segunda-feira, 15 de março de 2021

O elemento comum entre Julian Assange, Edward Snowden e o nosso Walter Delgatti, por Marconi Moura de Lima

 


O que Julian Assange, Edward Snowden e Walter Delgatti têm a mais em comum é o fato de colocarem o dedo na ferida do sistema global, da geopolítica, da superestrutura, das governabilidades autoritárias sobre o Planeta

Texto de Marconi Moura de Lima



... a luta pela democracia e a liberdade no mundo. Sim, creio com muita convicção que este seja o elemento que há em comum entre Julian Assange[1], Edward Snowden[2] e o brasileiro Walter Delgatti[3]. São, portanto, parecido heróis na modernidade líquida[4]. 

(Peço desculpas ao público por dar uma guinada no texto. O título propôs uma intersecção. E em apenas um parágrafo, creio tê-la feito numa síntese não-evasiva, entretanto, econômica a despeito da historicidade. Gostaria, doravante, de investir mais algumas letras a compreender outra intersecção, qual seja, a da importância – pouco atrasada – entre Delgatti e a tragédia – que se deseja estancar – na sociedade brasileira pós-Moro. Senão, vejamos.) 

Delgatti, assim como os personagens históricos citados a seu lado no escopo deste texto, ou seus homônimos detratores necessários[5], trouxe luz às trevas da República. Onde navegávamos em oceano tempestuoso na escuridão com navio cambaleante, tendo os desavisados como esperança holográfica o “messias” andante sobre as águas do mar, o ex-juiz-político, Sergio Moro (que, como uma bananeira, tinha já em seu bulbo, o broto a nascer de outra bananeira – o outro “messias” –, Jair Bolsonaro), é graças ao farol de Delgatti que passamos a enxergar que estamos a colidir com um iceberg[6] e destruir completamente o Brasil[7]. 

Lembremos que Walter Delgatti não é exatamente o herói típico, estes que estamos acostumados a conhecer pelos filmes e histórias em quadrinhos. O “bom” mocinho. Ele é um transgressor, um subversivo “criminoso”. É um hacker. E não obstante, estes “profissionais” da invasão de computadores mundo afora estão à margem da ordem vigente, da autorização do establishment para atuarem como operadores do sistema social convencional. Delgatti é, portanto, um degredado pós-moderno. 

Bolsonaro é a página desgraçada da história 

Mas encaminhemos o que realmente importa em Delgatti. Ora, estamos vivendo a pior tragédia da história pragmaticamente conhecida do Brasil. Temos um Presidente da República genocida “tupiniquim”: mata, contudo, sorri como se fosse o Macunaíma... e parte do povo hipnotizado pelas “re-legiões” fundamentalistas[8] simplesmente o saúdam: “Ave, Führer!”. 

E como Bolsonaro mata? Resumidamente, pois todos sabem melhor que eu os formatos. O “messias” nascido do “bulbo” da Lava Jato mata, i) pela fome (causada por desemprego, pela crueza do corte do Auxílio Emergencial, pela falta de investimentos em políticas públicas aos mais pobres etc.); ii) pelo contingenciamento determinado pelo sistema legiferante das PEC’s – hoje, Emendas Constitucionais, como a nº 95, que corta recursos – e os congela por 20 anos – dos serviços sociais, a exemplo, da Saúde (o SUS) etc.; iii) pelo seu ato direto, aglomerando, não usando máscara e estimulando a contaminação em massa das pessoas na pior pandemia (a COVID-19) já vista no mundo; e iv) por outros atos diretos, ou omissões presidenciais.  

Bolsonaro está prestes a sair do poder (na verdade, existe alguma esperança disso acontecer). Contudo, uma farsa – a que Delgatti pode provar o que muitos (os avisados) já sabiam – elegeu este monstro. Graças ao golpe chamado Lava Jato, ascendeu-se ao poder o que há de mais ignóbil e podre na Presidência. E graças aos hackeamentos das mensagens trocadas entre os procuradores da Lava Jato, o Moro e outros “homens” importantes da República (entre os quais, gente graúda do STF), Delgatti devolveu algum horizonte racional no debate político e civilizatório deste País. Creio piamente que nem mesmo o Delgatti saberia que seu clique no computador (tão comum para ele, como um jogo de vídeo game entre nerds da informática) poderia ser tão relevante para potencializar uma possível volta da Ddemocracia, do Estado de Direito e do jogo um pouco “mais limpo” nas disputas eleitorais, e nas contingências das agendas nacionais. 

