quinta-feira, 21 de novembro de 2019

O risco da barbárie? Artigo de Fábio de Oliveira Ribeiro



O conflito entre esquerda e direita foi substituído pela guerra que o Estado brasileiro promove abertamente contra a natureza e contra a própria sociedade

O risco da barbárie?, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Em seu famoso estudo sobre o impacto da modernidade, Ulrich Beck descreve uma sociedade global em que os riscos locais se tornaram elementos intrínsecos e incontroláveis capazes de desafiar tanto a higidez da democracia quanto a soberania dos Estados nacionais. Ao contrário do que disseram os governantes franceses, a radiação do acidente de Chernobyl não respeitou as fronteiras da França. A oriunda dos reatores de Fukushima se espalha pelo oceano e afetará tanto os peixes pescados chilenos e peruanos quanto os consumidores norte-americanos.
“… nas democracias avançadas do Ocidente, inteiramente burocratizadas, tudo é examinado nos mínimos detalhes com respeito à adequação às formalidades legais, à competência e à legitimação democrática, enquanto ao mesmo tempo é possível passar ao largo de todos os controles burocráticos e democráticos e, sem abrir margens decisórias, sob uma chuva de críticas e diante do ceticismo que se universaliza, revogar em plena normalidade extraparlamentar os fundamentos da vida habitual e do modo habitual e vivê-la.” (Sociedade de risco – Rumo a uma outra modernidade, Ulrich Beck, editora 34, São Paulo, 2010, p. 307)
“O progresso é a transformação social institucionalizada da irresponsabilidade. A fatalidade da fé na pura necessidade transfigurada no progresso é ademais fabricada. A ‘ditadura sem ditador do efeito colateral’ corresponde a uma política estatal que pode apenas dar seu aval a decisões já tomadas de antemão, a uma economia que sobrecarrega as consequências sociais com a latência de fatores que intensificam os custos, e a uma ciência que conduz o progresso com a consciência limpa da regulação teórica e que não quer nem ouvir falar das consequências. Quando a fé no progresso se torna tradição do progresso, a não política do desenvolvimento técnico-econômico converte-se em subpolítica carente de legitimação.” (Sociedade de risco – Rumo a uma outra modernidade, Ulrich Beck, editora 34, São Paulo, 2010, p. 315)
No caso brasileiro não podemos que uma subpolítica carente de legitimação leva à destruição da natureza e ao colapso da vida humana. As ações e omissões do governo Jair Bolsonaro estão sendo legitimadas dentro da mais perfeita normalidade. “As instituições estão funcionando…” disse Carmem Lúcia quando era presidente do STF. Isso é verdade, o problema é que elas não funcionam mais para garantir as restrições impostas ao próprio poder público.
O presidente brasileiro incentivou o incêndio criminoso da floresta amazônica e não fez absolutamente nada para interrompê-lo. Muito pelo contrário, Bolsonaro comemorou o resultado liberando o plantio de cana-de-açúcar na região amazônica. A poluição das praias brasileiras com petróleo também não foi objeto de uma reação imediata e eficaz do governo federal. Agrotóxicos proibidos estão sendo liberados sob a alegação de que seu uso é inevitável. A inação do Procurador Geral da República confirma a tese de que o Brasil passou a legitimar aquilo que na Europa é considerado uma subpolítica carente de legitimação.
Entre os europeus o Direito entra em curto porque causa de “…uma ciência que conduz o progresso com a consciência limpa da regulação teórica e que não quer nem ouvir falar das consequências.” No caso brasileiro a ciência está sendo silenciada para que não crie qualquer entrave à sanha destrutiva do governo federal. A degradação ambiental brasileira será, portanto, acelerada e programada mediante a censura e o medo.
O medo gerado pelo escurecimento do dia em São Paulo em virtude das queimadas na Amazônia foi dissipado pela mídia. Os jornalistas minimizaram a tragédia para salvar o neoliberalismo bolsonariano. Isso também foi feito quando a Represa de Guarapiranga ficou vazia colocando em risco as vidas de dezenas de milhões de paulistanos. Na Europa a mídia critica o governo. Aqui ela oscila entre aplaudir a destruição da natureza e fazer de conta que nada está fora de controle para que o Direito (especialmente aquele que foi projetado pela constituição cidadã) perca sua validade e eficácia.
O conflito entre esquerda e direita foi substituído pela guerra que o Estado brasileiro promove abertamente contra a natureza e contra a própria sociedade que será obrigada a suportar consequências inevitáveis sobre as quais nem mesmo o Ministro do Meio Ambiente quer debater. Ricardo Salles, aliás, somente foi nomeado porque é um entusiasta da destruição programática da natureza. Ele deixou bem claro isso ao dizer que a industrialização protegerá a Amazônia. A responsabilidade dele por Lei seria defender a natureza e os regulamentos que a protegem, mas ele conspira para a destruição de ambos sob aplausos vergonhosos de alguns jornalistas.
A imprensa europeia e norte-americana está em pânico com o que está ocorrendo no Brasil. A escandalosa destruição da floresta amazônica já começou a produzir reações privadas. O acordo firmado pelo governo Bolsonaro com a União Europeia foi comemorado no Brasil, mas será denunciado. O pânico europeu é justificado, não podemos esquecer as palavras de Isabelle Stengers.
“… aquilo que Marx chamou de capitalismo não sabe o que é esse tipo de pânico, quando essa espécie de ‘desenvolvimento’ pelo qual ele é responsável é questionada pela intrusão de Gaia. E ele não sabe o que é pânico e tampouco hesitação, pois, simplesmente, não tem as ferramentas para tanto. Aliás, é por isso que hoje podemos nos inscrever na herança de Marx sem precisar ser ‘marxista’. Em geral, aqueles que nos dizem ‘Marx está ultrapassado’, com um sorrisinho obsceno de satisfação, evitam nos dizer porque o capitalismo, tal como foi nomeado por Marx, já não seria um problema. Eles subtenderam apenas que ele é invencível. Hoje, os que afirmam a inutilidade da luta contra o capitalismo afirma: ‘A barbárie é nosso destino’.” (No tempo das catástrofes, Isabelle Stengers, editora Cosac Naify, São Paulo, 2017, p. 45)
A barbárie deixou de ser um risco. De fato, desde que Bolsonaro tomou posse ela se tornou o nosso único destino. O outro destino está nas mãos de Lula e dos brasileiros que defendem a higidez da Constituição Cidadã que contém um programa detalhado para proteger os cidadãos, a natureza e a sociedade tanto dos arbítrios políticos quanto dos abusos empresariais. Isso explica porque Sérgio Moro quer amordaçar Lula e rasgar a CF/88. Quando o Direito se torna seu avesso, o resultado é quase sempre a opressão da dissidência.
O assassinato do Direito possibilitou a legitimação da subpolítica. Restaurar a normalidade da política (cujo objetivo deve ser a proteção dos cidadãos, da natureza e da sociedade dentro dos marcos da Constituição Cidadã) será uma tarefa colossal que passará necessariamente pela reconquista do Estado ou pela sua destruição. Não existe mais espaço para conciliação das elites. Bolsonaro radicalizou para espalhar o caos e impor a barbárie. Portanto, a radicalização não poderá mais ser evitada pelos defensores da civilização.


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