sábado, 26 de março de 2022

Guerra da Ucrânia: diferenças entre fabricantes de paçoca e de notícias, por Luis Nassif

 

Junto com Biden, Antony Blinken foi beneficiário dos grandes negócios da guerra. A aproximação com a Ucrânia rendeu a Biden uma propina mensal de 50 mil dólares, pagas a seu filho por uma petroleira controlada pelo governo de Petro Porosenko, o oligarca que assumiu a presidência do país depois da deposição do presidente pró-Rússia.

Bula para ler este artigo: ele se concentrou as informações sobre Joe Biden e os Estados Unidos, porque sobre Vladimir Putin e a Rússia há informações de minuto a minuto por parte da mídia.

Qual a diferença entre o fabricante de paçoca, de chocolate, de doce e de notícias, que reduzem a quantidade de produtos oferecidos na mesma embalagem? A diferença é que os produtos industriais são obrigados pelo Procon a informar a redução do conteúdo. Já o produto notícia, não.

Caso contrário, antes de cada comentarista parcial o distinto público seria informado que, “nesta embalagem tiramos qualquer produto que possa comprometer o roteiro da guerra da Ucrânia, de luta do bem contra o mal”.

O roteiro da Marvel faz com que se escondam notícias essenciais para entender a lógica do conflito e, principalmente, os interesses em jogo.

A grande indústria da guerra fica escondida sob o manto diáfano da luta pela democracia contra as ditaduras. E os principais protagonistas “do nosso lado” têm seus vícios e interesses ocultos.

Houvesse jornalismo, o distinto público saberia que, numa ponta, há um autocrata insensível – Vladimir Putin – e, na outra, políticos oportunistas que faturam em cima da indústria da guerra – entre eles o presidente americano Joe Biden e o Secretário de Estado Antony Blinken. E talvez avaliasse melhor quem seria a maior ameaça à paz mundial, se Donald Trump ou Joe Biden.

Mas vamos por partes, para entender o enredo.

Peça 1 – Blinken e a Ucrânia

O primeiro passo é entender que, desde a posse de Biden, o conflito com a Rússia estava dado e a expectativa da adesão da Ucrânia à OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) era dada como certa.

Atlantic Council é um think tank dos Estados Unidos, centro de lobby que junta altos funcionários americanos e potentados árabes, grandes grupos empresariais e ex-presidentes e ex-primeiros ministros de vários países, executivos da indústria bélica e de bancos internacionais e procuradores gerais de países periféricos. Nasceu das entranhas da própria OTAN.

Foi um dos centros propagadores da Lava Jato nos Estados Unidos, cooptando procuradores gerais com miçangas – participação simbólica em seu conselho, como ocorreu com Rodrigo Janot.

Tem em seu conselho ex-Secretários de Estado, como Madeleine Albright, CEOs de grandes companhias, ex-primeiros-ministros e ex-presidentes de vários países, executivos de indústrias bélicas e bancos internacionais.

Talvez seja o mais influente fórum a reunir oligarcas de vários países com altos funcionários públicos e procuradores, juízes e governantes de países periféricos, articulando a indústria da guerra e os interesses de sua clientela com bandeiras anticorrupção e outros estratagemas.

Foi também um dos principais centros do lobby ucraniano de Zelensky nos Estados Unidos.

A escolha de  Antony Blinken para Secretário de Estado entusiasmou a organização que previu uma aproximação intensa com a Ucrânia

“Blinken é visto como um defensor da luta da Ucrânia contra a agressão russa e alguém que tem uma profunda compreensão das realidades geopolíticas pós-soviéticas”, disse em seu portal.

Como conselheiro de segurança nacional de Barak Obama, Blinken teve papel influente na aplicação de sanções contra a Rússia  pela invasão da Crimeia e do leste da Ucrânia em 2014.

