terça-feira, 1 de março de 2022

A guerra é o mal maior. Texto de Chris Hedges, jornalista vencedor do Pulitzer Prize (maior prêmio do jornalismo nos EUA)

 

A Rússia foi seduzida à guerra pelo descumprimento de uma série de acordos por parte do ocidente - incluindo a promessa de Washington de não estender a OTAN além das fronteiras da Alemanha unificada -, porém isso não absolve o seu criminoso ato de agressão (...) A guerra destrói todos os sistemas que sustentam e nutrem a vida – familiar, econômica, cultural, política, ambiental e social. Não existem guerras boas. Nenhuma. Isso inclui a Segunda Guerra Mundial, que foi higienizada e mitologizada para celebrar falsamente o heroísmo, a pureza e a bondade dos EUA.

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(Foto: Reuters/Umit Bektas)

Por Chris Hedges

(Publicado no ScheerPost, traduzido com exclusividade para o Brasil)

Tradução e adaptação: Rubens Turkienicz, para o Brasil 247

A guerra preventiva, seja no Iraque ou na Ucrânia, é um crime de guerra. Não importa se a guerra é lançada com base em mentiras e fabricações, como foi o caso no Iraque, ou por causa do descumprimento de uma série de acordos com a Rússia – incluindo a promessa de Washington de não estender a OTAN além das fronteiras da Alemanha unificada, de não posicionar milhares de tropas da OTAN na Europa Oriental, de não interferir nos assuntos internos de nações na fronteira com a Rússia e a recusa de implementar o acordo de paz Minsk II. Suponho que a invasão da Ucrânia nunca teria acontecido se essas promessas fossem cumpridas. A Rússia tem todo o direito de sentir-se ameaçada, traída e irada. Porém, entender não é perdoar. De acordo com as leis pós-Nuremberg, a invasão da Ucrânia é uma guerra criminosa de agressão.

Eu conheço o instrumento da guerra. A guerra não é uma política feita por outros meios. Ela é demoníaca. Passei duas décadas como correspondente de guerra na América Central, no Oriente Médio, na África e nos Balcãs – onde cobri as guerras na Bósnia e no Kosovo. Carrego comigo os fantasmas de dúzias daqueles que foram engolidos pela violência – incluindo o meu amigo próximo Kurt Schork, correspondente da Reuters, que foi morto numa emboscada em Serra Leoa junto com outro amigo, Miguel Gil Moreno.

Conheço o caos e a desorientação da guerra, a constante incerteza e confusão desta. Num tiroteio, você só percebe o que está acontecendo a alguns metros no seu entorno. Você luta desesperadamente, e nem sempre com sucesso, para discernir de onde vêm os tiros, na esperança de evitar ser alvejado.

Senti a importância e o medo paralisante que, anos depois, se abate sobre mim como um trem de carga no meio da noite – deixando-me envolto em  espirais de terror, com o meu coração disparando e meu corpo pingando de suor.

Ouvi os gemidos dos convulsionados pela dor quando agarravam os corpos de amigos e familiares, incluindo crianças. Eu ainda os ouço. Não importa a língua. Espanhol. Árabe. Hebraico. Dinka (língua sudanesa). Servo-croata. Albanês. Ucraniano. Russo. A morte atravessa as barreiras linguísticas.

Eu sei o que os ferimentos parecem. Pernas explodidas. Cabeças implodidas numa massa polposa de sangue. Buracos abertos no estômago. Poças de sangue. Gritos dos que estão morrendo, às vezes pelas suas mães. E o cheiro. O cheiro da morte. O sacrifício supremo feito para benefício das moscas e das larvas.

Fui espancado pelas polícias secretas do Iraque e da Arábia Saudita. Fui aprisionado pelos contras na Nicarágua – os quais falavam por rádio com a sua base em Honduras para ver se deviam me matar - e novamente em Basra, depois da primeira guerra no Iraque, sem jamais saber se eu seria executado, estando sob guarda constante e muitas vezes sem comida, bebendo em poças lamacentas.

A lição básica em guerra é que nós não temos importância enquanto indivíduos distintos. Nos tornamos números. Forragem. Objetos. A vida, antes preciosa e sagrada, torna-se sem significado, é sacrificada ao insaciável apetite de Marte. Em tempo de guerra, ninguém está isento disso.

“Nós éramos descartáveis”, escreveu Eugene Sledge sobre as suas vivências como fuzileiro naval no Pacífico Sul, na Segunda Guerra Mundial. “Isso era difícil de aceitar. Viemos de uma nação e uma cultura que valoriza a vida e o indivíduo. Encontrar-se numa situação onde a sua vida tem pouco valor é a solidão última. É uma experiência vexatória.