Como seria o Brasil se outra fosse a história? 

Falemos ainda de outro personagem desta história: Lula. O ex-presidente perfilava disparado nas pesquisas para voltar à Presidência a partir da eleição de 2018. Isso só não foi possível porque a Lava Jato (Moro e seus adestrados) conseguiram – por meio do mais vexatório fórceps do Direito – prender o ex-líder sindical e lhe retirar seus direitos políticos.  

Ficam algumas perguntas: i) onde estava você, Delgatti’s, para nos “salvar” dessa tragédia – e de livrar o metalúrgico carismática de ser preso; não o Lula pessoa física, todavia, o Lula estadista, o único capaz naquele momento de nos tirar do abismo?; ii) o que seria realmente do Brasil no enfretamento do coronavirus se Lula tivesse sido realçado ao cargo máximo do País, ou seja, teríamos nesse momento 280 mil vidas perdidas – com esse potencial crescente de mortes aos milhões por COVID-19, já que o descaso com a doença que não para?; iii) nossa economia estaria à serviço ainda mais rigoroso do Mercado como está hoje (como independência do Banco Central e os cambal)?; iv) nosso sistema de acolhimento social se encontraria tão colapsado ao ponto de vermos gradualmente as pessoas caindo no limbo da miséria e da falta de assistência mínima à sua sobrevivência? Certeza que não... 

Isto é, se Delgatti tivesse acessado as primeiras fraudes e nos trazidos os documentos para frear Moro e sua sanha sanguinária, o Brasil não seria outro, bem melhor? (Será?) 

Bom, realmente é bem difícil responder a estas questões de maneira simplória. São reflexões e inquietações necessárias para que – não paremos e – avancemos a outra estética civilizatória. Nunca mais deixemos de nos fazer estas perguntas – a buscar o maior cabedal possível de respostas e, por conseguinte, respeitar o País para as atuais e as próximas gerações (sim, o caráter intergeracional da Lava Jato é caótico!).  

Uma coisa é certa: o próprio Lula saiu de sua “zona de conforto”. Ou seja: o “Lulinha paz e amor” percebeu que o consenso das classes não é assim tão harmônico a salão e pró-seco compartilhados entre o rico e o pobre. Lula percebeu que a desigualdade que combatia era apenas uma hibernação do sistema de castas coloniais (judiciário, militares, latifundiários etc.). Lula também percebeu que com a Grande Mídia – a Globo, o SBT, a Band, a Record etc. – não tem acordo; só conchavo! E percebeu ainda que “dormir” com deputados e senadores herdeiros do Marquês de Pombal é cochilar de armadura medieval... ou o punhal lhe atravessará novamente as costas.  

A catapulta da história do Brasil 

Entretanto, já não é mais hora de “chorar o leite derramado” do Brasil com as cruezas da Lava Jato que fizeram o País quebrar economicamente, gerou o desemprego que gerou, acabou com a democracia (sobretudo, com a deposição da Presidente Dilma e a outra farsa processual conhecida como “Golpe de 16), elevou Michel Temer ao poder com a sua “Ponte Para o Futuro” (na verdade “Ponte Para o Abismo no Futuro”), e fechou com a “cereja do bolo”: a eleição de um fascista miliciano batedor de carteira como Bolsonaro. 

É hora de pensar a reconstrução do Brasil. 

O que Julian Assange, Edward Snowden e Walter Delgatti têm a mais em comum é o fato de colocarem o dedo na ferida do sistema global, da geopolítica, da superestrutura, das governabilidades autoritárias sobre o Planeta. Os dois primeiros, de algum modo, estão em cárceres. Não retornarão a sua vida “comum”. Terão de viver outra vida. Entretanto, todos eles morrerão como soldados que liberam as cordas (elásticos) de catapultas tão pertinentes à ressignificação da história. 