A publicação lembra que, como vice-presidente, Biden cuidou do portfólio da Ucrânia e fez inúmeras visitas a Kiev. Evita informar que conseguiu uma sinecura de 50 mil dólares mensais para seu filho, em uma petroleira ucraniana.

Para analisar as consequências sobre a Ucrânia da nomeação de Blinken, o Atlantic Council ouviu vários especialistas que não deixavam dúvidas sobre os propósitos bélicos de Biden-Blinken.

John Herbst, da Eurasia Center

O governo Biden fornecerá grande apoio à Ucrânia, pois resiste à agressão do Kremlin. Esse apoio incluirá suprimentos militares e armas letais. Vale lembrar que Biden apoiou o envio de lanças para a Ucrânia durante o governo Obama. (…) Uma parte importante disso será fortalecer a OTAN e buscar relações mais estreitas com a UE e os principais estados europeus.

Oleksiy Goncharenko, deputado ucraniano, Partido Europeu de Solidariedad

Blinken também conhece muito bem a Ucrânia. Ele tem uma experiência considerável de cooperação com as autoridades ucranianas e tem, pode-se dizer, uma posição pró-ucraniana clara e inequívoca quando se trata da Guerra Russo-Ucraniana. Essa postura foi refletida em seu artigo de opinião do New York Times de 2017 intitulado: “Hora do governo Trump armar a Ucrânia”. 

Solomiia Bobrovska, deputada ucraniana , partido Holos

Sua abordagem de política externa em relação à Ucrânia provavelmente envolverá ajuda no combate à agressão russa, juntamente com o apoio à continuação das reformas anticorrupção que começaram após a Revolução da Dignidade de 2014.

Melinda Haring, vice-diretora, Eurasia Center , Atlantic Council

Blinken está absolutamente empenhado em garantir que a Ucrânia finalmente se torne membro da comunidade euro-atlântica e, eventualmente, se junte à OTAN. Mas ele não é moleque. Não espere que ele dê um passe para a Ucrânia. Guiados por uma forte bancada ucraniana, os Estados Unidos vão colocar os pés de Zelenskyy no fogo e insistir que o país lide com a corrupção doméstica e reforme seus tribunais antes de receber ajuda externa maciça. 

Volodymyr Dubovyk, Professor Associado , Universidade Nacional de Odesa Mechnikov

Blinken também saiu cedo em apoio ao fornecimento de armas letais à Ucrânia, mas acabou no lado perdedor desse debate em particular ao lado do próprio Biden. Agora que Biden está no comando, podemos esperar que Blinken trabalhe em estreita colaboração com o presidente e com o Congresso dos EUA para impulsionar a política dos EUA em relação à Ucrânia com um renovado senso de propósito.

Peça 2- Blinken em 2017, no NYTimes

Ainda no governo Trump, no dia 4 de outubro de 2017, Blinken publicou artigo no NYTimes com o sugestivo título: “É hora do governo Trump armar a Ucrânia”.

Na época, como se verá mais abaixo, ele fundou uma empresa de private equity para investir na indústria de defesa.

Diz ele:

“O presidente Barack Obama concluiu que deveríamos manter o foco onde tínhamos vantagem: em sanções duras, ajuda econômica à Ucrânia, treinamento para suas tropas, apoio a seus esforços de reforma – especialmente combate à corrupção endêmica – e diplomacia determinada.

Isso foi antes. Por três anos e meio, Moscou ultrapassou todas as saídas diplomáticas oferecidas pelos Estados Unidos e pela Europa para acabar com a crise. (…) O que pode dar a Putin uma pausa para aumentar a temperatura mais uma vez no leste da Ucrânia – ou pior, dar outra mordida inteira fora do país – é o conhecimento de que suas tropas estariam seriamente ensanguentadas ao fazê-lo. A chanceler Angela Merkel da Alemanha, que já foi a principal opositora da ajuda letal, agora está aberta a ela”.

