas de carteirinha do sistema continuam a nos oferecer o refrão de um capitalismo que teria preservado suas virtudes originais, das quais a primeira metade do século XIX talvez se tenha aproximado um pouco – a grande custo humano –, mas que nada mais tem a ver com as realidades de hoje. Que é feito das vantagens coletivas da “liberdade dada a cada um”, glorificada pelo nosso caro Hayek41, quando ela permite a alguns sufocar a dos outros?”
41: Friedrich von Hayek, “The Use of Knowledge in Society”, op. cit.


“O jogo da economia desenrola-se num teatro mundial cujos atores encarnam os grandes interesses privados. As instituições políticas nacionais reduzidas à função de agentes executores incumbidos de garantir a rentabilidade do capital internacional e de cobrir-lhe os riscos – é bem este o sonho das potências financeiras. É este sonho que elas realizam ao se tornarem hoje os novos árbitros cuja lógica determina os ajustes em todos os níveis do sistema econômico.”


““Desta oposição entre a esfera da economia e a da finança”, acrescentava Jean Peyrelevade em 1987, “surge uma instabilidade fundamental, que, se não lhe dermos atenção, pode arrastar a todos nós.” O que se seguiria prova que ele não estava errado.
A lógica que inspira esses movimentos nada tem a ver com o que Friedman denomina as “bases sólidas” da economia.
Não se trata de uma lógica do real. “A política da França”, dizia o general de Gaulle, “não se decide no pregão.” Durante os “Trinta Gloriosos”, com efeito, o Planejamento determinava os objetivos prioritários da economia real, e o setor monetário é que se adaptava: o nível dos preços decorria do confronto entre a oferta e a procura de bens; a taxa de juros exprimia a distância entre a poupança disponível e a necessidade de investimentos. Já agora a situação inverte-se: é a estabilidade da moeda que é prioritária, e a realidade que se adapte: o equilíbrio do orçamento tem primazia sobre o crescimento; a estabilidade dos preços é assegurada, em detrimento deste; as taxas de juros não decorrem de dados reais, mas de previsões do mercado monetário e dos imperativos de estabilidade dos bancos centrais; é, então, o investimento que reage às flutuações dos juros a longo prazo. E quando estes são por demais elevados, vemos às vezes os governos implorando – não raro sem sucesso – que os bancos centrais se disponham a abaixá-los, para tornar menos onerosos os empréstimos necessários aos investimentos das empresas.
Por trás da “criação de valor” pela qual as empresas gigantescas – cuja gestão, como veremos, está amplamente submetida ao império da finança – tentam justificar a corrida planetária às fusões-aquisições dissimula-se na realidade uma dupla operação:
– de “confisco exclusivo pelos acionistas do valor criado por outros: nas próprias empresas, pelas diferentes categorias de assalariados, e, fora da empresa, pelo conjunto do meio socioeconômico e pelos serviços públicos, particularmente no serviço público e nos dispositivos de pesquisa”;52
– de destruição de riquezas reais: quatro quintos do trilhão de dólares de IDE (investimentos diretos no exterior) realizados em 1995, 1996 e 1997 destinaram-se a fusões e compras de empresas existentes, levando à destruição de empresas locais por concentração do mercado e à destruição de riquezas humanas pela supressão de empregos.
Não se trata de uma lógica de crescimento. Em relação a esta, a desconexão é espetacular: de 1961 a 1983-1984, as oscilações da Bolsa nos Estados Unidos vão no mesmo sentido que a evolução do PIB, mas em seguida a Bolsa dispara, sem que o crescimento tenha mudado de ritmo; em outubro-novembro de 1994, é inclusive o crescimento que perturba a especulação, que teme as tensões inflacionárias que poderiam levar à elevação das taxas de juros; exatamente o mesmo temor é expresso mais uma vez, da mesma forma, em janeiro de 2000; melhor que qualquer discurso, esta aversão era simbolizada pelo homenzinho do caricaturista Plantu que se atirava do alto do telhado da Bolsa ante o anúncio – destinado a tranquilizá-lo – da retomada do crescimento americano; em 1993, as cotações de bolsa sabem 45% na Alemanha e 22% na França, embora estes dois países estivessem mergulhados na recessão mais grave por que haviam passado desde a Segunda Guerra Mundial; desde a disseminação da crise surgida no Sudeste asiático, as cotações oscilam ao sabor dos ventos – e das travessuras “lewinskianas” de um presidente americano – sem que isto tenha alguma coisa a ver com o crescimento.