Mas o que é uma catapulta? Em síntese, uma arma de guerra dos tempos antigos. O modelo básico era feito “de um longo braço de madeira com um grande receptáculo na ponta. Um tubo rotatório, chamado sarilho, ficava preso a esse braço. Uma corda era presa a ele e colocada ao redor do sarilho, dando várias voltas. Na base do braço ficava um conjunto de cordas. Para preparar a catapulta, os soldados apertavam a corda, girando o sarilho. Com isso, as cordas na base do braço eram torcidas, ficando cada vez mais apertadas. Os soldados então colocavam no receptáculo uma pedra muito grande ou outros objetos, e depois soltavam a corda. As cordas em volta da base se desenrolavam todas ao mesmo tempo e o braço se movia para frente, lançando”[9] a grande pedra que serviria para destruir castelos, tomar reinos e construir ou ampliar impérios. 

Imaginemos a metáfora como sendo nosso País (para isso nos dar ligeira esperança de a tragédia ter algum valor possível). Pois bem! O Brasil é a “Grande Pedra” que precisa conquistar um castelo (estética de civilização) e avançar o império (evoluir como sociedade). Porém, esta Grande Pedra foi colocada na catapulta e puxada para traz (por Moro e seus procuradores) e está emperrada (pelo sistema de Justiça; pelo Presidente Bolsonaro; e por todas as elites). Soldados incompetentes (ou mal intencionados) puxaram o elástico e não mais soltaram. Eis que debochadamente um soldado, mexendo na engrenagem, conseguiu destravar, e outros soldados – realmente preocupados com a Grande Pedra parada e a civilização em risco de ser completamente dominada – conseguem cortar a corda que a impede de voar e tomar o castelo; render o inimigo; conseguir a vitória.

(Parêntese: na metáfora, a diferença é que Moro serve ao Departamento de Estado dos EUA e é, portanto, um agente daquele país usado para acabar com o nosso. Já Bolsonaro, serve à milícia, porém, ao colocar Paulo Guedes no posto chave da República, passou a servir o Mercado, a superestrutura ultraliberal. Ambos querem o fim de conteúdos nacionais como o Pré-Sal e a Petrobras; querem a privatização de nossas riquezas. Ambos direcionaram a nossa catapulta para o mar, para afogar de vez o Brasil e torna-lo uma Atlântida fugaz...) 

Grandes conflitos fizeram grandes nações 

Em síntese – pós-analogia – é que esperemos que a tragédia por que passa o Brasil (uma guerra de sentidos civilizatórios ) seja o impulso para a construção de uma nação verdadeiramente gigante, tal como a Alemanha, que precisou ser devastada pelos grandes conflitos, particularmente, a 2ª Guerra Mundial; o Japão, que passou pelo trauma indescritível das bombas de Hiroshima e Nagasaki; e de outras nações – que tiveram em suas desgraças a mola propulsora para se tornarem imponentes culturas de referência global e, particularmente, para seus respectivos compatriotas. 

Estamos regredidos a no mínimo dois séculos em termos de direitos e cultura. Demos “um passo atrás” (na verdade vários); temos a chance de dar “dois à frente”. Agora é hora de “vingar” tantos que morreram e morrem de forma fútil (pelos erros de autoridades do passado recente; pela ação ou omissão do Estado de agora). É hora de fazer o Brasil ser um país de verdade à sua gente.  

Ou aprendemos com toda esta tragédia – para evitarmo-la no futuro – ou não teremos mais Brasil. 

E talvez seja isso que os três personagens da história citados na epígrafe deste texto queiram: expondo os corpus nus de líderes e instituições autoritárias, quem sabe, o mundo (e o Brasil) se descola para outro eixo de harmonia civilizatória... 

........................... 

[1] Saiba quem é Julian Assange e o que os documentos confidenciais de vários países, revelados pelo jornalista como crimes contra a humanidade, têm a ver com o seu caráter revolucionário.