O panorama da guerra é alucinógeno, desafia a compreensão. Você não tem ideia do tempo num tiroteio. Alguns minutos. Algumas horas. Num instante, a guerra oblitera lares e comunidades que eram familiares antes e deixa atrás ruínas fumegantes e um trauma que você carrega pelo resto da sua vida. Você não consegue compreender o que vê. Senti suficientemente o gosto da guerra, o suficiente do meu próprio medo, meu corpo transformado em gelatina, para saber que a guerra é sempre um mal, a mais pura expressão da morte, vestida em jargões patrióticos sobre liberdade e democracia e vendida aos ingênuos como um bilhete para a glória, a honra e a coragem. Ela é um elixir tóxico e sedutor. Como escreveu Kurt Vonnegut, aqueles que sobrevivem lutam depois para reinventar-se e ao seu universo – o qual, em algum nível, jamais fará sentido de novo.

A guerra destrói todos os sistemas que sustentam e nutrem a vida – familiar, econômica, cultural, política, ambiental e social. Uma vez iniciada a guerra, ninguém – mesmo aqueles que nominalmente estão incumbidos de fazê-la – pode adivinhar o que ocorrerá, como a guerra se desenvolverá, como esta pode levar exércitos e nações à loucura suicida. Não existem guerras boas. Nenhuma. Isso inclui a Segunda Guerra Mundial, que foi higienizada e mitologizada para celebrar falsamente o heroísmo, a pureza e a bondade dos EUA. Se a verdade é a primeira vítima na guerra, a ambiguidade é a segunda. A retórica belicosa aplicada e amplificada pela imprensa estadunidense – demonizando Vladimir Putin e elevando os ucranianos ao status de semideuses, exigindo uma intervenção militar mais robusta, junto com as sanções aleijantes cuja intenção é a de derrubar o governo de Vladimir Putin – é infantil e perigosa. A narrativa das mídias russas é tão simplista quanto as nossas.

Não havia discussões sobre pacifismo nos porões de Sarajevo quando estávamos sendo atingidos por centenas de bombas sérvias por dia e sob o fogo constante dos franco-atiradores. Fazia sentido defender a cidade. Fazia sentido matar ou ser morto. Os soldados sérvios no Vale de Drina, em Vukovar, Srebrenica, demonstraram amplamente a sua capacidade de infligir violências assassinas, incluindo o fuzilamento de centenas de soldados e civis e o estupro por atacado de mulheres e meninas. Mas isso não salvou qualquer um dos defensores de Sarajevo do veneno da violência, da força destruidora de almas que é a guerra. Conheci um soldado bósnio que ouviu um som atrás de uma porta quando estava patrulhando nos subúrbios de Sarajevo. Ele disparou uma rajada do seu fuzil AK-47 através da porta. Um atraso de alguns segundos em combate pode significar a morte. Quando ele abriu a porta, encontrou os restos ensanguentados de uma menina de 12 anos. A filha dele tinha 12 anos. Ele jamais se recuperou.

Apenas os autocratas e políticos que sonham com um império e a hegemonia global, com o poder quase-divino que vem com o uso de exércitos, aviões e frotas navais de guerra, junto com os mercadores da guerra, cujos negócios inundam países com armas – só estes lucram com a guerra. A expansão da OTAN à Europa Oriental rendeu bilhões em lucros para a Lockheed Martin, a Raytheon, a General Dynamics, a Boeing, a Northrop Grumman, a Analytic Systems, a Huntigton Ingalls, a Humana, a BAE Systems e a L3Harris. O abastecimento do conflito na Ucrânia lhes renderá muitos bilhões mais.

A União Europeia alocou centenas de milhares de euros para comprar armas para a Ucrânia. A Alemanha quase triplicará o seu orçamento de defesa para 2022. O governo Biden pediu ao Congresso dos EUA para prover US$ 6,4 bilhões de fundos para ajudar a Ucrânia, suplementando os US$ 600 milhões de ajuda militar à Ucrânia ao longo do ano passado. A economia de guerra permanente opera fora das leis de oferta e demanda. Ela é a raiz do atoleiro de duas décadas dos EUA no Oriente Médio. Ela é a raiz do conflito com Moscou. Os mercadores da morte são satânicos. Quanto mais cadáveres eles produzem, mais se incham as suas contas bancárias. Eles ganharam dinheiro com este conflito – um que agora flerta com o holocausto nuclear que exterminará a vida na Terra como nós a conhecemos. 

A perigosa e tristemente previsível provocação da Rússia – cujo arsenal nuclear coloca a espada de Dámocles sobre as nossas cabeças – ao expandir a OTAN foi entendido por todos nós que reportamos na Europa Oriental em 1989, durante as revoluções e o desmembramento da União Soviética.

Esta provocação, que inclui o estabelecimento de uma base de mísseis da OTAN a 100 milhas (cerca de 160 quilômetros) da fronteira da Rússia, foi insensata e altamente irresponsável. Jamais fez sentido geopolítico. No entanto, isto não desculpa a invasão da Ucrânia. Sim, os russos foram seduzidos. Mas eles reagiram apertando o gatilho. Isso é um crime. O crime deles. Rezemos por um cessar-fogo. Trabalhemos por um retorno à diplomacia e à sanidade, por uma moratória sobre embarques de armas para a Ucrânia e pela retirada das tropas russas do país. Tenhamos a esperança por um fim à guerra, antes que tropecemos num holocausto nuclear que devore a todos nós.


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