quinta-feira, 21 de novembro de 2019

Fundamentalistas no poder, por Dora Incontri



Ora, aí está uma boa e atual descrição: a fé cega, violenta, fanática, não distingue o falso do verdadeiro (por isso temos hoje terraplanistas, negadores do aquecimento global, contestadores de dados científicos).

Fundamentalistas no poder, por Dora Incontri

A foto de Luis Fernando Camacho invadindo o Palácio do Governo da Bolívia, de Bíblia em punho e invocando o nome de Deus; um trecho de um vídeo de partidários do golpe boliviano, orando de joelhos antes de irem atacar a população; e aqui no Brasil, em agosto, a visita de uma comissão norte-americana, liderada por um pastor, para evangelizar o Congresso Nacional e o Governo Brasileiro e a foto recente de presidente (sic) ajoelhado diante do líder da Igreja Universal Edir Macedo – tudo isso e tantos outros fatos nos põem em alerta: estamos retrocedendo séculos, com o avanço do fundamentalismo religioso.
Estamos voltando para antes das ideias iluministas, de tolerância religiosa, de separação do Estado e da Religião, de garantia do direito de pensar, crer e participar politicamente – ideias surgidas no Século XVIII – quando na verdade deveríamos já estar indo muito além do Iluminismo, em pleno século XXI.
Kardec, um bom herdeiro do Iluminismo francês, como discípulo de Pestalozzi e, portanto, um neto espiritual de Rousseau, fazia uma análise da fé, em meados do século XIX:
“A fé sincera e verdadeira é sempre calma; (…) a fé hesitante sente sua própria fraqueza, e quando é estimulada pelo interesse, torna-se furibunda e acredita supri-la à força pela violência. A calma na luta é sempre um sinal de força e confiança; a violência, ao contrário, é uma prova de fraqueza e de dúvida de si mesmo.”
“Do ponto de vista religioso, a fé é a crença em dogmas particulares, que constituem as diferentes religiões; todas as religiões têm seus artigos de fé. Desse ponto de vista, a fé pode ser raciocinada ou verdadeira. A fé cega nada examina, aceita sem controle o falso e o verdadeiro e se choca a cada passo contra a evidência e a razão; levada ao extremo, produz o fanatismo.” (Evangelho segundo o Espiritismo).
Ora, aí está uma boa e atual descrição: a fé cega, violenta, fanática, não distingue o falso do verdadeiro (por isso temos hoje terraplanistas, negadores do aquecimento global, contestadores de dados científicos). Essa mesma fé cega está a serviço de interesses financeiros locais e internacionais. No caso, a evangelização fanática dos neopentecostais desde há várias décadas tem sido o braço colonizador do império do norte, planejado e executado minuciosamente, e agora ele se faz explícito, apoiando golpes de Estado na América Latina, e servindo ao intervencionismo norte-americano.
Mas por que o povo se deixa seduzir por isso e adere cegamente a líderes que exploram sua boa-fé e o conduzem como gado para obedecer e dar vazão aos seus instintos mais violentos, fazendo-o assumir arroubos misóginos, racistas, fascistas, homofóbicos…? Lá está a explicação de Kardec: a dúvida de si mesmo. Populações deixadas à míngua de seus direitos fundamentais, sem uma educação política, científica, filosófica – apenas entregues à sanha das mídias oficiais e dos pastores, são facilmente manipuláveis. E se tornam objeto de fakenews, de incitamentos a combater e odiar aqueles mesmos, que embora com erros e problemas como qualquer ser humano – trabalham por seus direitos e pela melhoria de suas condições de vida. Assim temos o quadro do pobre de direita, do evangélico submisso ao poder, do povo se revoltando contra os que o defenderam.
De fato, como educadora, não vejo saída para o Brasil, para a América Latina, para o mundo, sem um processo maciço, engajado – que fosse uma espécie de mutirão permanente de professores, intelectuais, artistas – de educar o povo, conscientizando-o de seus direitos sociais e políticos, ensinando-o a pensar por si mesmo, imunizando-o contra exploradores da fé, da política, das finanças. Mas é preciso saber falar com o povo. Muitas vezes, intelectuais e artistas, professores universitários e pesquisadores falam apenas para seu próprio círculo. Não têm linguagem acessível, não sabem captar a atenção e explicar com clareza aquilo que realmente importa.
Durante mil anos, tivemos no Ocidente a Igreja Católica, que fazia esse papel colonizador, de manter as massas na ignorância, reservando para si a cultura e as riquezas, em conluio com os poderes monárquicos e feudais. A partir de 1500, com a advento da Reforma protestante, a Igreja perdeu a hegemonia – embora ainda continuasse ao lado dos poderosos, abençoando canhões e apoiando guerras –  e 500 anos depois, temos um Papa que, seguindo a trilha do Vaticano II e da Teologia da Libertação, finalmente reconhece alguns dos erros históricos do passado católico e se coloca ao lado dos indígenas, dos pobres e dos explorados do mundo. Mas há 500 anos, começou a fortalecer-se o poder protestante, que não é centralizado, mas se alinha com o capital em ascensão.
Quando veremos o declive dessa hegemonia, hoje costurada com o poderio militar dos EUA, instrumentalizada para a garantia dos privilégios do capital e usada como hipnose coletiva de uma massa desamparada?
Como sou evolucionista, tenho certeza de que a história avança sempre. Mas como sou anarquista, tenho convicção de que temos de fazer a história.

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