sexta-feira, 11 de março de 2022

Zelensky, o herói de uma mídia que deixou de lado o jornalismo, por Luis Nassif

 Mente a Rússia, mentem os Estados Unidos, mente a OTAN mas mentem, principalmente, os comentaristas que endossam as mentiras e sonegam do seu público as informações, mentindo tão sinceramente que acreditam que é jornalismo as verdades que sonegam ou as mentiras que reiteradamente mentem.

Ontem, na TV GGN, entrevistamos o jornalista americano Glenn Greenwald. Ele tem dois grandes sucessos em sua carreira: a maneira como jogou na mídia o caso Snowden e a Vaza Jato. Em ambos os casos, procurou antecipadamente jornais corporativos e ofereceu parceria. Com isso, superou a cortina de silêncio “patriótico” que marcou a cobertura da mídia no período da Lava Jato e a americana no caso Snowden.

Logo depois da Vaza Jato, Glenn afastou-se do The Intercept por ter sido censurado em reportagem em que abordava os negócios de Joe Biden na Ucrânia. Eram matérias bem fundamentadas – confirmadas posteriormente por outro órgãos – que mostravam o filho de Biden recebendo US $50 mil mensais de uma petroleira estatal, sem dispor de nenhum conhecimento técnico sobre energia. O episódio, aliás, revelava desde então a extraordinária influência do governo americano nos negócios da Ucrânia. Mas os proprietários do jornal consideraram que o grande inimigo a ser destruído era Donald Trump e, por isso, Biden teria que ser poupado.

Glenn demitiu-se por não admitir trocar o jornalismo pela propaganda.

Na entrevista, Glenn explora essas limitações da mídia corporativa norte-americana e brasileira. Mostra que não era segredo para nenhum jornalista bem informado o fato de Volodymyr Zelensky ter sido colocado no poder por uma atuação direta dos Estados Unidos visando justamente assediar a Rússia, tornando a Ucrânia membro da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte).

Explicou os problemas que acometiam, nos Estados Unidos, jornalistas que tentavam fugir do script. Havia uma pressão invencível da opinião pública, considerando-os inimigos da pátria, muito mais agora do que na guerra do Iraque. A partir daí, deixava-se de fazer jornalismo para se tornar propagandista.

Vale a pena conferir a entrevista.

Terminada a entrevista, vou assistir o debate do Globonews, canal em que um dos comentarista erigiu Zelensky à condição de “heroico comediante”.

Lá, assisto a uma surpreendente exposição de Jorge Pontual, correspondente nos Estados Unidos. Admitiu que Zelensky é uma criatura do bilionário russo Ihor Kolomoisky, inimigo de Putin e dono, entre outras empresas, do canal de televisão que o projetou. Mais ainda: admitiu que existe uma milícia nazista incorporada ao exército da Ucrânia – o Batalhão de Azov – também financiado por Kolomoisky.

Ihor Kolomoisky

A que se devia esse ataque de jornalismo? À sua preocupação, compartilhada com os demais comentaristas, sobre o que Putin poderia fazer com essas informações, quando ocupasse Kiev. Afinal, todo país tem seus pecadilhos e seus radicais, e Putin poderia explorar esses fatos para tentar desmoralizar as informações do lado Ocidental – como se fosse algo banal saber que o presidente da República foi apadrinhado por um oligarca russo, ligado aos Estados Unidos, e patrocinador de uma brigada nazista que, depois do presidente eleito, foi incorporada às forças armadas oficiais.

Ou seja, tem todas as informações sobre o personagem. Mas só recorre a elas para avaliar estrategicamente como combater o seu uso político por Putin. Qual o nome que se dá a essa função? Consultor  estratégico do Departamento de Estado? Jornalismo, decididamente, não é.

E seu colega Guga Chacra, conhecendo o histórico de Zelensky, a troco de que lhe conferiria o tratamento de herói da Marvel? Desinformação? Excessos da juventude, assim como Arthur do Val? Não. Já é uma pessoa madura na idade e no conhecimento.

Ficou claro, no comentário de Pontual e nos arroubos de Chacra, que a cobertura internacional não é vítima das fake news do Departamento de Estado: é parceira na sua elaboração. Os correspondentes, como Pontual, sabem que, na guerra, os Estados Unidos mentem tanto quanto a Rússia, que as informações de ambos os lados precisam ser recebidas com reservas, que o papel do jornalismo é filtrar, analisar todas as versões, separar o joio das notícias falsas de lado a lado, e apresentar ao seu público um produto honesto, mesmo com todas as limitações para se chegar aos fatos objetivos. E denunciar as manipulações de Zalensky – o “heróico comediante” que quer jogar o mundo em uma guerra nuclear – não significa avalizar os abusos de Putin.

No entanto, o discurso recorrente, seja dos comentaristas da Globonews quanto dos veteranos da CNN, é que apenas os russos mentem.

Autora da denúncia fundamental sobre o uso das redes sociais pelo bolsonarismo, em reportagem de ontem, a repórter Patrícia Campos Mello, da Folha, trata as narrativas americanas como “desmascaramento preventivo”, contra a única potência que mente: a Rússia. Na CNN, a irrepreensível correspondente Heloisa Villela é interrompida pelo âncora para afirmar que só a Rússia mente “descaradamente”.

Mente a Rússia, mentem os Estados Unidos, mente a OTAN mas mentem, principalmente, os comentaristas que endossam as mentiras e sonegam do seu público as informações, mentindo tão sinceramente que acreditam que é jornalismo as verdades que sonegam ou as mentiras que reiteradamente mentem.

Verdade ou mentira?

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