quarta-feira, 10 de outubro de 2018

O antipetismo das elites que se tornou repertório de trevas, por Bernardo Ferreira




  "Não consigo dimensionar o quanto há de pura má-fé nesse esforço de normalização e o quanto há de pura obtusidade intelectual e de cegueira dogmática. O fato é que faz parte desse trabalho de neutralização a ideia de que nem todos os eleitores do Bolsonaro comungam das suas ideias radicais. Era isso que dizia ontem Carlos Alberto Sardenberg (com perdão da palavra...) no rádio. Esse argumento contém uma meia verdade. É fato que muitos dos eleitores do Bolsonaro não partilham da sua defesa da tortura e da ditadura militar, da sua homofobia, da sua misoginia, do seu racismo, e por aí vai. Ocorre que, ao votarem no Bolsonaro contra o PT, eles prestam uma adesão indireta a esse repertório das trevas." - Bernardo Ferreira, cientista político




O antipetismo que se tornou repertório de trevas
por Bernardo Ferreira
Existe um movimento por parte da grande imprensa no sentido de normalizar esse processo eleitoral, como se estivéssemos, sim, numa disputa atípica, polarizada entre extremos, mas ainda possível de ser contida (no sentido, de enquadrada e restringida) na moldura normal das instituições constituídas. Daí a ideia de que, passada a eleição, haverá um caminho natural rumo à moderação dos “radicalismos”, que será imposta pelas próprias imposições do ato de governar e pelas restrições da vida institucional. Alguns coleguinhas da Ciência Política vêm dando uma contribuição inestimável a esse tipo de avaliação.
Não consigo dimensionar o quanto há de pura má-fé nesse esforço de normalização e o quanto há de pura obtusidade intelectual e de cegueira dogmática. O fato é que faz parte desse trabalho de neutralização a ideia de que nem todos os eleitores do Bolsonaro comungam das suas ideias radicais. Era isso que dizia ontem Carlos Alberto Sardenberg (com perdão da palavra...) no rádio. Esse argumento contém uma meia verdade. É fato que muitos dos eleitores do Bolsonaro não partilham da sua defesa da tortura e da ditadura militar, da sua homofobia, da sua misoginia, do seu racismo, e por aí vai. Ocorre que, ao votarem no Bolsonaro contra o PT, eles prestam uma adesão indireta a esse repertório das trevas. Ou seja, eles dizem, prefiro a tortura, a misoginia, a homofobia, a ditadura militar, em lugar do PT. Foi o que ouvi ontem na feira de uma distinta senhora de classe média que me dizia: “eu não sou contra o amor entre iguais, conheço estórias de amor muito bonitas entre gente do mesmo sexo. Nessa eleição, porém, eu sou #elenão, o PT”. Das duas uma, ou esse tipo de eleitor está tentando se enganar a respeito dos seus próprios preconceitos, ou está ignorando que presta uma adesão indireta aos valores do bolsonarismo com o seu voto. Talvez as duas coisas.
Suspeito que, depois de mais de trinta anos de hegemonia de um certo “bom senso civilizatório e democrático” encarnado nos grupos de centro (centro direita, centro esquerda) que governaram o país, essas travas e inibições civilizatórias se afrouxaram, sob um trabalho intenso, cotidiano de criminalização da política. Há muita gente dizendo, via seu voto no Bolsonaro: não quero mais me submeter a essa censura tácita. Talvez estejamos diante de uma brutal derrota no campo da hegemonia. Não vamos mudar isso da noite para o dia, tampouco em vinte dias. Permitam-me uma expressão um pouco pedante, há uma “economia social dos afetos” que se consolidou ou está em vias de consolidação e que demandará um tempo para ser desarmada (com trocadilho, por favor).
Não creio que haja algo a fazer em relação aos bolsonaristas convictos. Estes, salvo engano, estão fechados na sua obliteração. Mas há todos aqueles que, na sua recusa intransigente e cega do petismo, talvez não reconheçam ou não queiram reconhecer sua adesão indireta à pauta do bolsonarismo. Há muita gente por aí que pretende voltar no Bolsonaro ou anular o seu voto e está movida por essa aversão irracional ao PT. Não sei se é possível, mas precisamos convencê-las de que estão fazendo uma escolha indireta pela tortura, pela defesa da ditadura militar, pela misoginia, pelo racismo, pela homofobia, pela violência aberta como forma de solução dos conflitos. A defesa da democracia, em uma sociedade que parece estar tentando se desvencilhar de alguns freios civilizatórios que permitem a convivência democrática, talvez não passe de uma abstração. Além do mais, dirão alguns, como a democracia está sob ameaça? Estamos em plena competição eleitoral, expressando livremente as nossas posições e exercendo livremente, apesar dos reclamos do candidato de direita, o nosso direito de voto. Por outro lado, é bem provável que, como essa mulher que encontrei na feira, a recusa da misoginia, do racismo, do terror de Estado possa soar mais concreta. É bem possível que esse hipotético eleitor(a) conheça estória próxima de vivência da tortura durante a ditadura militar, uma amizade vítima do racismo ou de homofobia, uma pessoa da família que sofreu no trabalho alguma discriminação de gênero. Um amigo meu falava-me ontem sobre seu esforço de convencer a mãe, que havia votado em João Amoedo, a não anular o voto no segundo turno, dizendo que ela tinha uma sobrinha lésbica e que levar isso em conta era uma razão para não anular o voto. Talvez haja algum caminho por aí.
Bernardo Ferreira – professor do Departamento de Ciência Política da UERJ       
 

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