quarta-feira, 10 de outubro de 2018

Jornalismo e democracia: construção e desconstrução, por Samuel Lima



   "Num processo eleitoral atípico, ímpar na história recente do país, a imprensa protagonizou talvez uma de suas piores performances, paradoxalmente à inegável capacidade técnica e tecnológica de produzir um insumo democrático tão valioso que é a informação jornalística. O processo eleitoral se dá ainda no curso de um golpe institucional (protagonizado pelo Congresso, Judiciário, mídia hegemônica, com respaldo de forças políticas mais retrógradas da sociedade), que interrompeu a recente experiência democrática em curso, desde 1989."


Imagem: Demétrio Andrade
do objETHOS
por Samuel Lima (*)

Num processo eleitoral atípico, ímpar na história recente do país, a imprensa protagonizou talvez uma de suas piores performances, paradoxalmente à inegável capacidade técnica e tecnológica de produzir um insumo democrático tão valioso que é a informação jornalística. O processo eleitoral se dá ainda no curso de um golpe institucional (protagonizado pelo Congresso, Judiciário, mídia hegemônica, com respaldo de forças políticas mais retrógradas da sociedade), que interrompeu a recente experiência democrática em curso, desde 1989. Neste texto, esboço respostas para a questão: qual a responsabilidade da mídia tradicional e hegemônica na desconstrução democrática por que passa o país, nos últimos cinco anos, em especial?
No começo de agosto, uma pesquisa do Ibope Inteligência (https://glo.bo/2RvndKB) apontava o peso da informação jornalística nas eleições: 7 em cada 10 eleitores afirmavam que usariam as notícias para decidir seus votos: “Mesmo com o advento da internet, a pesquisa mostrou ainda que a mídia mais usada pelo brasileiro para se informar sobre política é a televisão (62%). Depois, vêm a mídia tradicional na internet (33%), redes sociais e blogs (26%), jornais impressos (17%) e rádio (17%)”.
Estes dados são corroborados pela audiência aferida nos principais portais noticiosos e nas referências de audiência de televisão, citados pela jornalista Paula Cesarino Costa (ombudsman da Folha de S. Paulo):
"A Folha teve 41,4 milhões de visitantes únicos em seu site em setembro (2018), a melhor performance mensal em 2018. As entrevistas com presidenciáveis aumentaram a audiência dos telejornais da TV Globo e mais do que quadruplicaram a da Globo News. O G1 atingiu a maior média diária de visitas (12,8 milhões) de sua história, com um total de 385 milhões no mês. O site da revista Veja bateu recorde de audiência, com 35 milhões de usuários, e os 20 conteúdos mais acessados tratavam de eleição (https://bit.ly/2zXmU4x, grifos meus)."
O peso da instituição imprensa na construção ou desconstrução da democracia advém de seu poder de fala e de sua capacidade de produzir um tipo de conhecimento, que alimenta uma robusta circulação social da informação, fenômeno único na história da humanidade. Em jogo permanente, a disputa da hegemonia das ideias na sociedade. Contudo, o jornalismo brasileiro está mergulhado, de um lado, numa crise de sustentabilidade financeira, enquanto indústria da informação; ao mesmo tempo, suas taxas de credibilidade estão em queda livre: o Índice de Credibilidade Social (ICS), medido pelo Ibope Inteligência em julho de cada ano, aponta uma queda de confiança de 71%, em 2009, para 51% em julho de 2018.
Em parte, a perda de credibilidade se explica por efeitos da expansão das redes sociais. Cerca de 120 milhões de brasileiros usavam o aplicativo WhatsApp, em agosto de 2018, segundo levantamento feito Mensageria no Brasil, promovido pela Panorama MobileTime e OpinionBox. O Facebook, segundo dados da própria empresa, em julho de 2018, alcança a casa dos 127 milhões de usuários. O Twitter conta 41 milhões de usuários. Por estes canais, circularam dezenas de milhares de posts e uma profusão de fake news que impactaram os resultados, especialmente na disputa presidencial – algo particularmente difícil de ser mensurado. Os primeiros dados da Agência Lupa mostram “que as 10 notícias falsas mais populares flagradas por seus checadores desde o mês de agosto tiveram juntas mais de 865 mil compartilhamentos no Facebook” (https://bit.ly/2QAEiRN).
Militância Antidemocrática
Nas primeiras horas da manhã deste primeiro turno (07/10), observei o que diziam os editoriais e os principais colunistas dos três jornais impressos mais importantes do país – Folha de S. Paulo (FSP), O Globo (OG) e O Estado de S. Paulo (OESP). De modo geral, a cobertura da campanha nos principais veículos de comunicação foi rasa, errática e se resumiu, nas principais emissoras de televisão aberta, por exemplo, à divulgação das agendas dos candidatos a presidente da República. Isso marcou todo o período oficial de campanha, a partir de 16 de agosto (liberação para comícios, carreatas, divulgação de material impresso das campanhas) e, de forma mais específica, entre 31/08 a 04/10/2018, 45 dias de propaganda eleitoral gratuita em rádio e televisão.
Li com espanto e assombro algumas das principais colunas dos três maiores jornais – Hélio Schwartsman (FSP), Eliane Cantanhêde (OESP) e Miriam Leitão (OG). Numa disputa entre o campo democrático (com matizes ideológicos do PSTU ao Partido Novo, passando pelo PSOL, PT, PDT, Rede, MDB, PSDB e Podemos) e uma candidatura que simboliza valores antidemocráticos e flerta abertamente com princípios fascistas – defesa da tortura, apologia ao estupro, racismo, agenda econômica ultraliberal etc. – nenhuma palavra dos colunistas em defesa dos valores democráticos duramente conquistados pela sociedade brasileira. A movimentação da imprensa tradicional, aqui representada por estes colunistas, foi no sentido de configurar dois polos extremos (PT x Bolsonaro), artificializando com falsas equivalências uma polarização simplista e, no limite da irresponsabilidade, antidemocrática.
Schwartsman (FSP) indagou no título: “A festa da democracia?” (https://bit.ly/2EdRCtY). Num raciocínio típico da falsa equivalência, o colunista escreve: “Apesar do discurso radical e irresponsável, concretamente Bolsonaro nada fez que possa ser descrito como uma violação às regras democráticas” (grifo meu). Do candidato Fernando Haddad, disse: “O problema com o PT é que ele parece invulnerável ao aprendizado econômico. Seu programa insiste em algumas das teses que, sob Dilma, produziram a megarrecessão”. Entre ironias e o conselho de cuidado com os discursos “exaltados”, encerrou endossando o clichê da extrema direita: “Depois de hoje estaremos reduzidos a escolher se enterraremos a democracia elegendo Bolsonaro ou nos tornaremos uma Venezuela optando por Haddad”.
Num argumento conservador e militante mais intenso, como tem sido sua marca, Eliane Cantanhêde (OESP) passou longe de mediar ou de defender a democracia no texto “As duas seitas”: “O confronto é entre duas seitas, lulistas e bolsonaristas, mas viva a democracia! Se a seita PT obedece a tudo o que seu mestre Lula mandar, a seita bolsonarista bate continência a todas as ordens do capitão Bolsonaro” (Fonte: https://bit.ly/2NwbZlT). Ao reduzir o confronto entre o campo democrático e o projeto fascista a uma disputa entre “seitas”, a colunista do Estadão presta um desserviço à luta pela democracia como valor estratégico à convivência social contemporânea.
Míriam Leitão (OG) foge da perspectiva de repercutir o ódio disfarçado de “neutralidade”. A boa tentativa esbarra em vieses próprios da cobertura, especialmente na Globo News. No texto “Lições das eleições dadas pelo avesso” (https://glo.bo/2zXBlW5), ela escreve que “a democracia brasileira foi desafiada por inúmeros eventos nessa campanha” (cita a facada no deputado carioca, o peso do voto evangélico – “muitos pastores reinstalaram o voto de cabresto” ou 50% do eleitorado evangélico votou no candidato do PSL – e, por fim, a ameaça que empresários passaram a fazer aos seus trabalhadores, pressionando-os a votar em Bolsonaro – caso de Luciano Hang, da Havan). Para manter-se pretensamente equidistante, Miriam critica o PT, que segundo ela “achava que conseguiria por imposição externa que o ex-presidente Lula fosse candidato”, mas “no último dia legal, anunciou Fernando Haddad, que passou a ideia de ser tutelado”. A colunista d’O Globo finaliza, no entanto, acreditando que o vencedor do 2º turno, seja quem for, “só terá chances de ser bem-sucedido se entender a opção brasileira pela democracia. Essa foi a escolha que já fizemos”.
 