Não se trata de uma lógica de valorização dos territórios. Sempre que considera do seu interesse, a empresa Hoover não hesita em transferir um de seus estabelecimentos de Dijon para Cambusland, na Escócia, sem se preocupar com as consequências humanas e regionais de sua decisão; quando a Renault fecha sua fábrica de Vilvorde, a Bolsa já no dia seguinte saúda o fato valorizando em 13% suas ações; quando a Moulinex fecha duas fábricas na França e elimina 1.800 empregos na Normandia, suas ações instantaneamente valorizam-se 21%; quando a Michelin anuncia em setembro de 1999 ao mesmo tempo lucros substanciais e a aplicação de um plano de enxugamento, a Bolsa saúda o feito.
Não se trata de uma lógica do homem. André Orléan mostra como o surgimento de uma economia de mercado financeiro é acompanhada da emergência de um novo pacto social baseado numa concepção completamente financeira dos direitos individuais: “Nela o indivíduo é definido como uma carteira de direitos de crédito cujo valor deve ser defendido. “53 Tudo que se opõe aos rendimentos dessa carteira é portanto questionado: a proteção social, os impostos (logo, a função política do Estado); em suas formas tradicionais, a moeda vem a ser contestada na medida em que “apreende o indivíduo e sua integração à comunidade mercante na globalidade de suas determinações, ou seja, sob o duplo registro de suas dívidas econômicas, na medida em que ele é um agente econômico inserido na divisão mercantil do trabalho, e de suas dívidas sociais, na medida em que é um cidadão, detentor de direitos sociais constituídos historicamente”.54 Não é para a consagração da pessoa que caminhamos, mas para um fortalecimento do reducionismo que já estava contido no conceito de indivíduo caro ao pensamento liberal.
Trata-se de uma lógica de frutificação rápida de um patrimônio financeiro. O acionista médio, teoricamente coproprietário da empresa, é na realidade alguém que vive de suas rendas e administra seu patrimônio, aplica-o – e o desaplica – segundo considerações de rendimento a curto prazo; a fortiori, o financista institucional cuja atividade consiste em fazer frutificar seu capital. É preciso reagir com a máxima rapidez, à menor diferenciação das cotações: a rigor, os computadores são programados para isto, e é sob o efeito de seu automatismo que em 1987 o mundo fica à beira do abismo. “O meu longo prazo”, costumava dizer um operador citado pelo Prêmio Nobel de Economia James Tobin, “são os próximos dez minutos.”55 Nos principais países industrializados – a França, os Estados Unidos, a Alemanha, o Reino Unido ou o Japão –, o mercado de ações “primário” dedicado ao financiamento de atividades novas, criadoras de riquezas, envolve uma proporção menor (da ordem de 5 a 10%) do volume das trocas de títulos; o mercado especulativo “de ocasião” representa portanto 90 a 95% dessas trocas. A “teoria da carteira”, consagrada em 1990 pelo Prêmio Nobel dado a Harry Markowitz, afirma que a escolha de um título deve depender menos da análise fundamental das empresas que o emitem do que da composição da carteira do eventual comprador. Só depois de ter sido previamente resolvida a questão da diversificação destinada a reduzir o risco é que entram em cena as considerações propriamente relativas ao título: a finança se basta.
Como na comparação de Keynes sobre um “concurso de beleza” no qual os leitores de uma revista têm de adivinhar qual a beldade que a maioria escolherá, o que cada um pensa em matéria de aplicações financeiras é menos importante do que o que pensa que os outros pensam. Pois é a avaliação comum que determina em termos imediatos o valor das coisas. Encontramo-nos então numa situação dita “caótica”, exposta às reações irrefletidas das multidões. O terreno financeiro nos é apresentado como o vigia que anuncia o futuro, mas não passa do macaquinho de imitação.56 Assim como os investimentos no exterior, os movimentos especulativos funcionam em ondas que crescem e esvaziam por si mesmas. Como o afluxo parece confirmar a oportunidade dos investimentos, os capitais atraem os capitais. A bolha aumenta, até o dia em que a saturação produz as inevitáveis quedas de rendimento. Quando as primeiras dúvidas provocam os primeiros repatriamentos, sucedendo-se o pânico à euforia, o movimento inverte-se e os vampiros fogem com a mesma rapidez com que haviam chegado. Desse modo, entre o início de 1986 e o fim de 1989, o índice Nikkei da Bolsa de Tóquio elevava-se de 12.000 a 40.000 pontos (+ 233%); todos continuavam a investir – simplesmente porque era o que os outros faziam – no setor imobiliário, que todos sabiam (exceto aqueles cuja profissão era saber) estar em crise. Bastava ler os jornais. Na década de 1990, no México, na América Latina, na Rússia, no Sudeste asiático “milagre” dos países emergentes os investimentos afluem para em seguida fugir da mesma forma, provocando de 1994 a 1998 uma cascata de crises graves: na Indonésia, na Coréia, na Malásia, na Tailândia, nas Filipinas, o afluxo de capitais passa de 40,5 bilhões de dólares em 1994 para 93 bilhões em 1996; e de repente, em 1997, o fluxo se inverte e 12,1 bilhões de dólares vão embora, representando, em relação ao fluxo de entrada do ano anterior, uma diferença brutal de 105 bilhões, equivalente a 11% do PIB da região; e no entanto, situando-se os índices de crescimento desses países entre 5 e 6%, nada em suas economias reais justificava esta situação. Em que transformações rápidas da distribuição internacional de recursos baseiam-se tais movimentos?... No início de 2000, a moda é das empresas do setor eletrônico, cujo valor acionário – autêntica aposta no futuro – incha desmedidamente, embora todas sejam deficitárias e algumas sequer tenham resolvido seus problemas concretos de instalação. Nem é necessário continuar dando exemplos: “Longe de serem incidentes isolados”, constata o relatório do PNUD em 1999, “as crises financeiras tornam-se cada vez mais frequentes, à medida que os fluxos de capitais disseminam-se e aumentam em escala planetária.” Onde ficaram os princípios “fundamentais” de Milton Friedman?”