No artigo ficam nítidos:

  • A desconfiança sobre as intenções de Putin em relação à Ucrânia.
  • Uma corrida armamentista e o uso da OTAN para cercar a Rússia e demovê-la de outras invasões.

Basta uma leitura do artigo para acabar com a versão de que não havia risco imediato da Ucrânia aderir à OTAN. É evidente que havia, como havia também a convicção de que Putin não desistiria de sua ofensiva sobre a Ucrânia.

Peça 3 – Blinken e Biden, os senhores da guerra

Blinken sempre foi um dos falcões mais aguerridos do Partido Democrata. 

Como diretor da assessoria democrata no Comitê de Relações Exteriores do Senado defendeu a invasão do Iraque.

No governo Obama, como vice-presidente do presidente e conselheiro de segurança nacional do vice-presidente Joe Biden, ajudou a elaborar a política externa dos EUA para Afeganistão, Paquistão e o programa nuclear do Irã.

Segundo informações postadas na Wikipedia, defendeu a decisão de Obama de matar Osama bin Laden, foi um dos principais atores na elaboração de uma política para a Síria, apoiou a intervenção militar de 2011 na Líbia e o fornecimento de armas aos rebeldes sírios. Apoiou a intervenção da Arábia Saudita no Iêmen.

Após a ocupação do Iraque, Blinken ajudou Biden a preparar uma proposta no Senado de ocupação do país, dividindo-o em três regiões independentes, de acordo com as etnias do país. A proposta foi rejeitada maciçamente pelo Senado e pelo próprio governo do Iraque.

Recém nomeado Secretário de Estado, Blinken visitou a Ucrânia.

No Atlantic Council, os comentários insistiram na tecla da ameaça russa, mas também da corrupção no país, que não foi adequadamente enfrentada por Zelensky.

E o fator OTAN já estava na mesa:

“Antes da cúpula Biden-Putin, parece que os americanos estão calibrando uma ofensiva diplomática de cerco e apoio por meio de alianças. As primeiras reuniões de Blinken na Europa foram com a OTAN, depois com os ministros da UE e do G7”, comentou Diane Francis, Senior Fellow da Atlantic Council. “E nesta semana, o presidente Biden anunciou que participará de uma cúpula virtual em 13 de maio com nove países da OTAN do Leste Europeu que fazem fronteira com a Ucrânia e o Mar Negro. Isso garantirá que, quando Putin finalmente encontrar Biden, a conversa não seja simplesmente de mão dupla. Muitos outros interessados ​​já terão se juntado ao lado da América”.

Peça 4 – Blink e Biden e os negócios da guerra

Junto com Biden, Blinken foi beneficiário dos grandes negócios da guerra. A aproximação com a Ucrânia rendeu a Biden uma propina mensal de 50 mil dólares, pagas a seu filho por uma petroleira controlada pelo governo de Petro Porosenko, o oligarca que assumiu a presidência do país depois da deposição do presidente pró-Rússia. Seu canal de TV, o Canal 5, foi um dos principais estimuladores das manifestações que resultaram na queda do presidente ucraniano.

Em 2017, Blinken co fundou a WestExec Advisors , uma empresa de consultoria em estratégia política, com Michèle Flournoy (Vice-Secretária Adjunta de Defesa para Estratégia sob o presidente Bill Clinton e subsecretária de Defesa para Política no governo Barack Obama), Sergio Aguirre (ex-Departamento de Estado e ex-Pentágono) e Nitin Chadda (ex-assessor senior do Departamento de Defesa). Seguem-se mais 40 nomes de colaboradores, quase todos militares da reserva ou diplomatas aposentados.

Segundo a Wikipedia,  os clientes da WestExec incluem a Jigsaw do Google , a empresa israelense de inteligência artificial Windward, a fabricante de drones de vigilância Shield AI, que assinou um contrato de US$ 7,2  milhões com a Força Aérea, e ” Fortune 100 types”. De acordo com a Foreign Policy , a clientela da empresa inclui “a indústria de defesa, empresas de private equity e fundos de hedge”.Blinken recebeu quase US$ 1,2  milhão em compensação da WestExec.

