segunda-feira, 11 de novembro de 2019

Uma análise de fundo a partir do golpe de Estado na Bolívia (liderado por um fundamentalista fã de Bolsonaro), por Bruno Lima Rocha, pós-doutorando em economia política, doutor e mestre em ciência política



  Evo Morales e Linera concorreram. Na noite de 20 de outubro estariam ganhando, mas teria um segundo turno. Logo a contagem é interrompida e no retorno, pela legislação boliviana, a chapa oficialista supera em dez por cento o segundo colocado, o ex-presidente Carlos Mesa e, teria vencido. A oposição obviamente não aceita o resultado – na verdade não aceitaria resultado algum – e retomam uma sublevação a partir de Santa Cruz de La Sierra.



Uma análise de fundo a partir do golpe de Estado na Bolívia

por Bruno Lima Rocha

Introdução
As palavras que seguem somam uma reflexão de fundo antecedida pelo fato, imediato, do golpe de Estado na Bolívia. O modelo de análise seria tomando por base o caso boliviano, a Constituição Plurinacional e a multiplicidade jurídica que assegura a “autonomia decisória e soberania popular de fato nos territórios”. Não imaginava que teria de fechar o texto assistindo ao vivo pela Telesur e Bolívia TV o discurso de renúncia do presidente e seu vice.
Golpe de Estado na Bolívia
Domingo, 10 de novembro, se decreta um golpe de Estado na Bolívia. Inicia com a quarta reeleição da dupla de candidatos do Movimento ao Socialismo (MAS)-IPSP (Instrumento Político pela Soberania dos Povos). Deixo aqui a crítica, explícita, de que o MAS/IPSP teria, necessariamente, de indicar novos candidatos e assim quebrar o ciclo de concentração de poder, algo que, evidentemente, fortalece a posição dos partidos à direita e ligados ao imperialismo mais tacanho. Ocorre justo o oposto.
Evo e Linera concorreram. Na noite de 20 de outubro estariam ganhando, mas teria um segundo turno. Logo a contagem é interrompida e no retorno, pela legislação boliviana, a chapa oficialista supera em dez por cento o segundo colocado, o ex-presidente Carlos Mesa e, teria vencido. A oposição obviamente não aceita o resultado – na verdade nãoaceitaria resultado algum – e retomam uma sublevação a partir de Santa Cruz de La Sierra. Liderados por Luís Fernando Camacho, à frente do Comitê Cívico desta localidade (que possui expansão nacional,) operando como força de choque, iniciam os cercos nas grandes cidades, nas estradas e ampliam a conspiração junto às forças mais reacionárias. Articulações com igrejas evangélicas com base nos EUA, papel fundamental da União Europeia, da recontagem da Organização dos Estados Americanos (OEA) e fortes suspeitas da presença de operadores brasileiros (ver: https://elperiodicocr.com/bolivia-filtran-audios-de-lideres-opositores-llamando-a-un-golpe-de-estado-contra-evo-morales/). Há que se levar em conta o papel dos meios de comunicação privados e pertencentes aos oligarcas, como também do acionar de redes muito conservadoras de igrejas pentecostais. Lemas como “a bíblia de volta ao palácio” circularam influenciados por robôs e servidores que teriam a mesma origem dos operados nas eleições brasileiras. Ou seja, um enredo mais ou menos previsível.
Na manhã de domingo, 10 de novembro, já sem nenhuma capacidade de defesa do Estado e menos ainda das instituições de base (das organizações sociais), altos mandos militares se declararam em desobediência ao Chefe de Estado e aquartelados. Segundo o que circula através de militantes feministas na Bolívia, o procedimento dos “centros e uniões cívicas” é cercar uma sede de sindicato, associação ou movimento indígena, incendiar esta sede, baixar a bandeira Whipala (indígena de base aimará), erguer a bandeira do país e entoar o hino nacional. Ato explicitamente racista e anti-indígena. Era previsível a capacidade de instabilizar e surpreende o fato de não montar uma estrutura de resistência.