52: Frédéric F. Clairmont, “Fusions d’entreprises, festins de prédateurs”, Le Monde diplomatique, setembro de 1999.
53: André Orléan, “La monnaie provatisée”, Alternatives économiques, nº 37, 3º trimestre de 1998; ver também, do mesmo autor, Le Pouvoir de la finance, Odile Jacob, Paris, 1999.
54: André Orléan, “La monnaie privatisée”, art. cit.
55: Ibrahim Warde, “Le projet de taxe Tobin, bête noire des spéculateurs”, Le Monde diplomatique, fevereiro de 1997.
56: Cada um observa os outros, em busca de um comportamento que revele uma informação de que não dispõe. Quando o primeiro macaquinho pula a cerca, há sempre um segundo que pensa que ele deve ter bons motivos para isto e portanto dispõe-se a saltar atrás dele; logo um terceiro, vendo dois macaquinhos na água, conclui que está diante de um fato social do qual não pode ficar excluído, e logo um quarto... e o “fato social” se amplia... A isto se dá o nome de “profecias auto-realizadoras”.


“O Estado, cujas intervenções são tão atacadas quando se trata da proteção dos homens, recupera seu caráter “providencial” tão apreciado quando se trata dos interesses da finança. As grandes instituições “guardiãs do templo”, prontas a transformar o jogo da especulação em uma aposta sem risco, não hesitam em trair o próprio espírito do sistema em cujo nome afirmam agir. É com um enorme volume de capitais (180 bilhões de novos créditos) que a comunidade financeira internacional, impulsionada pelo FMI, intervém cinco vezes em dezoito meses na Tailândia, na Indonésia, na Coréia do Sul, na Rússia e no Brasil, para salvar as instituições capitalistas em má situação. Quando o rublo se vê em maus lençóis em 1998, o fundo especulativo americano LTCM (Long Term Capital Management) prevê que já em agosto o FMI irá socorrê-lo. Toma então emprestados dezenas de bilhões de dólares, para dotar-se maciçamente e a baixo preço de uma divisa cuja quotação espera ver em breve aumentada. A aposta dá errado. Vencido o prazo, a LTCM é incapaz de cumprir seus compromissos. Vê-se então ameaçada a solvência dos grandes bancos – sobretudo suíços e americanos – que favoreceram a operação. Para evitar a propagação em cadeia, 4 bilhões de dólares são reunidos por iniciativa do Federal Reserve americano, o FED, para salvar o fundo especulativo.
Em todas essas operações de salvamento, já não é o sistema bancário internacional que vem a ser convocado, mas o dinheiro público dos organismos financeiros internacionais (FMI, Banco Mundial, bancos regionais de desenvolvimento) ou dos Estados industrializados. A lógica liberal reza que, esgotando-se o “milagre” do país no qual se investiu e aumentando os seus preços mais rapidamente que os do exterior, a desvalorização restabelece a competitividade. Mas isto implicaria reduzir igualmente o valor internacional dos ativos, objetos de especulação, ou em arruinar os residentes que tomaram emprestado em moedas estrangeiras para investir. A ajuda que evita a desvalorização do câmbio constitui na verdade, para os especuladores, o indício de que chegou o momento de recuperar seus lucros e pagar suas dívidas em divisas. Ela introduz uma garantia pública de ganhos em mercados em princípio especulativos. À socialização das perdas que as populações locais suportam ao custo de muita austeridade monetária e orçamentária, de desemprego, responde já agora a privatização dos lucros especulativos. A coletividade paga. Mas um mercado que só funciona no sentido das vantagens e não da sanção perde seu caráter regulador. Será possível recomeçar, multiplicando audácias que deixaram de sê-lo, até o dia em que as catástrofes superarão a capacidade digestiva do sistema.