Blinken também juntou-se a outros membros da equipe de transição de Biden –  Michele Flournoy , ex-assessor do Pentágono, e Lloyd Austin , secretário de Defesa – para constituir a empresa de private equity Pine Island Capital Partners.

Na reta final da campanha de Biden, a Pine Island levantou US$ 218  milhões para uma empresa de aquisição de propósito específico (SPAC), uma oferta pública para investir em “indústrias de defesa, serviços governamentais e aeroespaciais”.

Ele deixou a empresa para servir ao governo Biden, como principal agente dos interesses da indústria de armas.

As informações sobre os negócios de Biden na Ucrânia foram escondidas pela mídia americana até recentemente.

Peça 5 – a doutrina Sardenberg de invasão

No dia 10 de março passado, The Guardian expôs de maneira exemplar a hipocrisia da guerra, em artigo de Peter Beinart:

Em dezembro, quando as forças russas cercaram a Ucrânia, o governo Biden e seus aliados fizeram um alerta severo a Vladimir Putin: “Qualquer uso de força para mudar as fronteiras é estritamente proibido pelo direito internacional”. Em janeiro, quando as tropas russas se reuniram em número ainda maior, o secretário de Estado Antony Blinken acrescentou que “a inviolabilidade das fronteiras” estava entre os “princípios orientadores do comportamento internacional”. No mês passado, depois que o parlamento da Rússia reconheceu a independência de duas autodeclaradas repúblicas que Moscou havia separado do leste da Ucrânia, Blinken chamou essa violação à “soberania e integridade territorial da Ucrânia” uma “violação grosseira do direito internacional”.

Tudo isso é indiscutivelmente verdade. Refazer fronteiras pela força viola um princípio fundamental do direito internacional. É por isso que o governo Biden deve fazer mais do que resistir à agressão da Rússia na Ucrânia. Deve parar de violar esse próprio princípio.

Em 2019, o governo Trump fez dos Estados Unidos o único país estrangeiro a reconhecer a anexação das Colinas de Golã por Israel, que Israel tomou da Síria na Guerra de 1967. O professor de direito da Universidade de Tel Aviv, Eliav Lieblich , observou que a decisão – que contradiz uma resolução unânime do Conselho de Segurança das Nações Unidas apoiada pelos próprios EUA – constitui um “desvio significativo da proibição legal fundamental de anexação unilateral”. Oona Hathaway, da Yale Law School, chamou a medida de “ultrajante e potencialmente desestabilizadora para a ordem internacional do pós-guerra”. O governo russo chamou isso de “indicação do desprezo que Washington mostra pelas normas do direito internacional”.

Após a decisão de Trump, o senador de Illinois Richard Durbin pediu ao secretário de Estado Mike Pompeo que explicasse a diferença legal entre a anexação do Golã por Israel e a anexação da Crimeia por Moscou em 2014, que levou os EUA a impor sanções . Pompeo respondeu que “há doutrina de direito internacional sobre esse ponto. Não temos tempo para começar a passar por isso hoje. Mas [estou] feliz por ter uma equipe passando e orientando você por isso.” Quando os jornalistas fizeram o acompanhamento, o Departamento de Estado não citou nenhuma doutrina de direito internacional. Ao contrário, uma porta-voz do departamento declarou, sem sentido, que “a política dos EUA continua sendo que nenhum país pode mudar as fronteiras de outro pela força”.

As bases dessa teoria foram anunciadas pelo especialista em geopolítica Carlos Alberto Sardenberg em artigo recente:

“Chega de comparar a invasão da Ucrânia com Iraque, Líbia, Síria, Afeganistão — Estados incentivadores de terrorismo. EUA e Europa têm seus pecados, mas não se pode compará-los à Rússia de Putin.”

E mais não disse, nem lhe foi perguntado.

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