Corrupção da opinião pública
O jornalismo informativo é um patrimônio da sociedade democrática contemporânea. Seu potencial de mobilização em prol de causas públicas, socialização de informações de interesse da população, o faz agente da construção do Estado Democrático de Direito. Contudo, quando abandona as perspectivas universais, guiadas pelo interesse público, e se amesquinha a defender interesses particulares (em geral, jamais ditos com clareza à audiência), converte-se num poderoso instrumento de desconstrução da democracia. A grande mídia jornalística brasileira abandonou a perspectiva de vigilância do poder público, a defesa de valores humanos universais como a igualdade social e os direitos das minorias e, por último, abriu mão de ser espaço equânime para as disputas políticas entre os diferentes atores e seus partidos.
Notem, leitores e leitoras, que nenhum/a eminente colunista, espécie de porta-vozes das empresas em que trabalham, faz qualquer menção ao impacto nefasto do jornalismo produzido por eles e seus pares sobre a formação da opinião dos mais de 147 milhões de eleitores, no jogo intenso e incessante da disputa da hegemonia das ideias na sociedade. Ante a este fenômeno, recorro ao cientista político Venício de Lima, em artigo publicado no site Carta Maior, que resume numa sacada lapidar: “a maior de todas as corrupções é a corrupção da opinião pública”.
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*Samuel Lima é jornalista, professor do Departamento de Jornalismo da UFSC e pesquisador do objETHOS


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