Com o projeto de Acordo Multilateral de Investimento (AMI), vimos delinear-se a imagem do mundo que o universo transnacional dos negócios pretende impor-nos: um mundo retalhado para saques espoliativos, totalmente voltado para a frutificação do capital financeiro, um planeta enfeixado na rede tentacular de interesses que só têm direitos, impondo sua lei aos Estados e exigindo-lhes que prestem contas, cobrando a indenização das perdas ligadas à proteção social, à defesa do meio ambiente, da cultura e de tudo que faz a identidade de uma nação. O dinheiro como valor supremo, e os homens para servi-lo.

Quando a atração do lucro se afirma como finalidade primeira, tudo se torna mercantilizável: “O dinheiro, as drogas, as armas, os seres humanos, as obras de arte, etc., tudo que se compra e se vende irá para quem oferecer mais e atravessará as fronteiras sem maior preocupação com controles”, escreve Jean de Maillard.72 Nos anos 90, a produção de ópio no mundo mais que triplicou, e a de cocaína mais que dobrou; em 1995, o tráfico de drogas representava 400 bilhões de dólares, o equivalente a 8% das trocas mundiais, comparável aos têxteis (7,6%) e ao petróleo e ao gás (8,6%). O volume de negócios bruto da criminalidade atingia 1,5 trilhão de dólares em 1995, poder de fogo comparável ao das multinacionais, afirma o PNUD. Não surpreende que as coisas acabem se tornando pouco nítidas, a começar pela distinção entre atividades legais e economia do crime. Da comissão suspeita à corrupção, à arte de “fechar os olhos” e à cumplicidade, a transição é progressiva. A lavagem de dinheiro sujo não pode ser feita sem a ajuda das estruturas legais: empresas de fachada sob controle mafioso, mas também empresas e instituições bem reais dirigidas por pessoas respeitadas, ainda que não respeitáveis. Os contatos políticos, os advogados e assessores jurídicos da economia oculta têm banca na praça, e se o banqueiro “honesto” não fechasse os olhos para a procedência dos fundos que lava, o traficante não poderia reciclar seu dinheiro: “Dos 400 bilhões de dólares do volume de negócios da droga, pode-se estimar que 180 bilhões se destinam a remunerar globalmente os traficantes e os profissionais de empresas legais que colaboram com as organizações criminosas; ‘somente’ 120 bilhões retornam diretamente às organizações criminosas e podem vir a ser lavados na economia legal.”73
Reciprocamente, só vamos encontrar no alto da hierarquia do crime personalidades altamente respeitadas, que precisam manter as aparências legais para promover o tráfico. E toda esta fauna converge para uma aspiração comum: “A finança moderna e a criminalidade organizada se fortalecem mutuamente. Ambas precisam, para desenvolver-se, da abolição das regulamentações e dos controles estatais.” Não vamos tapar o sol com a peneira: a criminalidade financeira é o filho “natural” do laisser-faire e da desregulamentação; ela sempre existiu, mas se não tomarmos cuidado passaremos progressivamente de uma economia comcriminalidade a uma economia de criminalidade.
As próprias instituições internacionais – e ao mesmo tempo os governos nacionais nelas representados – se comportam como cúmplices, senão intencionais, objetivos, da canalha internacional: o relatório sobre a utilização de empréstimos do FMI a Moscou, feito pelo escritório internacional Pricewaterhouse Coopers e divulgado no dia 3 de agosto de 1999 pelo diário russo Kommersant, informava-nos que o dinheiro do FMI, teoricamente destinado a sustentar o rublo, servira apenas, graças a uma montagem jurídica engenhosa transitando pelo paraíso fiscal de Jersey, para engordar a nomenklatura mafiosa que loteia o país. O que não impediu o FMI, no exato momento em que vinha à tona o escândalo, de confirmar um novo empréstimo de 4,5 bilhões de dólares, que obviamente iria engordar as mesmas carteiras, e sem que qualquer governo protestasse. Quando então poderá o tribunal penal internacional – cuja criação foi decidida em 1998 por 120 países – julgar uns por desvio de fundos da comunidade mundial e outros por cumplicidade?
Assim é que uma lógica radicalmente alheia aos imperativos da economia real vem a perverter suas mais belas promessas...”
72: Sobre todas essas questões, recomenda-se a leitura do admirável livro do juiz Jean de Maillar, Um monde sans loi, Stock, Paris, 1998, do qual são extraídas as informações e citações que se seguem; ver também o levantamento sobre “Les paradis fiscaux” publicado por Christian Chavagneux em Alternatives économiques, no 169, abril de 1999.
73: Jean de Maillard, Un monde sans loi, op. cit.

(para ler as partes III e IV, clique aqui)


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