segunda-feira, 18 de novembro de 2019

O alento de Mafalda, a rebeldia chilena e… o Brasil que os ultradireitistas querem destruir mas que esperamos que os despertos nacionais não permitam... segundo texto de Thiago Dias da Silva



Alberto Fernández eleito na Argentina é ótimo sinal… mas é perigoso fiar-se na esperança em governantes. Melhor mirar-se no exemplo do Chile: as ruas pressionam o poder de baixo para cima, por perceber que vida não melhora sem a luta
Com a eleição de Alberto Fernández à presidência da Argentina, começou a circular pela internet uma charge bonitinha, feita por Nando Motta, em que Mafalda, a pequena argentina criada por Quino, abraça a nossa Mônica e lhe transmite uma mensagem de esperança: mejorará [vai melhorar].
A imagem me remeteu a uma frase poderosa que ouvi em um evento literário recente, e que portava a mesma esperança quanto ao futuro. Um grande escritor comentava um aspecto de sua obra e, como ninguém é de ferro, passou a criticar energicamente o governo e a situação tenebrosa em que nos encontramos. Ao fim, depois de listar várias das tenebrosas transações do governo federal, recuperou o fôlego e arrematou: “mas vai passar…”
A força da frase final arrancou palmas e sorrisos de uma plateia grande e claramente aliviada por essa frase simples e poderosa que Chico Buarque colocou no coração de todos nós.
Embora tenha aproveitado da pequena catarse coletiva, devo confessar que o alívio durou relativamente pouco. Não porque o governo tenha cometido algum novo absurdo, pois isto é o esperado, mas porque muito rapidamente uma questão me veio ao espírito – vai passar, vai melhorar: mas o que exatamente?
Não conheço a realidade argentina o suficiente para me pronunciar muito sobre ela, mas sei que em meus círculos de amigos, colegas, familiares, assim como na minha bolha virtual, a resposta a esta pergunta é simples e já está pronta: este governo vai passar. O governo de Macri passou e a Argentina mejorará. O de Bolsonaro vai passar e o Brasil vai melhorar.
Quero muito que o governo Bolsonaro passe (o quanto antes!), mas esta resposta não me basta porque eu nunca tive a menor dúvida de que o governo Bolsonaro vai passar. Mesmo que cada um de seus filhos seja eleito e reeleito em sequência, o governo vai passar. O governo iniciado em 1º de abril de 1964 demorou, mas passou.
O governo Bolsonaro vai passar porque governos, mais cedo ou mais tarde, passam, mas há certas coisas não passam com eles. O problema todo está justamente nisto que permanece. Mesmo depois das experiências dos governos petistas, a desastrosa desigualdade social brasileira não passou, a vergonhosa falta de saneamento básico não passou, a desumana situação dos presidiários, a estrutura autoritária deixada pela ditadura, o caráter vertical de nossa sociedade – nada disso passou.
Seria injusto afirmar que os governos petistas não fizeram nada passar, e seria uma tolice considerar que governos não podem fazer coisas passarem. Apesar disto, no entanto, é necessário considerarmos que este olhar excessivamente esperançoso dirigido a governos é problemático porque reforça certa ilusão de que mudar governos e apoiar governantes basta para fazer passar o que insiste em permanecer. Este olhar obsessivo para o alto tem como efeito colateral o pouco interesse por aquilo que acontece aqui embaixo, na sociedade; o olhar focado no alto reduz à visão periférica os movimentos sociais, os coletivos, as formas culturais de resistência, as formas locais de economia solidária, enfim, toda a pluralidade de ações possíveis fora do âmbito estatal.
Em termos simples, quanto mais esperança depositamos no Estado, menos energias empregamos na sociedade, de onde muita coisa pode surgir. A eleição de Fernández é uma boa notícia, mas não se deve exagerar as esperanças, que seriam maiores se marcassem uma movimentação organizada da sociedade argentina. No Brasil, a provável liberação de Lula, embora justa e necessária, deve ter como consequência negativa o prolongamento deste fascínio pela cadeira presidencial que é típico da história política brasileira e, lamentavelmente, parece ter capturado o melhor das energias de nossa esquerda nos últimos anos.
Deste ponto de vista, os movimentos realizados pela sociedade do Chile se mostram muito mais inspiradores que o governo Fernández ou o “Lula livre” e seu eventual terceiro governo. Eu não sei qual é a situação real dos movimentos sociais do Chile e não sei qual é a composição exata das manifestações recentes, mas a afirmação de que os chilenos não lutam por 30 pesos e sim contra 30 anos de neoliberalismo é inspiradora porque aponta para fenômenos de duração mais longa, porque aponta para uma temporalidade distinta da eleitoral.
Desde Pinochet, vários governos passaram pelo Chile, incluindo alguns do Partido Socialista, mas a vida ruim não passou. Ao longo dos últimos 30 anos, os chilenos tinham a certeza de que o governo vai passar, mas a vida deles não mejorará, e os movimentos recentes parecem indicar que a sociedade chilena está decidida a interromper os abusos que, entra governo e sai governo, insistem em não passar.
Trocando em miúdos, o mais que há de mais inspirador no levante chileno é que ele vem de baixo e pressiona o alto, ele vem de uma organização da sociedade contra o Estado. Uma candidatura presidencial não parece estar no horizonte dos movimentos, mas, se eventualmente aparecer alguma, é provável que esteja muito mais próxima da sociedade preocupada com os problemas que permanecem por 30 anos.
É claro que as manifestações podem resultar em algo ruim, mas há um antídoto contra isso precisamente no aprimoramento da organização da sociedade, na multiplicação dos encontros, dos movimentos, dos espaços para deliberação, da ativação de afetos alegres, da criação de instituições sociais, ou seja, de coisas que não passam pelo governo e podem funcionar sem referência ao calendário eleitoral.
Assim, apesar de manter junto ao peito a esperança de que mejorará, de que vai passar, e apesar de ter simpatias por Fernández, Lula, Mafalda e Mônica, o ânimo maior (e melhor!) é o que vem do Chile, onde a sociedade está dizendo “não!” a aflições que duram muito mais do que governos.

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