É incompreensível. O governo deposto do MAS, no último pronunciamento público de Evo, afirma que confiava inteiramente na Polícia Nacional! Isso depois de tudo o que a Bolívia passou, contando apenas com o século XXI. Dia 20 de outubro, domingo, foram às eleições sabendo que poderia haver virada de mesa por parte da direita. Logo, porque não prepararam a base para resistir? Tinham base social para isso? Pelo visto não. Ah, Evo reclama, quase 80% da formação da Polícia Nacional é de origem indígena. E? O pertencimento étnico supera a disciplina militarizada? Óbvio que não. Confiaram cegamente na “lealdade dos militares”? Em 2008 a tentativa de golpe foi derrotada na rua. E a resistência? Onde estão os Ponchos Rojos? E agora?
Transformar uma sociedade através  do Estado? 
Definitivamente o Estado é um aparelho complexo, tem desde o serviço público sob alguma forma de pressão popular (como no caso brasileiro, o combalido SUS ou a educação pública) e ao mesmo tempo não é só governo e serviços, têm corpos especializados permanentes, verdadeiros estamentos, como o Judiciário, o Ministério Público (MPF e Estaduais) e o conjunto do aparelho repressivo.
O Estado se for dotado de corpos militarizados (tal é o caso do golpe cívico-midiático-policial na Bolívia, em curso), tem relação de mando e obediência e divisão social do trabalho entre oficiais e praças. Logo, este tipo de instituição não produz novas formas de reprodução da vida, ao contrário. Tais corpos tendem a se reproduzir mesmo sob mudanças extremas de regimes, vide o caso do Império Russo (Okhrana), Períodos soviéticos (Cheka, GPU, NKVD, KGB) e Rússia de novo (KGB).
Portanto, assim como é necessário ousar no arranjo Jurídico (a exemplo das Constituições Plurinacionais de Equador e Bolívia) é preciso ousar em instituições tabus, como as de autodefesa na América Latina. Se militarizar um processo de câmbio, mata a semente, ou ficamos dependentes das cadeias de comando (tal como Velasco Alvarado foi sucedido por militares pró-EUA, o mesmo ocorrendo no Panamá, quando Manuel Noriega termina tomando o poder após o assassinato de Omar Torrijos). O inverso também é verdadeiro. Se não nos defendermos, como país e territórios soberanos, morremos quase todos e enterramos vivos nossos projetos.
Qual economia política aponta processos de câmbio?
É preciso repensar a economia política mesmo dentro do capitalismo. Se não romper com a falácia fiscalista (a mentira vem assim “não tem verba porque não tem dinheiro, não tem dinheiro porque não há crescimento”) NÃO HÁ SAÍDA DE CRÉDITO. Se esta falácia acima citada fosse verdadeira, os EUA não teriam saído da Grande Depressão. É circulando dinheiro em suas várias funções (unidade de conta, reserva de valor, elemento de troca, garantia de depósitos e transações) que faz girar a economia capitalista e outras também (como com moedas sociais). Logo, se não romper com a falácia fiscalista (insisto com isso), as comunidades territoriais vão sobreviver com seus recursos, mas haverá ausência de política pública.
Mas só a economia capitalista na forma de serviço público não resolve. Essa constatação vale para reservas territoriais e a gigantesca mancha metropolitana na América Latina. Os territórios e seus projetos produtivos não precisariam ficar apenas no jogo econômico do capitalismo. Já ocorrem feiras de trocas, circulação de moedas sociais, crédito comunitário sem usar a moeda oficial. Enfim, como os tempos que vêm serão de ainda maior escassez, quanto maior o volume de experiências de economia comunal melhor, até porque, não se desenvolve tudo do zero se houver transformação da sociedade, ainda que na forma intermediária de duplicidade ou multiplicidade jurídica.
Quem governa e como governa? Fazer o que com as relações de poder local?
É preciso pensar alguma forma de co-governo, de elementos de pressão no poder municipal e nas regiões. Tem tradições que chamam isso de municipalismo libertário e ecologia social, mas podemos denominar de outros conceitos, tal é o caso do Curdistão sob Confederalismo Democrático. Tem experiências vitoriosas deste municipalismo na América Latina, tanto no maior autogoverno e autonomia, como em Chiapas e em todos os estados mexicanos, como na ação urbana de Cochabamba, Bolívia, na chamada “guerra da água” que ocorreu entre abril e junho de 2000. Ali foi a virada que levou, inclusive, à vitória na Guerra do Gás, em 2003 e a consequente vitória eleitoral do MAS/IPSP (em dezembro de 2005) e a Constituição Plurinacional (de fevereiro de 2009).