Uma das reportagens que narram sua trajetória, sobretudo, eventos de sua prisão, segue abaixo para acesso:

https://www.bbc.com/portuguese/internacional-47895584

[2] Necessária pesquisa também é saber o que ousou o ex-agente oficial da Inteligência do EUA, Edward Snowden. Fica esta opção de reportagem para estudos:

https://www.poder360.com.br/internacional/edward-snowden-se-torna-residente-permanente-da-russia/ 

[3] A primeira pré-inscrição que precisamos fazer sobre Delgatti é: 

i) não sabemos se ele realmente teve uma justa-causa, isto é, se ele é um ativista por um mundo melhor. O fato é que de forma intencional/revolucionária ou de forma excêntrica/casual (típico daqueles moleques que tocam a campainha da nossa casa e saem correndo... só pra “ver a bagaceira”), o rapaz conseguiu “causar” no País;

ii) ele não agiu sozinho; outros colegas hackers também estão na lista de provocadores dos abalos sísmicos na República;

iii) nesse momento não interessa se o hacker em questão é de esquerda, ou de direita; se sua ideologia política é dessas enviesadas e oscilantes (como as ondas do mar);

iv) não se pode desconsiderar que todo este “estarte” somente ganhou ressonância a partir da coragem dos editores do blog The Intercept Brasil, os primeiros a publicarem as mensagens da chamada Vaza Jato; e

v) Delgatti e seus parças são os responsáveis pela decodificação do aplicativo Telegram utilizado pelos procuradores da força tarefa da Lava Jato, liderados por Deltan Dallagnol, e também pelo então juiz da operação, Sergio Moro, cujos escândalos de todos os desrespeitos às leis brasileiras foram praticados por estes operadores do Direito no (in)devido processo legal. Tais hackeamentos levaram os autores da interceptação das mensagens à prisão, vindo a se destacar Delgatti, a seguir, como um símbolo de ativista que expôs as vergonhas da República e seu colonial sistema de Justiça. 

[4] Em síntese rudimentar, um período em que se privilegia o caráter volúvel das relações sociais e humanas, cuja fragilidade dos significados, da moral e da ética contida nas vivências das sociedades e inter-relações humanas são solúveis, sem solidez, com densidade relativa. O ser vale menos que o ter (humano vs coisa; sujeito vs consumo/produto).

O conceito é desenvolvido pelo sociólogo Zygmunt Bauman. Para entender melhor, leia o seu livro de mesmo homônimo (Modernidade Líquida).

 

[5] Detratar: pelo dicionário Aurélio (2008), significa “difamar” (alguém, ou algo). Entretanto, há um desdobramento desse conceito avocado pelos sistemas autoritários: o “detrator político”.

Gosto da síntese que é feita por Eduardo Moreira num vídeo deste no YouTube, debatendo com o professor da UFRJ, João Cezar de Castro Rocha, entre outros pontos, a comparação do ódio e da morte no bolsonarismo com a Ditadura Militar.

Assim destacou: “Detrator, ele é um ‘traidor da pátria’. (...) E olha que conexão: o que acontecia com um traidor da pátria até 78 (...)? O cara era morto!”. (https://www.youtube.com/watch?v=gCv3rYDof0U

A verdade é que precisamos de mais “detratores” no Brasil, mesmo que, como Moreira diz – e não foge: “tenho que temer pela minha vida”. Sendo esta, portanto, a forma de salvar outras milhões de vidas. 

[6] Peço desculpas pela simbiótica e não menos clichê comparação do meu fragmento introdutório ao épico desastre do navio Titanic, ocorrido em 1912.   

[7] Que civilização pode sobrar quando seu povo está morrendo de fome ou de doenças (especialmente a pandemia do século XXI); quando sua economia é completamente entregue ao domínio estrangeiro; quando a ideia de democracia e estado de direito é reduzida a meros jogos fúteis de conveniência ébria; quando o imaginário das pessoas – sua cognição – não passa de um elemento manipulável (por fake News, pós-verdades e anti-pedagogias midiáticas)? É a sucumbência de uma nação e seus conteúdos estruturais, históricos, culturais e naturais. 

[8] Sendo alguns exemplos: i) pentecostais evangélicos e – certos – católicos; ii) militares; iii) os embriagados pelo histórico privilégio de pertencer a castas – sim, são “ceitas” que doutrinam a cognição e a lógica; e iv) outros – lembrando que dentro destes segmentos, existe um percentual bem significativo de fascistas; outros são meros oportunistas; e outros, porém, ingênuos, ignorantes de alguma cognição social. 

[9] Fonte: https://escola.britannica.com.br/artigo/catapulta/480925. Acesso em 14 de mar/2021. 

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