Fazer dos territórios formas de vida e escolas de resistência múltipla e igualitária?
Para no mínimo gerar um Impasse Político, ou uma dualidade de Poder Político no país, tomando como exemplo a ação da Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE), é preciso além da luta por terra e território, ousando em nova juridicidade baseada em usos e costumes e, no caso brasileiro, necessariamente passando por Diálogo Inter Religioso (não sei se esse termo está correto, mas fico aguardando aportes para o conceito adequado). Unir o povo na sua diversidade, também nos quesitos de jurisdição e resolução de conflitos. Isso já ocorre em diversos locais da América Latina e do Caribe. Um exemplo se dá nos municípios de maioria indígena na Guatemala, como uma compensação e até vitória pontual depois de 33 anos de guerra civil (1962-1995). No caso brasileiro, há uma consideração importante. Temos a condição demográfica de não contar com uma maioria indígena e sermos um país metropolitano, onde a população afro-brasileira é majoritária e as culturas afro-brasileiras operam como espinha dorsal da nacionalidade moderna. Logo, o debate entre Religiões Afro-Brasileiras, Cristianismo Popular e sim, uma enorme parcela das Igrejas Evangélicas – como projeto de poder social materializável – esse debate mesmo sendo delicado, deve seguir. Importante ressaltar que o reboquismo nunca leva a nada a não ser o desastre. A CONAIE só está viva porque não teve adesão, não se subordinou ao governo de Rafael Correa. Mas só consegue virar situações limites porque faz aliança com a luta urbana e metropolitana.
 Projeto político, projetos políticos e consequências?
Eu seria irresponsável se não lhes colocasse a relevância da soberania alimentar e a defesa do território diante das pressões do Sistema Interacional, incluindo aí a China, que é dona da Syngenta, por exemplo. O mínimo que um país precisa é se alimentar, ter energia o suficiente para o que necessita ou projeta, manter seus recursos naturais sob controle popular e poder se defender. Mesmo em uma situação de um governo mais à esquerda, sem necessariamente um processo de câmbio, quem vai empurrar este “suposto governo” é o conjunto de povos auto organizados dos Brasis. O mesmo se dá nos demais países da América Latina. Não devemos nos perguntar se em isso acontecendo, se vai ter virada de mesa. Mas sim quando os colonialistas e seus aliados internos vão tentar dar uma ou mais viradas de mesa. Um impasse político com controle territorial de uma parcela do país é algo que já ocorre em vários países da América Latina (como nos territórios indígenas do México, Colômbia, Bolívia, diversos países caribenhos, dentre outros) e pode se tornar um modelo mais unificador para as esquerdas de nosso Continente.

Homenagens: Honduras e Bolívia
Queria dedicar esse minúsculo esforço do texto acima à memória da liderança Garífuna (equivale a quilombola em português ou palenquero na tradição colombiana e venezuelana) Francisco Guerrero Centeno (39 anos) e antes o martírio da dirigente também garífuna María Digna Montero. Centeno era liderança na comunidade de Masca, na costa (atlântica caribenha) de Honduras. Este país sofreu o primeiro golpe de Estado de novo tipo na América Latina (junho de 2009) já na execução do Projeto Pontes, no ciclo dos chamados Golpes Constitucionais auxiliados pelo Departamento de Estado dos EUA: Honduras 2009, Paraguai junho 2012 e Brasil abril de 2016. O mais recente golpe de Estado se deu no fechamento desse texto, em novembro de 2019, na Bolívia.
Bruno Lima Rocha é pós-doutorando em economia política, doutor e mestre em ciência política; é professor nos cursos de relações internacionais, direito e jornalismo.
Contatos: blimarocha@gmail.com (para E-mail e Facebook); grupo do Telegram (t.me/estrategiaeanalise), estrategiaeanaliseblog.com (textos e áudios) e www.estrategiaeanalise.com.br (arquivos até maio de 2018).

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